O debate nacional dá a impressão de que
os brasileiros não fizeram um esforço para compreender a natureza das
transformações ocorridas nos últimos 30 anos. A esquerda continua prisioneira
do estatismo míope e inibidor das decisões privadas de investimento, já a
direita aposta num liberalismo mítico, que nunca existiu.
Luiz Gonzaga Belluzzo
Entre 1994 e 1998, a estabilização promovida pelo Plano Real foi
acompanhada de uma forte valorização da moeda brasileira. Escorada na taxa
Selic real de 22% ao ano, o uso abusivo da âncora cambial desestimulou os
projetos voltados para as exportações e promoveu um “encolhimento” das cadeias
produtivas submetidas à concorrência de importações “predatórias”.
Em tais condições, o investimento direto estrangeiro foi dirigido à
privatização dos setores não submetidos à concorrência externa, como telecomunicações
e energia, com impacto negativo sobre as tarifas e, portanto, sobre os custos
gerais da economia, afetando a competitividade da indústria brasileira.
Concentrados no setor de serviços, esses investimentos suscitaram, ademais, um
aumento do coeficiente de importações de bens de capital, peças e componentes.
Ao contrário de períodos anteriores em que a complementaridade do investimento
estrangeiro e das empresas nacionais públicas e privadas promovia o crescimento
e a diferenciação simultânea dos setores de bens de consumo e de bens de
capital, a pretensa modernização brasileira dos anos 1990
determinou o surgimento de uma estrutura industrial descontínua e atrasada.
O relatório da Unctad Trade and Development Report de 2003 – já
analisado por mim na revista Carta Capital quando de sua
publicação – traz o subtítulo “Acumulação de capital, crescimento e mudança
estrutural”. É uma avaliação profunda e certeira dos resultados das políticas
de desenvolvimento praticadas na Ásia e na América Latina nas duas últimas
décadas. Trata-se de um estudo histórico-comparativo sobre o desempenho dos
países em desenvolvimento ao longo do movimento de transformação da economia
global nas décadas de 1980 e 1990.
O relatório classifica os países em desenvolvimento em quatro grupos: 1)
os deindustrialização madura, como Coreia e Taiwan, que já atingiram um
grau elevado de industrialização, produtividade e renda per capita,
mas apresentam uma taxa declinante de crescimento industrial; 2) os de industrialização
rápida, como China e Índia, que, mediante políticas industriais e de
incentivo às exportações que favorecem elevadas taxas de investimento doméstico
e graduação tecnológica, apresentam uma crescenteparticipação das manufaturas
no produto, emprego e exportações; 3) os de industrialização de enclave,como
o México, que, a despeito de aumentar sua participação na exportação de
manufaturados, tem desempenho pobre em termos de investimento, valor agregado
manufatureiro e produtividade totais; e 4) os países em vias de
desindustrialização, que inclui a maioria dos países da América Latina.
Estão nessa turma os que, como o Brasil, alcançaram certo grau de avanço
industrial, “mas não foram capazes de sustentar um processo dinâmico de mudança
estrutural mediante a rápida acumulação de capital e crescimento do PIB”. Esses
países, num ambiente de liberalização financeira e comercial, apresentam queda
ou estagnação do investimento e participações declinantes da produção
manufatureira no PIB. Esses países sofreram uma degradação da sua posição
tecnológica e, sobretudo, não conseguem transformar os estímulos do crescimento
das exportações em impulsos para a expansão da produção manufatureira
doméstica. Nos asiáticos, e particularmente na China, a participação nas
exportações mundiais se elevou, e a maior integração da economia às correntes
de comércio induziu o crescimento da renda interna. Nesse caso, pode-se
concluir que houve um “adensamento” das cadeias produtivas domésticas, o que
permitiu a apropriação do aumento das exportações pelo circuito
interno de geração de renda e emprego.
Em 2002, as eleições presidenciais foram realizadas sob um clima de
terror especulativo. Os mercados e seus porta-vozes projetaram cenários
apavorantes para os quatro anos de governo Lula. O risco Brasil foi a 2.400
pontos-base, descolando da pontuação dos outros emergentes. A transição, para
surpresa de muitos e decepção de outros, foi feita com habilidade e prudência.
