Para Habermas, a crítica da razão
instrumental só ganha sentido pleno se acompanhada de uma ampliação do conceito
de racionalidade. Só é possível criticar o predomínio da racionalidade
instrumental se o critério da crítica é um conceito de razão que vai além da
relação meios e fins.
Luiz Repa
Se um leitor pouco disposto a escalar as duas
montanhas, isto é, os dois volumes da Teoria do Agir Comunicativo,
indagasse sobre um atalho para chegar ao âmago da obra, a melhor proposta seria
saltar de pára-quedas sobre os topos, ou seja, começar a leitura por seus
capítulos finais.
Os capítulos que encerram os dois tomos – “De
Lukács a Adorno – Racionalização como Reificação” e “Consideração final – De
Parsons a Marx através de Weber” – apresentam o essencial do projeto:
reconstruir a Teoria Crítica e atualizar o diagnóstico de época, a análise das
sociedades capitalistas modernas mais avançadas.
O impacto da obra não poderia ter sido maior quando
lançada em 1981. Jürgen Habermas, o ex-assistente de Theodor W. Adorno no
Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, o centro institucional da Teoria
Crítica desde os anos 1930, erguia uma crítica severa a seus antecessores –
principalmente Adorno e Max Horkheimer – a fim de mostrar que a Teoria Crítica
se encaminhara para um beco sem saída e que o diagnóstico de época proposto por
eles perdera seu prazo de validade.
Vale lembrar que o diagnóstico de Adorno e
Horkheimer, cristalizado na expressão “mundo administrado”, já havia
significado uma considerável divergência em relação ao de Marx. Para eles, as
tendências que, de acordo com Marx, levariam a uma sociedade emancipada não se
comprovaram. Eles deixam de projetar uma crise sistêmica do capitalismo, dadas
as possibilidades de intervenção e administração estatal sobre a economia.
Tampouco consideram plausível a intensificação da
luta de classes entre proletariado e burguesia, uma vez que são visíveis não a
pauperização e a homogeneização da classe trabalhadora, mas antes a
diferenciação social interna nessa mesma classe e uma melhora notável no padrão
de vida de grande parte da população.
Além disso, contrariando o teorema de Marx, o
desenvolvimento das forças produtivas, da técnica e da ciência foi colossal
desde os meados do século XIX, mas não acarretou conflitos estruturais com as
relações de produção. Em vez disso, a ciência e a técnica se tornaram
instrumentos privilegiados de dominação. Por fim, toda consciência crítica se
vê acuada diante da fabricação consciente de ideologias, a qual Adorno
identificou com o conceito de “indústria cultural”.
Não por acaso, tal diagnóstico se dá nos termos de
uma crítica da razão, assim como em Habermas. A explicação disso se encontra em
Max Weber e em Georg Lukács: a modernização capitalista pode ser vista, segundo
esses autores, como um processo de racionalização crescente, isto é, um
processo pelo qual a sociedade se estrutura e se reproduz segundo critérios
tidos por racionais. É por isso que a crítica filosófica da razão coincide com
uma crítica social da realidade moderna.
É nesse contexto que surge o conceito-chave de
razão instrumental, a qual teria se imposto no processo de modernização, na
racionalização e no esclarecimento científico do mundo, cujas origens remontam,
porém, às relações mitológicas do homem com a natureza. Seguindo esse padrão de
racionalidade, só é possível decidir racionalmente sobre os melhores meios para
alcançar determinados fins; sobre os próprios fins não há fundamentação
racional. Enfim, o mundo administrado seria o contexto de ofuscamento em que
predomina a racionalidade instrumental e reificadora.
Para Habermas, no entanto, a crítica da razão
instrumental só ganha sentido pleno se acompanhada de uma ampliação do conceito
de racionalidade. Só é possível criticar o predomínio da racionalidade
instrumental se o critério da crítica é um conceito de razão que vai além da
relação meios e fins.
