O debate sobre a regulação dos meios de
comunicação gera controvérsias em todo o continente. De um lado, movimentos
sociais desejam estabelecer novas regras de funcionamento a um setor que se
modifica rapidamente. De outro, empresas acusam tais articulações de quererem
uma volta da censura. O que há por trás de cada formulação?
Gilberto
Maringoni e Verena Glass
Uma polêmica ronda a América Latina. Ela toca em pontos sensíveis e
várias ordens de interesses. Trata-se das propostas envolvendo a elaboração de
novas legislações para os meios de comunicação em alguns países do continente.
Isso acontece especialmente na Venezuela, Argentina, Equador e Bolívia.
No Brasil ainda não há uma decisão de governo a respeito.
O pano de fundo é a mudança no panorama político continental a partir da
virada do século. Em alguns países há uma reação ao modelo de matiz liberal,
adotado nos anos 1980-90. Assim, as disputas em torno da comunicação envolvem
diversas concepções políticas.
A área de comunicações tem se mostrado particularmente sensível às
demandas por novas regras de funcionamento. As empresas de mídia, por lidarem
com difusão de ideias, valores e abordagens subjetivas, alegam que a pretensão
dos que advogam a criação de novas normas é implantar a censura e o cerceamento
à livre circulação de ideias. Os defensores das mudanças afirmam o contrário.
Dizem que o setor é monopolizado e que um novo pacto legal teria por base a
defesa de um pluralismo de opiniões.
Além disso, uma série de progressos técnicos tornou obsoletas as
políticas públicas de comunicação estabelecidas há mais de duas décadas.
As primeiras legislações sobre meios de comunicação no continente foram
criadas no período do nacional desenvolvimentismo, entre os anos 1930 e 1960,
tendo como marca inspiradora a estratégia de substituição de importações. Seus
pressupostos básicos eram a definição do espectro radioelétrico como espaço
público (que funcionaria em regime de concessão à iniciativa privada) e a não
permissão para que estrangeiros fossem proprietários de empresas ou meios.
As políticas de abertura das economias, privatizações e enfraquecimento
dos poderes de fiscalização e regulação do poder público resultaram em várias
situações de hiatos legais. A constituição de agências reguladoras, de
composição tripartite – Estado, empresas e sociedade civil –, em alguns casos,
deixou as sociedades a mercê de oscilações e da volatilidade dos mercados.
Com a entrada em cena de novas tecnologias, esse cipoal legal tende a
ficar superado.
Tecnologia e Economia
Há em curso um processo de internacionalização das empresas de
comunicação na América Latina. Ele obedece pelo menos duas dinâmicas, uma
tecnológica e outra econômica.
A primeira delas, a tecnológica, refere-se ao grande salto realizado
pela microeletrônica nos últimos quarenta anos e que poderia ser sintetizado
pela convergência de mídias, observada a partir da segunda metade dos anos
1990. Telefonia, televisão, rádio, transmissão de dados, cinema e música
passaram a confluir e a se apoiar cada vez mais em plataformas comuns. No
âmbito legal, isso fez com que lógicas balizadoras nas décadas anteriores, que
tratam separadamente de televisão, rádio, indústria cinematográfica e
fonográfica e telefonia ficassem obsoletas.
Como conviver com leis que impediam a participação de estrangeiros em
grupos de mídia, se as empresas de telefonia, privatizadas e desnacionalizadas,
estão não apenas no mercado de internet, mas no de televisão, de
radiofonia e de produção de conteúdos? Como submeter tais empresas às
jurisdições nacionais?
A segunda variável dessa equação tem contornos na dinâmica da economia.
A abertura dos países do sul do mundo à globalização, através dos pontos
definidos pelo Consenso de Washington (1989), acarretou ampliação da liberdade
de circulação de capitais, incremento de investimentos em carteira, compra de
empresas, joint-ventures e fusões de toda ordem.
Ativos negociados nas grandes bolsas internacionais mudam rapidamente de
mãos e sociedades são feitas e desfeitas com a rapidez de um impulso
eletrônico. Acionistas majoritários tornam-se minoritários da noite para o dia.
