sábado, 1 de dezembro de 2012

O século XX esquecido


Reafirmar o modelo europeu de democracia do pós-guerra, como se a única alternativa fosse o totalitarismo de um ou outro tipo, só por si não serve. Mas devemos estar claramente cientes de onde viemos, e porquê – e de que não existiu nenhuma era dourada da democracia liberal europeia, quer seja antes da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950, ou em qualquer outro momento mítico.

Jan-Werner Mueller
Passaram-se 20 anos desde a dissolução da União Soviética, que para muitos historiadores marcou efectivamente o fim “do curto século XX” – um século que, tendo o seu início em 1914, foi caracterizado por prolongados conflitos ideológicos entre o comunismo, o fascismo e a democracia liberal, até esta última parecer ter saído inteiramente vitoriosa. Mas algo de estranho aconteceu a caminho do Fim da História: parecemos estar desesperados por aprender com o passado recente, mas estamos bastante inseguros sobre quais são as lições.
Evidentemente que toda a história é história contemporânea e aquilo que, particularmente, os europeus necessitam aprender actualmente com o século XX diz respeito ao poder dos extremos ideológicos em períodos difíceis – e à natureza peculiar da democracia europeia, na forma como foi construída após a Segunda Guerra Mundial.
De certa forma, hoje em dia as grandes lutas ideológicas do século XX parecem ter a proximidade e a relevância dos debates escolásticos da Idade Média – sobretudo, mas não apenas, para as gerações mais novas. Quem é que, hoje em dia, compreende, nem que seja vagamente – ou se dará ao trabalho de tentar compreender – os grandes dramas políticos de intelectuais como Arthur Koestler e Victor Serge, que arriscaram as suas vidas pelo comunismo e posteriormente contra este?
No entanto, permanecemos enredados, muito para além do que a maioria de nós quer admitir, com os conceitos e nas categorias das guerras ideológicas do século XX. Isto foi bastante evidente nas respostas intelectuais ao terror islâmico: termos como “Islamofascismo” ou o “terceiro totalitarismo” foram criados não apenas para caracterizar um novo inimigo do Ocidente, mas também para evocar a experiência das lutas antitotalitárias que precederam e sucederam a Segunda Guerra Mundial. 
Termos como estes procuram legitimidade no passado tentam explicar o presente – de uma forma que a maioria dos estudiosos sérios do Islão ou do terrorismo nunca consideraram muito útil. Tais analogias parecem reflectir mais um desejo de voltar a travar antigas batalhas, do que reforçar a análise política sobre os eventos contemporâneos.
Assim sendo, como deverá ser entendida a herança ideológica do século XX? Para começar, é preciso deixar de considerar o século XX como um parêntesis histórico recheado de experiências patológicas conduzidas por pensadores e políticos loucos, como se a democracia liberal já existisse antes daquelas experiências e apenas necessitasse de ser reanimada após o insucesso daqueles.
Não é um pensamento agradável – e, de certa forma, é até perigoso – mas constata-se que muitas pessoas, não apenas ideólogos, depositaram as suas esperanças nas experiências autoritárias e totalitárias do século XX, considerando políticos como Mussolini e até Estaline como pessoas que resolviam os problemas, enquanto os democratas liberais foram descartados como fracassados indecisos.
Não se trata de arranjar desculpas – não é verdade que compreender é sinónimo de perdoar. Pelo contrário, qualquer compreensão correcta das ideologias deve ter em conta o seu poder de seduzir e até de convencer genuinamente as pessoas que pouco se importam com o seu apelo emocional – quer seja de orgulho ou de ódio – mas que consideram ser aquelas que realmente oferecem soluções políticas racionais. Devemos recordar que Mussolini e Hitler foram conduzidos ao poder por um rei e por um general reformado, respectivamente – por outras palavras, por elites tradicionais e não por fanáticos arruaceiros. 
Em segundo lugar, é necessário reconhecer a natureza especial e inovadora da democracia criada pelas elites da Europa Ocidental após 1945. À luz da experiência totalitária, deixaram de identificar a democracia com soberania parlamentar – a interpretação clássica da democracia representativa moderna em toda parte, excepto nos Estados Unidos. Nunca mais deverá o poder ser simplesmente cedido a um Hitler ou a um Pétain por uma assembleia parlamentar. Em vez disso, os arquitectos da democracia europeia do pós-guerra optaram por instituir o máximo possível de instrumentos de controlo e de equilíbrio – e, contrariamente, por aumentar o poder das instituições não eleitas para fortalecer a democracia liberal no seu todo.
O exemplo mais significativo são os tribunais constitucionais – diferentes do Supremo Tribunal dos EUA e com a tarefa específica de assegurar o respeito pelos direitos individuais. Até mesmo os países com uma desconfiança tradicional relativamente a um “governo de juízes” – como é o caso clássico da França – acabaram por aceitar este modelo de democracia confinada. E quase todos os países da Europa Central e Oriental o adoptaram após 1989. Importa também referir que as instituições europeias – especialmente o Tribunal de Justiça Europeu e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – também se incluem neste entendimento da democracia através dos mecanismos antidemocráticos prima facie.Actualmente, muitos europeus estão claramente descontentes com esta concepção da democracia. Muitos têm a impressão que o continente está a entrar naquilo a que o cientista político Colin Crouch denominou uma era “pós-democrática”. Cada vez mais os cidadãos reclamam que as elites políticas não os representam devidamente e que as instituições eleitas directamente – especialmente os parlamentos nacionais – se vêm forçadas a ceder perante órgãos não eleitos, tais como os bancos centrais. O resultado são os protestos sociais acalorados e o rápido crescimento de partidos populistas por todo o continente.
Reafirmar o modelo europeu de democracia do pós-guerra, como se a única alternativa fosse o totalitarismo de um ou outro tipo, só por si não serve. Mas devemos estar claramente cientes de onde viemos, e porquê – e de que não existiu nenhuma era dourada da democracia liberal europeia, quer seja antes da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950, ou em qualquer outro momento mítico.
Há muito que os cidadãos europeus confiam o trabalho da democracia às elites – e parecem até, muitas vezes, preferir elites não eleitas. Se pretenderem agora modificar o contrato social (e partindo do princípio que a democracia directa continua a ser impossível), a mudança terá de se basear numa consciência clara de fundamento histórico de quais são as inovações realmente necessárias para a democracia europeia – e em quem os europeus realmente confiam para ser depositários do poder. Essa discussão ainda mal começou.


Jean-Werner Mueller – Professor de ciência política da Universidade de Princeton – 30.11.2011