Já em 2003, no início do mandato presidencial, a economia mundial
apresentava forte aceleração, puxada pelos Estados Unidos e pela China. A
partir de então, a abundante liquidez financeira e o crescimento vigoroso do
comércio mundial promoveriam uma formidável mudança no balanço de pagamentos
brasileiro. Todos os indicadores de vulnerabilidade externa melhoraram
sensivelmente entre 2003 e 2009: caiu a relação dívida-exportações e as
reservas alcançaram mais de US$ 350 bilhões. As exportações brasileiras de commodities cresceram
de forma impressionante, impulsionadas pela melhoria dos termos de troca.
A conjuntura internacional foi excepcionalmente favorável. A
ascensão econômica da China e dos asiáticos em geral, com dotações de recursos
naturais diferentes das nossas, mudou a configuração do comércio internacional.
Mas, ao mesmo tempo, o Brasil ficou para trás na corrida pelo crescimento
industrial entre os países emergentes e continuou a perder posições na disputa
global pela geração de empregos e de valor adicionado na indústria
manufatureira.
Nesse ambiente, é tentador manter a taxa de câmbio fora do lugar. Ótimo
para o consumo de importados, péssimo para o investimento industrial.
Enfrentamos, por isso, uma situação do tipo “há bens que vêm para o mal”, ou
seja, os danos à indústria provocados pelo câmbio valorizado são “compensados”
pelos preços generosos formados num mercado mundial de commoditiessuperaquecido
e especulado. Os otimistas argumentam que o país preservou uma fração
importante do aparato industrial e, sobretudo, valeu-se do dinamismo do
agronegócio, que respondeu com eficiência e rapidez às transformações ocorridas
na divisão internacional do trabalho. A situação favorável do balanço de
pagamentos recomendaria, no entanto, a busca de uma combinação câmbio-juro real
mais estimulante para o desenvolvimento da indústria manufatureira.
Uma economia urbano-industrial formada há anos não pode apoiar o
crescimento e a estabilidade na exportação de commodities,cujos
efeitos sobre o emprego e a renda são limitados. O crescimento da indústria é
almejado porque impõe a diversificação produtiva e torna mais densas as
relações intra e intersetoriais, proporcionando, ao mesmo tempo, ganhos no
comércio exterior e na economia doméstica.
Em 2008, o Brasil sofreu uma crise de confiança que se manifestou no
encolhimento da liquidez no mercado interbancário e travou o crédito para
empresas e consumidores. Isso impactou rapidamente o setor privado, que cortou
drasticamente a produção corrente e, sobretudo, reduziu os gastos de
investimento.
Não há dúvida de que o Brasil foi beneficiado pelo comportamento das commodities,
cujos preços não sofreram perdas consideráveis, como em outras ocasiões. O
Brasil se desvencilhou da crise. O governo adotou as medidas anticíclicas
corretas quando sobreveio a tormenta. A política econômica reagiu com
competência ao impacto da crise de 2007-2008. A ação das autoridades e dos
bancos públicos foi decisiva para reabilitar o crédito, sobretudo mediante a
compra de carteiras das instituições de porte médio e da ação tempestiva do
BNDES na sustentação do crescimento do funding de longo prazo.
Foi uma ação conjuntural, de resposta à crise, mas não se pode a partir
daí projetar uma trajetória de desenvolvimento. Nossa relação com a China, a
exemplo, é assimétrica: tornamo-nos fornecedores de commodities,
dada a grande e diversificada disponibilidade de recursos naturais, mas nossas
exportações de manufaturados foram “deslocadas” em terceiros mercados, ao mesmo
tempo que as importações de bens industriais deslocaram a produção doméstica em
quase todos os setores.
É preciso reafirmar que é superstição acreditar que a abertura
financeira e a exposição pura e simples do setor industrial à concorrência
externa são capazes de promover a modernização tecnológica e os ganhos de
competitividade. Os estudos mais especializados e aprofundados sobre o tema
mostram que a concorrência nos mercados contemporâneos está marcada por
características que não guardam qualquer semelhança com as crendices
simplificadoras dos fanáticos do livre-cambismo e das vantagens comparativas.
Até mesmo os estudiosos mais conservadores reconhecem a existência de
economias de escala e de escopo, economias externas, estratégias de ocupação e
diversificação dos mercados, conglomeração e acordos de cooperação. Nesse jogo
só entra quem tem cacife tecnológico, poder financeiro e amparo político dos
Estados nacionais. Essas características essenciais da concorrência e do
comportamento das empresas, sobretudo na área industrial, estão completamente
ausentes das elucubrações dos que pretendem ensinar as virtudes milagrosas do curandeirismo
que aspira a foros de ciência.
