Em sua mais recente publicação, “Vozes
abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da
comunicação”, (Editora Mauad/Faperj, Rio de Janeiro, 2011), Dênis de Moraes analisa as ações governamentais em países latino-americanos para tentar
reverter a concentração monopolista da mídia. Resultado de estudos
desenvolvidos pelo autor nos últimos quatro anos, o livro mostra mudanças em
legislações e marcos regulatórios que, durante décadas, favoreceram as
dinastias familiares que controlam os meios de comunicação em grande parte do
Continente.
Forum Nacional de Democratização da Comunicação
A obra propõe um questionamento frente a atual situação dos meios de
comunicação e caminhos para seguir em um ideal democrático, condizente com o
contexto de reordenamentos políticos, econômicos e socioculturais na A.L.
Nesta entrevista ao e-Fórum, o autor resume o conteúdo
tratado na publicação.
FNDC – Que avanços são mostrados neste livro com relação as suas
pesquisas anteriores?
Dênis de Moraes – Vozes abertas da América Latina é
um livro dedicado à análise das transformações em curso nos sistemas de
comunicação de países latino-americanos com governos progressistas, avaliando
suas perspectivas e dificuldades. Não me limito a um diagnóstico sobre mudanças
que começam a colocar em xeque o peso desproporcional da mídia comercial na
vida cotidiana e na fixação de valores e mentalidades.
Além de evidenciar as providências governamentais para tentar barrar a
concentração monopólica da mídia e descentralizar os meios de informação e
difusão cultural, reflito sobre questões análogas, que me parecem decisivas
para a longa luta pela democratização da comunicação na América Latina.
A primeira questão é a importância estratégica das políticas públicas de
comunicação para redefinir o setor de mídia em bases mais equitativas,
combatendo assimetrias que têm favorecido a iniciativa privada (hoje,
predominantemente nas mãos de dinastias familiares, muitas delas associadas a
corporações transnacionais). Está em questão proteger e valorizar as demandas
coletivas frente à voracidade mercantil que prospera à sombra da convergência
entre as áreas de informática, telecomunicações e mídia, tornada possível pela
digitalização. Isso deve ser feito para em benefício do pluralismo, levando em
conta as transformações da era digital e a necessidade de definir o que deve
ser público e o que pode ser privado.
A segunda questão abordada é a necessidade de desmistificarmos as
campanhas opositoras movidas por elites empresariais, midiáticas e políticas
contra as medidas governamentais que visam diversificar a radiodifusão sob
concessão pública, impedindo que conglomerados e dinastias familiares continuem
acumulando uma quantidade alarmante de outorgas de canais de rádio e televisão,
além de controlarem a televisão por assinatura e serviços de internet. Os
ataques patrocinados pelas corporações midiáticas têm o objetivo, deliberado
mas não assumido publicamente, de impedir um convencimento mais amplo da
sociedade em torno das mudanças em curso em determinados países.
As campanhas denunciam “ameaças à liberdade de expressão” que estariam
sendo praticadas por governos progressistas. Trata-se de um falseamento claro
da questão. O direito de informar e ser informado absolutamente não está ameaçado
por legislações democratizadoras, e sim pelos grupos que confundem e reduzem a
liberdade de imprensa à liberdade de empresa. O jurista Fábio Konder Comparato,
lucidamente, tem enfatizado que o conceito de liberdade de expressão está
indissociavelmente vinculado aos direitos públicos e às aspirações coletivas,
sem qualquer subordinação a interesses privados ou ambições particulares. Na
verdade, qualquer modificação que possa afetar as suas receitas com as joias da
coroa – as licenças de canais de rádio e televisão – é rechaçada pela violência
discursiva dos grupos midiáticos. Como se as outorgas de radiodifusão fossem
propriedades exclusivas, quando, apenas, são concessões do poder público, com
prazo de validade fixado em lei, sendo renováveis ou não.
FNDC – De que forma a comunicação se relaciona com as constantes
mudanças no governo e as crises políticas na América Latina e como ela afeta a
democracia?
Dênis de Moraes: Mais do que nunca, a
comunicação desempenha um papel decisivo nas disputas de sentido que conformam
ou modificam a opinião pública e valores sociais. Os processos comunicacionais
estão entranhados na batalha das ideias pela hegemonia – aqui entendida no
sentido proposto pelo filósofo marxista italiano Antonio Gramsci: a conquista
do consenso e da liderança cultural e política por uma classe ou bloco de
classes em torno de determinadas concepções de vida e valores. Daí a
importância de evoluirmos para um sistema de mídia que permita múltiplas vozes
de se expressarem livremente, sem sujeição aos impérios empresariais. Um
sistema de míidia que, incorporando usos e benefícios tecnológicos, favoreça a
diversidade informativa, a criatividade, o trabalho cooperativo, a participação
social e os direitos da cidadania.