Para tanto, ele desenvolve, recorrendo a diversos
autores da filosofia da linguagem, o conceito de racionalidade comunicativa. A
relevância prática e social desse conceito é atestada, por sua vez, por uma
teoria do agir (ou da ação, para usar um vocabulário mais técnico)
comunicativo. Nesse tipo de ação social, a linguagem como tal implica uma
lógica intersubjetiva em que os agentes têm de se relacionar entre si como
sujeitos ao mesmo tempo iguais e diferentes.
Uma vez que ninguém pode disponibilizar a linguagem
a bel-prazer, a ação comunicativa não seria de modo algum episódica. Aos olhos
de Habermas, toda vez que realizamos um ato de fala, ou seja, fazemos um
proferimento para um outro, não podemos escapar à lógica intersubjetiva segundo
à qual reivindicamos necessariamente, da perspectiva do outro, uma pretensão de
validade para o que proferimos. Isso se aplica às manifestações mais banais,
como simples constatações, até os enunciados mais complexos.
Assim, erguemos com nossos atos de fala cotidianos
pretensões de validade como verdade, correção normativa e veracidade. Nossos
atos de fala podem ser aceitos ou rejeitados no que concerne à referência
verdadeira aos estados de coisa descritos, à relação correta com o conjunto de
normas pressupostas na interação ou, simplesmente, à relação veraz dos agentes
com seus respectivos mundos subjetivos.
O reconhecimento da validade do que é dito é
importante para o prosseguimento da interação. Ele significa um acordo,
geralmente implícito, que orienta a ação de cada um dos agentes envolvidos. No
entanto, esse acordo só poderia motivar cada um a agir em confiança mútua
porque cada um dá implicitamente a garantia recíproca de que há razões para a
validade que foi associada ao ato de fala.
Assim, no caso de contestações ou dúvidas, os
agentes passam a argumentar para sustentar ou rejeitar a validade do que foi
dito.
Segundo Habermas, na prática comunicativa
cotidiana, as argumentações – ou, no seu vocabulário, os discursos – são raras,
porém explicitam todas as dimensões de racionalidade inscritas na ação
comunicativa. Essas dimensões se referem a todos os procedimentos que devem
possibilitar um consenso entre os participantes, tais como máxima liberdade de
expressão, máxima igualdade de direitos e inclusão de todos os possíveis
concernidos.
Se esses procedimentos não são reciprocamente
pressupostos pelos participantes, eles próprios não consideram que participam
de uma discussão efetiva. A racionalidade e – o mais importante para a Teoria
Crítica – os potenciais de emancipação não se encontram nos consensos
alcançados, os quais são sempre falíveis, mas nos procedimentos da discussão
livre e igualitária.
Por isso é também um equívoco tomar Habermas como
um filósofo do consenso, já que estão em jogo para ele as possibilidades
libertadoras da discussão.
Segundo Habermas, esse potencial de emancipação não
pode ser subestimado, visto que nenhuma socialização é possível sem recurso à
linguagem (e nenhuma linguagem natural pode ser privada de seu uso
comunicativo), que nenhuma tradição cultural independe da linguagem, que
nenhuma norma pode se impor somente à força, mas depende também de consensos
considerados legítimos.
No caso das sociedades modernas, a ação
comunicativa se torna ainda mais estrutural, já que não existe nelas um saber
capaz de predeterminar todas as esferas da vida, como era o caso das visões
míticas e religiosas do mundo nas sociedades tradicionais.
Isso significa que o processo de racionalização não
representou apenas o desenvolvimento da ciência e da técnica, como enfatizaram
Adorno e Horkheimer, mas também uma dependência cada vez maior de todos os
contextos de interação social em relação a procedimentos argumentativos.
Analisado dessa forma, o processo de racionalização
implica também a dependência da legitimação do poder em relação aos
procedimentos democráticos, o que significa dizer que o capitalismo tem de
lidar sempre com a democracia de massa. E esta, por sua vez, com uma esfera
pública que remete, em princípio, ao potencial de discussões cada vez mais
abertas e livres.