Na lógica dos negócios, não haveria razões para que empresas de comunicação
seguissem senda diversa.
Desterritorialização das empresas
Outra novidade da invenção da tecnologia digital e das redes virtuais é
a desterritorialização das empresas de comunicação.
Até o advento da revolução digital (1980- 90) as empresas de comunicação
precisavam estar sediadas no país em que operavam. Não se tratava apenas de uma
exigência legal, baseada no ideário do nacional- -desenvolvimentismo. Toda uma
teia de negócios, especialmente aqueles ligados à publicidade e ao
financiamento dos meios, estava ancorada em fronteiras definidas.
Agora, um provedor de internet, um sítio, portal ou uma
emissora de TV a cabo pode emitir conteúdo de qualquer parte do globo para
qualquer país, sem necessidade de antenas transmissoras ou equipamentos
sofisticados.
O problema central é que os provedores de internet e as emissoras de TV
a cabo não são classificáveis como empresas produtoras de conteúdo
informacional pelas antigas legislações.
A privatização das teles na América Latina, nos anos 1980-90, abriu uma
caixa de Pandora. Foram vendidos monopólios de telefonia do Estado. É possível
que os governantes que patrocinaram tais ações não vislumbrassem estar às
portas de uma reviravolta tecnológica que possibilitaria a convergência de
mídias e ultrapassaria as fronteiras.
As empresas de telefonia, por exemplo, que nos anos 1990 tinham a seu
cargo apenas a comunicação de voz à distância, consolidaram-se, duas décadas
depois, como os maiores provedores de internet da região e apresentam um poder
de fogo dificilmente igualado por qualquer rede de TV tradicional.
Atualmente televisão, rádio, telefonia, cinema, literatura, audição
musical, transmissão de dados, instrumentos de navegação e outros podem ser
captadas por um mesmo smartphone. Mas cada uma daquelas funções
obedece a regras específicas.
Provedores de internet apresentam tecnologia para produzir e transmitir
conteúdos. Como os provedores não estão enquadrados nas antigas normas legais,
suas atrações podem ser produzidas em qualquer parte do mundo e enviados, com
características locais, a qualquer país. Ao mesmo tempo, como as empresas
globais possuem representações também em cada país, uma complicada cadeia de
brechas nas antigas regulações foi aproveitada para legalizar as novas firmas.
Cepal e Ipea
Em 2003, a Cepal (Comissão Econômica da América Latina e Caribe), órgão
da ONU, lançou o livro Los caminos hacia uma sociedad de la información
em América Latina y el Caribe.
Embora defasado no quesito tecnologia, o estudo de 130 páginas busca dar
conta das implicações da convergência tecnológica, dos marcos regulatórios até
então existentes, do financiamento e do capital humano, entre outros. Segundo o
documento:
“O ponto de partida na tarefa de criar um marco regulatório para a
sociedade da informação é o respeito pelos direitos humanos fundamentais”.
O pesquisador argentino Martin Becerra, em entrevista concedida em
outubro de 2011, comenta a situação da América Latina diante do novo quadro do
setor. Para ele,
“Na América Latina, há uma falta de tradição no controle estatal da
regulação sobre os meios de comunicação, se comparamos com a situação da Europa
ou da América do Norte. (...) Uma perspectiva democratizadora deveria orientar
a ação do setor dos meios de comunicação à regulação equânime, pública,
transparente e equitativa”.
Os pesquisadores do Ipea Fernanda De Negri e Leonardo
Costa Ribeiro, publicaram no boletim Radar Ipea nº 7, de
outubro de 2010, um artigo intitulado “Tendências tecnológicas mundiais em
telecomunicações – Índice de medo do desemprego”. De acordo com eles,
“Recentemente, um estudo realizado pela Comissão Europeia mostrou que
grande parte da distância existente entre Estados Unidos e Europa em termos de
investimentos privados em P&D se deve ao setor de TICs (Tecnologias de
Informação e Comunicação).
