terça-feira, 6 de agosto de 2013

É hora de reformar as polícias


O Estado atua a partir de um oneroso sistema de segurança pública sempre paralisado por disputas de competência, fragmentação e corporativismo - que, no entanto, demanda investimentos crescentes.

Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno
Muito tem sido dito nos últimos dias sobre a crise na segurança pública em São Paulo e, mais recentemente, em Santa Catarina. Porém, só de modo residual começam a ressurgir questionamentos acerca do modelo que organiza as polícias brasileiras e que, em vez de dotá-las de eficiência no enfrentamento do crime organizado e da violência, as enfraquece e as torna reféns de estruturas burocráticas, ineficientes e arcaicas.
Os acontecimentos dos últimos três meses são repetições de situações agudas vividas em quase todos os Estados brasileiros nos últimos 15 anos e demonstram quão distante estamos dos padrões de civilidade de países desenvolvidos. Segurança tem se resumido à administração de uma constante agenda de crises, intercaladas por momentos de calmaria. Mas até onde conseguiremos postergar esforços para a reversão estrutural dessa situação?
O Estado, em seus vários poderes e instâncias, tem atuado a partir de um oneroso sistema de segurança pública que fica recorrentemente paralisado por disputas de competência, fragmentação de políticas e jogos corporativos, mas que, paradoxalmente, demanda investimentos crescentes para se manter.
E, infelizmente, no meio, ficam a população, sem força política suficiente para influenciar novas agendas, e os mais de 600 mil policiais brasileiros, que na ausência de regras claras de valorização profissional, só são lembrados como heróis quando são mortos.
Na brecha e no cotidiano das periferias das regiões metropolitanas, o medo e a insegurança acabam fortalecendo o crime e pautando a relação entre polícia e comunidade, entre Estado e sociedade.
Não é possível pedir civilidade e dignidade ao crime, mas é, sim, possível exigir racionalidade e eficiência democrática dos gestores públicos responsáveis por fazer frente à violência, ao medo e à criminalidade.
No lugar da cultura de ódio, que tanto marca manifestações públicas sobre o tema, temos que defender a garantia de direitos como o que diferencia o Estado da barbárie. Uma polícia forte não é sinônimo de violência, de obtenção de provas por meio de coações e/ou grampos indiscriminados.
O Brasil que queremos precisa de uma polícia forte e valorizada e que seja conhecida da comunidade. Polícias distantes dificultam não só a prevenção da violência, mas também a investigação de crimes. Sabendo a quem recorrer, fica muito mais fácil confiar na polícia e ajudá-la a cumprir sua missão.
A polícia não pode trabalhar sozinha, e criar vínculos públicos com a comunidade tem sido uma das estratégias mais bem-sucedidas no mundo. Ações de reorientação das práticas policiais em direção à participação da comunidade na formulação e execução de ações (conselhos, bases de polícia comunitária, entre outros) mostraram-se muito mais eficazes na reconquista da legitimidade e de espaços.
A história recente das políticas de segurança nos ensina que, entre as ações que mais tiveram êxito em reverter as taxas de violência, o envolvimento com a comunidade tem sido mais eficiente se associado a práticas integradas de gestão, pelas quais há uma irredutível aliança entre técnica e política.
E, nessa aliança, as melhores práticas concentraram suas energias no tripé aproximação com a população, uso intensivo de informações e aperfeiçoamento da inteligência.
Por uso intensivo de informações compreendemos a adoção de técnicas de produção de indicadores e análise de dados para planejamento, monitoramento e avaliação de operações policiais. Elas foram fundamentais para otimizar recursos humanos e materiais no dia a dia das polícias.
Já no aperfeiçoamento da inteligência, queremos destacar os esforços de coordenação dos fluxos de dados para a investigação criminal com vistas a reduzir ruídos e produzir provas mais robustas, que permitam punir quem comete um delito.
No entanto, por melhores que sejam essas práticas de gestão, sem uma mudança substantiva na estrutura normativa das polícias o quadro de insegurança hoje existente tenderá a ganhar contornos dramáticos.
Uma das lições de países que conseguiram reformar suas polícias, como Irlanda e África do Sul, é que quando a atividade policial deixa de ser autônoma e passa a responder à lógica das políticas públicas muito se ganha.
Para além de soluções puramente técnicas, percebe-se que os problemas da área podem ser mitigados quando a política está efetivamente comprometida na construção de uma nova postura do Estado em relação à sociedade. E, na esperança de que tal situação vire realidade, propomos a criação de uma comissão especial do Congresso para, em seis meses, elaborar um anteprojeto de reforma das polícias brasileiras.
Estamos diante de um momento ímpar, pelo qual as crises acontecem num ambiente de consenso de que algo precisa ser feito. Dito isso, precisamos de um passo adiante na busca de um Brasil mais seguro; um passo que alie as melhores técnicas e vontade política de mudar.

Renato Sérgio de Lima e Samira Bueno – Dirigentes do Forum Brasileiro de Segurança Pública – 18.11.2012
IN “O Estado de São Paulo”, caderno “Aliás” – http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,e-hora-de-reformar-as-policias,961585,0.htm








Confesso que apanhei

problemas como o uso abusivo da força, tortura, corrupção e baixa taxa de esclarecimento dos delitos persistem. E continuam a ser considerados pelas chefias das polícias como problemas de alguns indivíduos. Não estaria na hora de serem interpretados como indicadores de problemas estruturais?