FNDC – As atuais revoltas pelo mundo evidenciaram a abrangência da
internet e das redes sociais na disseminação da informação. Isso já vem sendo
considerado na América Latina?
Dênis de Moraes: Sem dúvida. O valor da
Internet para a pluralização informativa e cultural e para o ativismo
sociopolítico vem se acentuando tanto no plano governamental, quanto no seio da
sociedade civil. Trata-se de um ecossistema descentralizado e interativo, não
sujeito aos crivos e idiossincrasias da mídia comercial, portanto
tendencialmente propício à multiplicação das fontes e à disseminação de pontos
de vistas e valores que escapam aos mecanismos de controle de informação e
opinião dos meios, classes e instituições hegemônicos.
Cada vez mais governos progressistas percebem a necessidade de expandir
seus espaços de divulgação e de interlocução com a sociedade civil, o que tem
se traduzido na expansão e no aprimoramento de portais de órgãos estatais
(agências de notícias, emissoras de rádio e televisão, jornais e boletins
eletrônicos) e na utilização das redes sociais (Twitter, Facebook, Youtube)
para veicular conteúdos de interesse coletivo geralmente minimizados ou
ignorados nos noticiários midiáticos. No Twitter, podemos acompanhar os pontos
de vista dos presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Argentina, Cristina
Kirchner. Eles diariamente interagem com uma quantidade impressionante de
internautas (Chávez com dois milhões de seguidores; Cristina, com 600 mil). Do
mesmo modo que, no Youtube, são disponibilizados vídeos sobre atos públicos que
dificilmente seriam transmitidos por emissoras de TV ou por portais midiáticos.
Devemos salientar que os usos promissores da Internet estão longe de se
esgotar em intervenções governamentais. O ambiente autônomo e interativo do
ciberespaço tem proporcionado a entidades e organismos da sociedade civil
formas diferenciadas e promissoras de transmissão informativa, burlando a
crônica desconfiança dos meios tradicionais em relação às reivindicações
comunitárias e aos movimentos sociais.
As fontes alternativas incluem agências de notícias autônomas, portais,
jornais estatais e redes sociais, em que os conteúdos são escolhidos e
veiculados não em função de ambições concorrenciais e propósitos mercantis, e
sim para dar visibilidade de um conjunto de temas e anseios da coletividade,
englobando direitos humanos, ecologia, meio ambiente, reivindicações
trabalhistas, educação e cultura populares, inclusão social, democratização das
tecnologias e do conhecimento, questões de gênero, reforma agrária, reforma
urbana, segurança pública, desenvolvimento sustentável, etc. Essa
diversificação temática rompe com as agendas noticiosas fixadas unilateralmente
pela mídia, de acordo com suas visões, não raro, excludentes e
discriminatórias. Há um crescente sentido público na utilização das redes
virtuais, que se combina com novos padrões de sociabilidade, criatividade e
inovação. Sem contar as ferramentas digitais que são crescentemente apropriadas
pelo ativismo sociopolítico, como o atestam as mobilizações virtuais nos
protestos populares recentes na Espanha e no Chile, e para a divulgação
independente de conteúdos políticos e diplomáticos antes mantidos em sigilo,
como ocorre graças ao site Wikileaks.
Porém, não devemos cair na tentação de acreditar que a solução dos
problemas comunicacionais tende a se resolver com a virtualização. Sabemos que
as tecnologias não desfazem desigualdades sociais graves; pelo contrário, a
despeito dos progressos verificados nos últimos anos, parcela muito
significativa das populações mundial, latino-americana e brasileira continua
excluída dos acessos e benefícios tecnológicos, bem como segue alijada das
condições socioculturais e educacionais adequadas para uma utilização
consistente e proveitosa das tecnologias. Indispensável sublinhar que o virtual
não substitui métodos e ambientes clássicos de mobilização, participação e luta
social.
Continua sendo no território físico, socialmente vivenciado, que se
travam as lutas cruciais pela emancipação e pela democratização da sociedade,
cultura, da riqueza e da renda. O que existe, sim, é uma interessante relação
de complementariedade entre real e virtual, em que novas metodologias de
produção, difusão, transmissão, recepção, consumo, interação e sociabilidade se
afirmam no universo das redes virtuais, realçando identidades e afinidades eletivas,
o que pode representar, dependendo de cada caso, mais colaborações, permutas,
intercâmbios e até coesões.
