O
Estado atua a partir de um oneroso sistema de segurança pública sempre
paralisado por disputas de competência, fragmentação e corporativismo - que, no
entanto, demanda investimentos crescentes.
Renato Sérgio de Lima e Samira
Bueno
Muito tem sido dito nos últimos dias sobre a crise
na segurança pública em São Paulo e, mais recentemente, em Santa Catarina.
Porém, só de modo residual começam a ressurgir questionamentos acerca do modelo
que organiza as polícias brasileiras e que, em vez de dotá-las de eficiência no
enfrentamento do crime organizado e da violência, as enfraquece e as torna
reféns de estruturas burocráticas, ineficientes e arcaicas.
Os acontecimentos dos últimos três meses são
repetições de situações agudas vividas em quase todos os Estados brasileiros
nos últimos 15 anos e demonstram quão distante estamos dos padrões de
civilidade de países desenvolvidos. Segurança tem se resumido à administração
de uma constante agenda de crises, intercaladas por momentos de calmaria. Mas
até onde conseguiremos postergar esforços para a reversão estrutural dessa
situação?
O Estado, em seus vários poderes e instâncias, tem
atuado a partir de um oneroso sistema de segurança pública que fica
recorrentemente paralisado por disputas de competência, fragmentação de
políticas e jogos corporativos, mas que, paradoxalmente, demanda investimentos
crescentes para se manter.
E, infelizmente, no meio, ficam a população, sem
força política suficiente para influenciar novas agendas, e os mais de 600 mil
policiais brasileiros, que na ausência de regras claras de valorização
profissional, só são lembrados como heróis quando são mortos.
Na brecha e no cotidiano das periferias das regiões
metropolitanas, o medo e a insegurança acabam fortalecendo o crime e pautando a
relação entre polícia e comunidade, entre Estado e sociedade.
Não é possível pedir civilidade e dignidade ao
crime, mas é, sim, possível exigir racionalidade e eficiência democrática dos
gestores públicos responsáveis por fazer frente à violência, ao medo e à
criminalidade.
No lugar da cultura de ódio, que tanto marca
manifestações públicas sobre o tema, temos que defender a garantia de direitos
como o que diferencia o Estado da barbárie. Uma polícia forte não é sinônimo de
violência, de obtenção de provas por meio de coações e/ou grampos
indiscriminados.
O Brasil que queremos precisa de uma polícia forte
e valorizada e que seja conhecida da comunidade. Polícias distantes dificultam
não só a prevenção da violência, mas também a investigação de crimes. Sabendo a
quem recorrer, fica muito mais fácil confiar na polícia e ajudá-la a cumprir
sua missão.
A polícia não pode trabalhar sozinha, e criar
vínculos públicos com a comunidade tem sido uma das estratégias mais
bem-sucedidas no mundo. Ações de reorientação das práticas policiais em direção
à participação da comunidade na formulação e execução de ações (conselhos,
bases de polícia comunitária, entre outros) mostraram-se muito mais eficazes na
reconquista da legitimidade e de espaços.
A história recente das políticas de segurança nos
ensina que, entre as ações que mais tiveram êxito em reverter as taxas de
violência, o envolvimento com a comunidade tem sido mais eficiente se associado
a práticas integradas de gestão, pelas quais há uma irredutível aliança entre
técnica e política.
E, nessa aliança, as melhores práticas concentraram
suas energias no tripé aproximação com a população, uso intensivo de
informações e aperfeiçoamento da inteligência.
Por uso intensivo de informações compreendemos a
adoção de técnicas de produção de indicadores e análise de dados para
planejamento, monitoramento e avaliação de operações policiais. Elas foram
fundamentais para otimizar recursos humanos e materiais no dia a dia das
polícias.
Já no aperfeiçoamento da inteligência, queremos
destacar os esforços de coordenação dos fluxos de dados para a investigação
criminal com vistas a reduzir ruídos e produzir provas mais robustas, que
permitam punir quem comete um delito.
No entanto, por melhores que sejam essas práticas
de gestão, sem uma mudança substantiva na estrutura normativa das polícias o
quadro de insegurança hoje existente tenderá a ganhar contornos dramáticos.
Uma das lições de países que conseguiram reformar
suas polícias, como Irlanda e África do Sul, é que quando a atividade policial
deixa de ser autônoma e passa a responder à lógica das políticas públicas muito
se ganha.
Para além de soluções puramente técnicas,
percebe-se que os problemas da área podem ser mitigados quando a política está
efetivamente comprometida na construção de uma nova postura do Estado em
relação à sociedade. E, na esperança de que tal situação vire realidade,
propomos a criação de uma comissão especial do Congresso para, em seis meses,
elaborar um anteprojeto de reforma das polícias brasileiras.
Estamos diante de um momento ímpar, pelo qual as
crises acontecem num ambiente de consenso de que algo precisa ser feito. Dito
isso, precisamos de um passo adiante na busca de um Brasil mais seguro; um
passo que alie as melhores técnicas e vontade política de mudar.
Renato Sérgio de Lima e
Samira Bueno – Dirigentes do Forum
Brasileiro de Segurança Pública – 18.11.2012
IN “O Estado de São Paulo”, caderno “Aliás” –
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,e-hora-de-reformar-as-policias,961585,0.htm
Confesso que
apanhei
problemas como o uso
abusivo da força, tortura, corrupção e baixa taxa de esclarecimento dos delitos
persistem. E continuam a ser considerados pelas chefias das polícias como
problemas de alguns indivíduos. Não estaria na hora de serem interpretados como
indicadores de problemas estruturais?
