Reafirmar o modelo europeu de democracia
do pós-guerra, como se a única alternativa fosse o totalitarismo de um ou outro
tipo, só por si não serve. Mas devemos estar claramente cientes de onde viemos,
e porquê – e de que não existiu nenhuma era dourada da democracia liberal
europeia, quer seja antes da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950, ou em qualquer outro momento mítico.
Jan-Werner Mueller
Passaram-se 20 anos desde a
dissolução da União Soviética, que para muitos historiadores marcou
efectivamente o fim “do curto século XX” – um século que, tendo o seu início em
1914, foi caracterizado por prolongados conflitos ideológicos entre o
comunismo, o fascismo e a democracia liberal, até esta última parecer ter saído
inteiramente vitoriosa. Mas algo de estranho aconteceu a caminho do Fim da
História: parecemos estar desesperados por aprender com o passado recente, mas
estamos bastante inseguros sobre quais são as lições.
Evidentemente que toda a história é
história contemporânea e aquilo que, particularmente, os europeus necessitam
aprender actualmente com o século XX diz respeito ao poder dos extremos
ideológicos em períodos difíceis – e à natureza peculiar da democracia europeia,
na forma como foi construída após a Segunda Guerra Mundial.
De certa forma, hoje em dia as
grandes lutas ideológicas do século XX parecem ter a proximidade e a relevância
dos debates escolásticos da Idade Média – sobretudo, mas não apenas, para as
gerações mais novas. Quem é que, hoje em dia, compreende, nem que seja
vagamente – ou se dará ao trabalho de tentar compreender – os grandes dramas
políticos de intelectuais como Arthur Koestler e Victor Serge, que arriscaram
as suas vidas pelo comunismo e posteriormente contra este?
No entanto, permanecemos enredados,
muito para além do que a maioria de nós quer admitir, com os conceitos e nas
categorias das guerras ideológicas do século XX. Isto foi bastante evidente nas
respostas intelectuais ao terror islâmico: termos como “Islamofascismo” ou o
“terceiro totalitarismo” foram criados não apenas para caracterizar um novo
inimigo do Ocidente, mas também para evocar a experiência das lutas
antitotalitárias que precederam e sucederam a Segunda Guerra Mundial.
Termos como estes procuram
legitimidade no passado tentam explicar o presente – de uma forma que a maioria
dos estudiosos sérios do Islão ou do terrorismo nunca consideraram muito útil.
Tais analogias parecem reflectir mais um desejo de voltar a travar antigas
batalhas, do que reforçar a análise política sobre os eventos contemporâneos.
Assim sendo, como deverá ser
entendida a herança ideológica do século XX? Para começar, é preciso deixar de
considerar o século XX como um parêntesis histórico recheado de experiências
patológicas conduzidas por pensadores e políticos loucos, como se a democracia
liberal já existisse antes daquelas experiências e apenas necessitasse de ser
reanimada após o insucesso daqueles.
Não é um pensamento agradável – e, de
certa forma, é até perigoso – mas constata-se que muitas pessoas, não apenas
ideólogos, depositaram as suas esperanças nas experiências autoritárias e
totalitárias do século XX, considerando políticos como Mussolini e até Estaline
como pessoas que resolviam os problemas, enquanto os democratas liberais foram
descartados como fracassados indecisos.
Não se trata de arranjar desculpas –
não é verdade que compreender é sinónimo de perdoar. Pelo contrário, qualquer
compreensão correcta das ideologias deve ter em conta o seu poder de seduzir e
até de convencer genuinamente as pessoas que pouco se importam com o seu apelo
emocional – quer seja de orgulho ou de ódio – mas que consideram ser aquelas
que realmente oferecem soluções políticas racionais. Devemos recordar que
Mussolini e Hitler foram conduzidos ao poder por um rei e por um general
reformado, respectivamente – por outras palavras, por elites tradicionais e não
por fanáticos arruaceiros.
Em segundo lugar, é necessário
reconhecer a natureza especial e inovadora da democracia criada pelas elites da
Europa Ocidental após 1945. À luz da experiência totalitária, deixaram de
identificar a democracia com soberania parlamentar – a interpretação clássica
da democracia representativa moderna em toda parte, excepto nos Estados Unidos.
Nunca mais deverá o poder ser simplesmente cedido a um Hitler ou a um Pétain
por uma assembleia parlamentar. Em vez disso, os arquitectos da democracia
europeia do pós-guerra optaram por instituir o máximo possível de instrumentos
de controlo e de equilíbrio – e, contrariamente, por aumentar o poder das
instituições não eleitas para fortalecer a democracia liberal no seu todo.
O exemplo mais significativo são os
tribunais constitucionais – diferentes do Supremo Tribunal dos EUA e com a tarefa
específica de assegurar o respeito pelos direitos individuais. Até mesmo os
países com uma desconfiança tradicional relativamente a um “governo de juízes”
– como é o caso clássico da França – acabaram por aceitar este modelo de
democracia confinada. E quase todos os países da Europa Central e Oriental o
adoptaram após 1989. Importa também referir que as instituições europeias –
especialmente o Tribunal de Justiça Europeu e o Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem – também se incluem neste entendimento da democracia através dos
mecanismos antidemocráticos prima facie.Actualmente, muitos
europeus estão claramente descontentes com esta concepção da democracia. Muitos
têm a impressão que o continente está a entrar naquilo a que o cientista
político Colin Crouch denominou uma era “pós-democrática”. Cada vez mais os
cidadãos reclamam que as elites políticas não os representam devidamente e que
as instituições eleitas directamente – especialmente os parlamentos nacionais –
se vêm forçadas a ceder perante órgãos não eleitos, tais como os bancos
centrais. O resultado são os protestos sociais acalorados e o rápido
crescimento de partidos populistas por todo o continente.
Reafirmar o modelo europeu de
democracia do pós-guerra, como se a única alternativa fosse o totalitarismo de
um ou outro tipo, só por si não serve. Mas devemos estar claramente cientes de
onde viemos, e porquê – e de que não existiu nenhuma era dourada da democracia
liberal europeia, quer seja antes da Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950, ou
em qualquer outro momento mítico.
Há muito que os cidadãos europeus confiam
o trabalho da democracia às elites – e parecem até, muitas vezes, preferir
elites não eleitas. Se pretenderem agora modificar o contrato social (e
partindo do princípio que a democracia directa continua a ser impossível), a
mudança terá de se basear numa consciência clara de fundamento histórico de
quais são as inovações realmente necessárias para a democracia europeia – e em
quem os europeus realmente confiam para ser depositários do poder. Essa
discussão ainda mal começou.
Jean-Werner Mueller – Professor de ciência política da Universidade de
Princeton – 30.11.2011