O setor privado norte-americano investe 1,88% do produto interno bruto
(PIB) em P&D, contra 1,19% do setor privado europeu. No setor de TICs,
estes investimentos são de 0,65% do PIB nos EUA e 0,31% na Europa. (...) No
caso brasileiro, as diferenças – em termos de recursos alocados em P&D – em
relação aos EUA e à Europa são ainda mais marcantes. O setor privado brasileiro
investe, segundo dados de 2008 do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT),
cerca de 0,5% do PIB em P&D, entre os quais apenas 20%, ou 0,1% do PIB, são
realizados pelos setores de TICs.
As novas leis
Na Venezuela (2000), na Argentina (2009) e na Bolívia (2011) foram
aprovadas normas para regulamentar a atividade de comunicação. No Equador, em
dezembro de 2011, a Assembleia Nacional discutia novas regras para o setor. O
México possui uma legislação aprovada em 1995, que não impõe restrições ao
capital externo. No Brasil, o debate sobre uma nova legislação faz parte da
demanda de diversos setores sociais. Mas ainda não entrou na pauta
político-institucional do país.
ARGENTINA. A legislação mais abrangente e detalhada para o setor de comunicações
dos anos recentes foi promulgada na Argentina, em 2009. A própria presidente
Cristina Kirschner presidiu reuniões na Casa Rosada com líderes sindicais e
estudantis, proprietários de empresas de comunicação, produtores independentes,
reitores de universidades, diretores e professores das faculdades de
comunicação, líderes de igrejas e associações de rádios e televisões
comunitárias para apresentar ideias e sugestões.
A Ley de Medios, promulgada em outubro de 2009, é longa –
166 artigos – e cheia de remissões a outras normas. Ela representa uma resposta
ousada à supremacia dos meios de comunicação no jogo político, social e
cultural da atualidade. A Ley propõe mecanismos destinados à promoção,
descentralização, desconcentração e incentivo à competição, com objetivo de
barateamento, democratização e universalização de novas tecnologias de
informação e comunicação.
Alguns pontos da lei argentina merecem destaque:
– Democratização e universalização dos serviços;
– Criação da Autoridade Federal dos Serviços de Comunicação Audiovisual,
órgão autárquico e descentralizado, que tem a função de aplicar, interpretar e
fiscalizar o cumprimento da lei;
– Criação do Conselho Federal de Comunicação Audiovisual da defensoria
pública de serviços de comunicação audiovisual, para atender reclamações e
demandas populares diante dos meios de comunicação;
– Combate à monopolização – nenhum operador prestará serviços a mais de
35% da população do país. Quem possuir um canal de televisão aberta não poderá
ser dono de uma empresa de TV a cabo na mesma localidade;
– Concessões de dez anos, prorrogáveis por mais dez;
– Reserva de 33% dos sinais radioelétricos, em todas as faixas de
radiodifusão e de televisão terrestres em todas as áreas de cobertura para as
organizações sem fins lucrativos;
– Os povos originários terão direito a dispor de faixas de AM, FM e de
televisão aberta, assim como as universidades públicas.
BOLÍVIA. Em 10 de agosto de 2011, o presidente Evo Morales promulgou a Ley
general de telecomunicaciones, tecnologias de información y comunicación,
que estabelece um marco regulatório para a propriedade privada de rádio e
televisão e garante vários direitos aos chamados povos originários. O dispositivo
legal também criou um processo de licitação pública para as concessões, e
estipulou requisitos a serem cumpridos pelas concessionárias privadas.
A norma é menos abrangente que sua correspondente argentina, mas caminha
na mesma direção: fortalecer instrumentos legais do poder público na supervisão
da atividade de comunicação. Assim, o espectro redioelétrico, nos termos da
lei, segue em mãos do Estado, “que o administrará em seu nível central”.
A grande novidade do conjunto de normas, que envolve 113 artigos, é a distribuição de frequências por setores: Estado, até 33 por cento; Comercial, até 33 por cento; Social comunitária, até 17 por cento e Povos indígenas, camponeses e comunidades interculturais e afrobolivianas, até 17 por cento.