Por fim, percebo, com bastante preocupação, que, ao lado das utilizações
sociais da Internet, cresce a mercantilização do ciberespacio, promovida por
corporações com poderio financeiro, mercadológico e logístico. O mundo virtual
não escapa da obsessão dos agentes do capital de extrair o maior lucro ao menor
custo possível. Seus tentáculos estendem-se ao comércio, à publicidade e aos
serviços on line. Sem falar que as publicações eletrônicas de grupos midiáticos
reproduzem, via de regra, mecanismos de controle monopólico da informação
empregados pelos veículos de massa, o que lhes permite ampliar, também no
âmbito virtual, sua influência na formação da opinião pública.
Portanto, uma análise do fenômeno Internet precisa ser abrangente, para
dar conta da complexidade envolvida. Trata-se de um ambiente tecnológico de
usos múltiplos, que, a um só tempo, alarga as fonteiras de expressão, difusão e
interação, a baixo custo e sem submissão às estruturas midiáticas, e favorece a
comercialização indiscriminada. Não se pode isolar um elemento de análise do
outro; devemos problematizá-los, pois ambos se manifestam no cenário virtual,
gerando ambivalências, dilemas e contradições.
FNDC – Existe algum país com uma política pública efetiva a fim de
desmantelar o cartel midiático?
Dênis de Moraes: O bloco mais ativo é
formado por Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina, cujos governos são
ostensivos na rejeição ao monopólio privado da mídia e ao seu desmedido
predomínio na vida social. Entre as medidas que vêm sendo tomadas, devemos
destacar as novas legislações para a radiodifusão sob concessão pública, a fim
de coibir a concentração dos setores de radio e televisão nas mãos de poucos
grupos privados.
Como aponto no livro, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da
Argentina já é um paradigma internacional de legislação antimonopólica. Os
governos do Uruguai e do Equador nela se baseiam para elaborar, neste momento,
anteprojetos que visam estabelecer regras democráticas para a radiodifusão,
garantindo espaços aos setores públicos, sociais e comunitários. Importante
realçar que as providências antimonopólicas variam de país para país,
refletindo peculiaridades socioculturais e correlações de força específicas de
cada cenário politico. Mas há consenso de que as disposições legais precisam
assegurar condições equânimes em termos de acesso, participação e
representatividade nos sistemas de radiodifusão, para que haja equilíbrio nas
prerrogativas de atuação entre três instâncias envolvidas: o próprio Estado
(com serviço público de qualidade e diversificado), o setor privado (com fins
lucrativos e responsabilidades sociais bem definidas) e a sociedade civil
(movimentos sociais, comunitários e étnicos, universidades, associações
profissionais, produtores independentes, etc.).
FNDC – No livro são citados os quatro países onde estão ocorrendo
mudanças nos marcos regulatórios da radiodifusão. Por que o Brasil ainda não
avançou nesse sentido?
Dênis de Moraes: Esta é uma pergunta que se
impõe, já que, depois dos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e dos
primeiros nove meses do de Dilma Rousseff, continuamos com um dos sistemas de
comunicação mais atrasados e anacrônicos da América do Sul. Espero que Dilma
venha a propor ao Congresso ou apoiar um projeto de lei que, tomando em
consideração as singularidades do caso brasileiro, se inspire nas disposições
antimonopólicas da lei em vigor na Argentina, cuja metodologia de elaboração
foi participativa e inclusiva.
A presidenta Cristina Kirchner reuniu-se, por diversas vezes, com os
setores da sociedade civil envolvidos na matéria, inclusive o empresariado da
mídia, a fim de ouvir suas reivindicações. Meu livro defende a tese de que
avanços convincentes na luta pela democratização dependerão de vontade
política, pressão social organizada e respaldo popular. Não adianta ter apenas
boas intenções. É preciso um compromisso político permanente com a diversidade
para fazer frente às campanhas midiáticas que desejam preservar privilégios
acumulados durantes décadas. A verdade é que uma sociedade complexa,
diversificada e desigual como a nossa não pode permanecer, por mais tempo,
refém das visões de mundo, das idiossincrasias e dos interesses corporativos da
mídia hegemônica.
Forum
Nacional de Democratização da Comunicação – 23.09.2011
Dênis de Moraes – Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia
da Universidade Federal Fluminense (UFF), pós-doutor em Comunicação pelo
Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO-Argentina) e professor
associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal
Fluminense.
Colaboração
Miriã Isquierdo
IN FNDC.org – http://fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=729637