A opinião dominante hoje no Brasil cultiva com esmero o hábito de
ignorar a experiência alheia e, pior, trata de desqualificar e desfigurar seu
próprio passado, quando não se empenha denodadamente em promover o completo
esquecimento.
Não há nos países periféricos – aí incluídos o Chile, os Tigres
Asiáticos e a China – exemplo de renúncia a políticas deliberadas de
reestruturação produtiva ou de estímulo à modernização e à conquista de
mercados. Seja qual for a estratégia adotada – liderança das exportações ou
preeminência do mercado interno –, os sucessos de avanço industrial e produtivo
na dita “era da globalização” têm um traço comum: intencionalidade e
coordenação pública.
Em artigo recente, argumentei que, nas economias emergentes
bem-sucedidas, a ampliação do espaço de criação da renda é fruto da articulação
entre as políticas de desenvolvimento da indústria (incluídas a administração
do comércio exterior e do movimento de capitais) e o investimento público em infraestrutura.
No Brasil dos anos 1950, 1960 e 1970 havia sinergia entre o investimento
público, comandado pelas estatais, e o investimento privado. O volume elevado
de investimento público em infraestrutura é crucial para a formação da taxa de
crescimento. Na China de hoje, o investimento das multinacionais tem
importância para a geração de divisas e para a graduação tecnológica das
exportações, mas não para a formação do investimento agregado.
O debate nacional dá a impressão de que, de um lado e de outro, os
brasileiros não fizeram um esforço para compreender a natureza das
transformações ocorridas nos últimos trinta anos. A esquerda continua
prisioneira do estatismo míope e inibidor das decisões privadas de
investimento, enquanto a direita aposta num liberalismo mítico, que nunca
existiu.
Não se trata de retornar às políticas dos anos 1950, 1960 e 1970, mas de
ajustar a estratégia nacional de desenvolvimento às oportunidades e restrições
criadas pela nova configuração da economia mundial. O modelo adotado desde os
anos 1990, no entanto, a pretexto de estimular a competitividade da indústria,
realizou a operação contrária. Desalentou as exportações de manufaturados e
favoreceu as importações predatórias, filhas diletas do câmbio valorizado, dos
custos elevados dos insumos de uso generalizado e de um sistema tributário
irracional.
Daí, uma nova etapa de crescimento industrial não deve contemplar – nem
pode, nas condições atuais da economia mundial – uma estratégia export
led. O Brasil está em posição de estabelecer uma macroeconomia da
reindustrialização usando de forma inteligente as vantagens que se revelaram
recentemente. Não se trata tão somente de concentrar os esforços na manutenção
de um câmbio subvalorizado, mas de desenvolver um conjunto de políticas voltado
para o objetivo de expansão do mercado interno sem incorrer nas restrições de
balanço de pagamentos. Nessa estratégia, não cabe a determinação da taxa de
câmbio como um ativo cujo “preço” é formado pelo movimento de capitais. A taxa
de câmbio tem de ser administrada de modo a evitar valorizações bruscas como a
observada nos últimos meses, em que o valor da moeda brasileira em relação ao
dólar passou de R$ 1,85 para R$ 1,70. Essa estratégia apoiada no mercado
interno envolve, ademais, o equilíbrio do orçamento corrente, a rápida
ampliação do orçamento de investimento e o prosseguimento do processo de
inclusão e de distribuição de renda. Esse circuito virtuoso poderá ser
construído com mais facilidade se os recursos oriundos do pré-sal forem
destinados à correção das distorções da estrutura tributária e utilizados para
reverter o encarecimento dos insumos fundamentais, além de gerar espaço e
demanda para os novos setores industriais com incentivos à inovação.
Mais do que uma política industrial, concebida em termos restritos, o
Brasil reclama um arranjo macroeconômico que promova a reindustrialização. Esse
arranjo deve estar apoiado no potencial de seu mercado interno, nas vantagens
competitivas do agronegócio e da mineração – agora acrescidas das perspectivas
do pré-sal – e na liderança e eficiência de seu
sistema público de financiamento. A articulação entre investimento em
infraestrutura e defesa da indústria doméstica, em sua mútua fecundação, gera
estímulos aos serviços complementares e ao agronegócio, ou seja, efeitos de
encadeamento para trás e para frente.
Luiz Gonzaga Belluzzo – Economista, professor da Unicamp e presidente do Conselho Curador da
Empresa Brasil de Comunicação – 04.05.2012