Com isso, Habermas pode absorver o conteúdo de
verdade do diagnóstico de Adorno e Horkheimer, sem concordar com o esgotamento
dos potenciais emancipatórios.
Ele concorda com os seus antecessores sobre a
caducidade das perspectivas revolucionárias de Marx, mas não conclui daí que a
emancipação tenha desaparecido do horizonte. O lamento pela revolução perdida
cede lugar à atenção pelas ambivalências modernas e pelas conquistas
democráticas.
Trata-se de pensar em formas de vida emancipadas no
plural, ligadas a movimentos sociais com demandas que não se vinculam mais – ou
pelo menos não diretamente – à transformação das relações de trabalho. As
formas de vida emancipadas têm de ser analisadas no contexto de um novo conflito,
que está no centro do diagnóstico habermasiano: o embate entre o mundo da vida
e o sistema.
Nesse diagnóstico, as patologias e os conflitos
modernos podem ser reportados na maior parte a uma tendência de colonização
sistêmica do mundo da vida.
Isso quer dizer que os sistemas dinheiro e poder
(economia capitalista e burocracia estatal) se autonomizam em relação aos
contextos de interação comunicativa e passam a penetrar os âmbitos do mundo da
vida (a esfera privada da família e das amizades e a esfera pública), cuja
reprodução depende do uso comunicativo da linguagem.
Como os sistemas dinheiro e poder se reproduzem por
meio de ações estratégicas e instrumentais, a monetarização e a burocratização
das relações sociais que eles acarretam levam inevitavelmente a distúrbios e
reações de resistência do mundo da vida. Levam em geral a formas distorcidas de
comunicação, de maneira que os participantes sofrem uma coerção sistemática
para considerar os outros e a si mesmos como objetos manipuláveis.
Por outro lado, os novos movimentos sociais (o
feminista, o estudantil, o ecológico etc.) representam reações do mundo da vida
à invasão sistêmica, lutando por formas autônomas de convívio social. Dessa
maneira, a teoria da ação comunicativa tem de ser lida como uma teoria sobre um
novo tipo de conflito estrutural, relativamente desligado das classes sociais e
atravessando a sociedade por inteiro.
As três décadas que nos separam da aparição
da Teoria do Agir Comunicativo permitem uma visão mais clara
tanto de sua fecundidade quanto de seus limites históricos.
De um lado, a teoria da ação comunicativa estimulou
teóricas feministas, como Seyla Benhabib, Nancy Fraser e Iris Young, a repensar
os conflitos em que se envolvem os movimentos sociais. Além disso, como
demonstra a obra de Andrew Arato e Jean Cohen, ela serviu de base para o
desenvolvimento de um conceito de sociedade civil que se diferencia tanto do
mercado como do Estado. Também possibilitou novos impulsos para um modelo de
democracia deliberativa que serviria de alternativa às ideias de democracia
representativa e participativa.
Por outro lado, a crise do Estado de Bem-Estar
Social, já observada em 1981, intensificou-se a tal ponto que dificilmente se
pode tirar da ordem do dia a premência das questões materiais e distributivas.
Soma-se a isso a diminuição do espaço de ação política que os Estados nacionais
sofrem por conta da globalização econômica. Conflitos pouco analisados na obra
de 1981, como os ligados ao fundamentalismo religioso, aparecem de maneira
significativa mesmo em sociedades supostamente racionalizadas.
A obra posterior de Habermas aborda todos esses
problemas, o que demonstra sua disposição incomum de atualização contínua.
Luiz Repa - Professor de filosofia na Universidade Federal do
Paraná – Julho 2012
Obra resenhada:
Teoria do Agir Comunicativo - Jürgen Habermas, Trad.: Paulo Astor Soethe e
Flávio Beno Siebeneichler, WMF Martins Fontes, 730 págs. (vol. 1), 824 págs.
(vol. 2)
IN Revista Cult
n. 170 – http://revistacult.uol.com.br/home/2012/07/o-sistema-contra-a-vida/