Nancy Cardia
No dia 25 de junho passado a jovem Tayná
desapareceu, segundo informações da mãe, a caminho de casa. A mãe fez a denúncia à
polícia e procurou identificar a filha nas câmeras de vigilância ao longo do
trajeto que ela teria que percorrer. Posteriormente, familiares teriam se
queixado de que a polícia não teria levado a sério a queixa, o que talvez
explique por que em todas as primeiras notícias do desaparecimento a mãe
reiterasse que a filha "não fugiria de casa". Teria ela ouvido tal
sugestão na delegacia? No dia seguinte, a polícia prendeu quatro funcionários
de um parque de diversões, declarando-os suspeitos.
Moradores da região,
revoltados, incendiaram o parque. No dia seguinte (27/6), a polícia anunciou
que os quatro confessaram ter estuprado e matado Tayná, mas não haviam
conseguido explicar "onde está o corpo". Este só foi encontrado, por
moradores da região, no dia 28, em um terreno baldio - e não enterrado como,
segundo a polícia, disseram os acusados.
No dia 5 de julho, as
autoridades consideraram encerrado o inquérito policial mesmo antes do
resultado do exame de DNA nos vestígios de sêmen encontrados na roupa de Tayná.
No dia 10 de julho, o resultado revelou que o sêmen encontrado não era de
nenhum dos quatro suspeitos. Quatro dias depois, o caso voltava à estaca zero
sobre como e quem havia assassinado Tayná, e até dúvidas sobre se ocorrera ou
não estupro eram levantadas.
Quatorze pessoas, entre
elas 9 policiais civis, um policial militar, um agente da guarda municipal,
agentes penitenciários e até um preso "de confiança" foram acusados
de tortura e tiveram mandados de prisão emitidos. Os quatro funcionários do
parque disseram que foram espancados, empalados, asfixiados com sacos
plásticos, eletrocutados, forçados a fazer sexo oral entre si e um deles
relatou ter tido a cabeça enfiada num formigueiro.
Casos como este se repetem
Brasil afora desde sempre. Como afirmou o representante da OAB do Paraná, em
entrevista à Rede Globo, a polícia primeiro quer a confissão; depois, vai
procurar provas que a justifiquem. Isso em nada se assemelha ao devido processo
legal. E aí temos a clássica perversão: não investiga, não elucida ou, quando o
faz, as provas são de baixa qualidade. Resultado: impunidade garantida. O
Ministério Público não acolhe a denúncia ou o Judiciário não pronuncia os
acusados. E a polícia responsabiliza o Ministério Público e o Judiciário por
isso.
Desde 1997, a tortura está
tipificada como crime. Diversas iniciativas foram adotadas pelo governo federal
para eliminar a tortura. O Brasil recebe recomendações dos relatores especiais
das Nações Unidas sobre o que deveríamos fazer para eliminar a tortura. Porém,
a tortura continua e ocorre em todos os Estados brasileiros.
Impunidade se resolve com
investigação, esclarecimento e identificação dos autores com provas - isto
permite à justiça fazer a sua parte. Há décadas o país busca melhorar o
desempenho de sua polícia: aumenta-se o efetivo, os salários melhoram (ainda
que não satisfaçam as corporações), compram-se equipamentos, cursos,
seminários, treinamentos no exterior, missões para conhecer polícias de
diferentes países, etc. Porém problemas como o uso abusivo da força, tortura,
corrupção e baixa taxa de esclarecimento dos delitos persistem. E continuam a
ser considerados pelas chefias das polícias como problemas de alguns
indivíduos. Não estaria na hora de serem interpretados como indicadores de
problemas estruturais? Por que o interdito em se discutir a estrutura e forma
de organização das nossas polícias?
Por exemplo: a existência
de duas polícias aumenta a capacidade de esclarecer delitos e prevenir a
ocorrência/recorrência dos mesmos? Qual é o custo em termos de desempenho das
polícias, da estrutura organizacional que não permite a ascensão do policial
que entra na carreira pelo policiamento de rua ao topo da mesma (seja na PM,
seja na Polícia Civil)?
No caso específico da jovem
Tayná, tivesse a polícia civil trabalhado em conjunto com a PM na busca da
jovem e, em vez de pular imediatamente para a procura do suspeito, solicitado
informações de pessoas que tivessem circulado pela região no dia e horário,
batendo de casa em casa ou ainda realizado buscas nas áreas - como é feito em
outros países -, não aumentaria a probabilidade de terem sido eles a encontrar
o corpo? Isso teria garantido a preservação da cena do crime. Se não tivessem
tornado pública a identidade dos quatro jovens que apreenderam no parque e
torturaram fazendo-os confessar, o parque talvez não tivesse sido queimado.
Quem vai pagar pelo prejuízo do dono? Então, se tivessem esperado pelo
resultado dos exames de DNA antes de darem como concluído o inquérito policial,
a credibilidade da polícia teria sido preservada.
Alguns desses procedimentos
óbvios de investigação começaram a ser realizados apenas nos últimos dias,
quase três semanas após o ocorrido, quando qualquer cidadão informado sabe que
quanto mais tempo se passa, menor a probabilidade de se identificar o(s)
responsável(eis).
E a tortura, que lição se
tira dessa história? A julgar pelos casos estudados em São Paulo pela pesquisadora
Gorete de Jesus, há pouca chance de que os policiais envolvidos, se chegarem a
ser julgados, sejam punidos. A população de Colombo deverá permanecer
intranquila e a confiança na polícia abalada por mais tempo, para o azar de
todos nós.
Nancy Cardia – Ph.D. em Psicologia
Social pela London School of Economics and Political Sciences, é
Vice-Coordenadora do Núcleo de Estudos da violência (NEV-USP) – 21.07.2013
IN O Estado de
São Paulo – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,confesso-que-apanhei-,1055739,0.htm