As concessões das frequências do Estado serão definidas pelo Poder Executivo. Já para o setor comercial, haverá licitações públicas e no caso do setor social comunitário – povos originários, camponeses e afrobolivianos –,as concessões serão feitas mediante concurso de projetos, com indicadores objetivos. A lei estabelece ainda que a sociedade civil organizada participará do desenho das políticas públicas em tecnologia de telecomunicações, tecnologias de informação e comunicação e serviço postal, exercendo o controle social em todos os níveis de Estado sobre a qualidade dos serviços públicos.
A grande novidade do conjunto de normas, que envolve 113 artigos, é a distribuição de frequências por setores: Estado, até 33 por cento; Comercial, até 33 por cento; Social comunitária, até 17 por cento e Povos indígenas, camponeses e comunidades interculturais e afrobolivianas, até 17 por cento.
As concessões das frequências do Estado serão definidas pelo Poder Executivo. Já para o setor comercial, haverá licitações públicas e no caso do setor social comunitário – povos originários, camponeses e afrobolivianos –,as concessões serão feitas mediante concurso de projetos, com indicadores objetivos. A lei estabelece ainda que a sociedade civil organizada participará do desenho das políticas públicas em tecnologia de telecomunicações, tecnologias de informação e comunicação e serviço postal, exercendo o controle social em todos os níveis de Estado sobre a qualidade dos serviços públicos.
Por fim, a lei afirma que todas as instâncias de governo – federal, provincial
e municipal – garantirão espaços para a organização popular exercer esse
direito.
VENEZUELA. Na Venezuela, a Lei Orgânica de Telecomunicações foi aprovada em março
de 2000. Trata-se de uma norma extensa, com 224 artigos, que “estabelece um
marco legal de regulação geral das telecomunicações, a fim de garantir o
direito humano das pessoas à comunicação e à realização das atividades
econômicas de telecomunicações necessárias para consegui-lo, sem mais
limitações que a Constituição e as leis”.
A lei também reserva a exploração dos serviços de telecomunicações a
pessoas domiciliadas no país. O órgão responsável por supervisionar os serviços
é o Ministério da Infraestrutura, e foi criada a Comissão Nacional de
Telecomunicações (Conatel), “instituto autônomo, dotado de personalidade
jurídica e patrimônio próprio (...) com autonomia técnica, financeira, organizativa
e administrativa” para “administrar, regular, ordenar e controlar o espaço
radioelétrico”.
O tempo de concessões de frequências de rádio e televisão é estipulado
para um período máximo de 15 anos, podendo ou não ser prorrogado. E foram
estabelecidas sanções aos concessionários que vão de admoestação pública,
multa, e revogação da concessão à prisão dos responsáveis.
A nova legislação também regulamenta o mercado secundário de concessões.
A subscrição de um acordo de fusão entre empresas operadoras de
telecomunicações, a aquisição total ou parcial dessas companhias por outras
empresas operadoras assim como a divisão ou criação de filiais que explorem os
serviços de telecomunicações, quando impliquem mudanças no controle sobre as
mesmas deverão submeter-se à aprovação da Comissão Nacional de
Telecomunicações.
BRASIL. No Brasil, onde ainda vigora o Código Nacional de Telecomunicações de
1962, apesar da vigência de novas normas – como a Lei do Cabo (1994) e da Lei
da TV Paga (2011) – não há uma regulação abrangente nessa área. Uma parcela
expressiva da sociedade organizada (movimentos populares e entidades
empresariais) e representantes do Estado realizaram, no fim de 2009, a I
Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), onde se destacaram seis pontos
centrais: um novo marco regulatório para a comunicação, a regulamentação do
artigo 221 da Constituição Federal (que trata da regionalização da programação
da televisão), os direitos autorais, a comunicação pública (radiodifusão
estatal), o marco civil da internet e a concretização do Conselho Nacional de
Comunicação. São debates que ainda aguardam desfecho.
Gilberto Maringoni e Verena Glass
– junho de 2012
IN
“Desafios do Desenvolvimento”, No 71, ano 09, IPEA - http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=2723:catid=28&Itemid=23