Nancy Cardia
No dia 25 de junho passado a jovem Tayná desapareceu, segundo informações da mãe, a caminho de casa. A mãe fez a denúncia à polícia e procurou identificar a filha nas câmeras de vigilância ao longo do trajeto que ela teria que percorrer. Posteriormente, familiares teriam se queixado de que a polícia não teria levado a sério a queixa, o que talvez explique por que em todas as primeiras notícias do desaparecimento a mãe reiterasse que a filha "não fugiria de casa". Teria ela ouvido tal sugestão na delegacia? No dia seguinte, a polícia prendeu quatro funcionários de um parque de diversões, declarando-os suspeitos.
Moradores da região, revoltados, incendiaram o parque. No dia seguinte (27/6), a polícia anunciou que os quatro confessaram ter estuprado e matado Tayná, mas não haviam conseguido explicar "onde está o corpo". Este só foi encontrado, por moradores da região, no dia 28, em um terreno baldio - e não enterrado como, segundo a polícia, disseram os acusados.
No dia 5 de julho, as autoridades consideraram encerrado o inquérito policial mesmo antes do resultado do exame de DNA nos vestígios de sêmen encontrados na roupa de Tayná. No dia 10 de julho, o resultado revelou que o sêmen encontrado não era de nenhum dos quatro suspeitos. Quatro dias depois, o caso voltava à estaca zero sobre como e quem havia assassinado Tayná, e até dúvidas sobre se ocorrera ou não estupro eram levantadas.
Quatorze pessoas, entre elas 9 policiais civis, um policial militar, um agente da guarda municipal, agentes penitenciários e até um preso "de confiança" foram acusados de tortura e tiveram mandados de prisão emitidos. Os quatro funcionários do parque disseram que foram espancados, empalados, asfixiados com sacos plásticos, eletrocutados, forçados a fazer sexo oral entre si e um deles relatou ter tido a cabeça enfiada num formigueiro.
Casos como este se repetem Brasil afora desde sempre. Como afirmou o representante da OAB do Paraná, em entrevista à Rede Globo, a polícia primeiro quer a confissão; depois, vai procurar provas que a justifiquem. Isso em nada se assemelha ao devido processo legal. E aí temos a clássica perversão: não investiga, não elucida ou, quando o faz, as provas são de baixa qualidade. Resultado: impunidade garantida. O Ministério Público não acolhe a denúncia ou o Judiciário não pronuncia os acusados. E a polícia responsabiliza o Ministério Público e o Judiciário por isso.
Desde 1997, a tortura está tipificada como crime. Diversas iniciativas foram adotadas pelo governo federal para eliminar a tortura. O Brasil recebe recomendações dos relatores especiais das Nações Unidas sobre o que deveríamos fazer para eliminar a tortura. Porém, a tortura continua e ocorre em todos os Estados brasileiros.
Impunidade se resolve com investigação, esclarecimento e identificação dos autores com provas - isto permite à justiça fazer a sua parte. Há décadas o país busca melhorar o desempenho de sua polícia: aumenta-se o efetivo, os salários melhoram (ainda que não satisfaçam as corporações), compram-se equipamentos, cursos, seminários, treinamentos no exterior, missões para conhecer polícias de diferentes países, etc. Porém problemas como o uso abusivo da força, tortura, corrupção e baixa taxa de esclarecimento dos delitos persistem. E continuam a ser considerados pelas chefias das polícias como problemas de alguns indivíduos. Não estaria na hora de serem interpretados como indicadores de problemas estruturais? Por que o interdito em se discutir a estrutura e forma de organização das nossas polícias?
Por exemplo: a existência de duas polícias aumenta a capacidade de esclarecer delitos e prevenir a ocorrência/recorrência dos mesmos? Qual é o custo em termos de desempenho das polícias, da estrutura organizacional que não permite a ascensão do policial que entra na carreira pelo policiamento de rua ao topo da mesma (seja na PM, seja na Polícia Civil)?
No caso específico da jovem Tayná, tivesse a polícia civil trabalhado em conjunto com a PM na busca da jovem e, em vez de pular imediatamente para a procura do suspeito, solicitado informações de pessoas que tivessem circulado pela região no dia e horário, batendo de casa em casa ou ainda realizado buscas nas áreas - como é feito em outros países -, não aumentaria a probabilidade de terem sido eles a encontrar o corpo? Isso teria garantido a preservação da cena do crime. Se não tivessem tornado pública a identidade dos quatro jovens que apreenderam no parque e torturaram fazendo-os confessar, o parque talvez não tivesse sido queimado. Quem vai pagar pelo prejuízo do dono? Então, se tivessem esperado pelo resultado dos exames de DNA antes de darem como concluído o inquérito policial, a credibilidade da polícia teria sido preservada.
Alguns desses procedimentos óbvios de investigação começaram a ser realizados apenas nos últimos dias, quase três semanas após o ocorrido, quando qualquer cidadão informado sabe que quanto mais tempo se passa, menor a probabilidade de se identificar o(s) responsável(eis).
E a tortura, que lição se tira dessa história? A julgar pelos casos estudados em São Paulo pela pesquisadora Gorete de Jesus, há pouca chance de que os policiais envolvidos, se chegarem a ser julgados, sejam punidos. A população de Colombo deverá permanecer intranquila e a confiança na polícia abalada por mais tempo, para o azar de todos nós.


Nancy Cardia – Ph.D. em Psicologia Social pela London School of Economics and Political Sciences, é Vice-Coordenadora do Núcleo de Estudos da violência (NEV-USP) – 21.07.2013