I. (02.03.2013)
Qual foi o ponto de partida político do “milagre econômico” chinês,
a que se refere insistentemente Deng Xiaoping? Para os chineses, o
desenvolvimento capitalista é apenas um instrumento a mais de defesa de sua
civilização milenar, contra os sucessivos cercos e invasões dos “povos
bárbaros”.
José Luis Fiori
“Sou
leigo no campo da economia. Fiz alguns comentários a respeito do assunto, mas
todos de um ponto de vista político. Por exemplo, propus uma política de
abertura econômica chinesa para o mundo exterior, mas, quanto aos detalhes ou
especificidades de sua implementação, sei muito pouco de fato.”
Deng Xiaoping, cit. In H. Kissinger, Sobre a China, Ed Objetiva, RJ, 2011, p: 331
Deng Xiaoping, cit. In H. Kissinger, Sobre a China, Ed Objetiva, RJ, 2011, p: 331
A história
não se repete, nem pode ser transformada em receita. Mas ela pode ensinar os
que desejam aprender, como se fosse um velho e bom professor.
Haja vista,
o caso do extraordinário desenvolvimento econômico chinês das últimas décadas.
A explicação dos economistas costuma sublinhar a importância demiúrgica das
reformas liberalizantes, ou, a eficácia das políticas econômicas heterodoxas,
apesar de que Deng Xiaoping – considerado pai do “milagre econômico chinês -
sempre tenha insistido na natureza política e estratégica do seu projeto
reformista, muito mais do que econômica. Como se ele estivesse apontando para a
lua, enquanto os economistas insistissem em olhar apenas para o seu dedo,
devido a sua grande dificuldade de compreender racionalidades que não se
submetam à “lógica utilitária”. Sendo assim, qual foi então este ponto de
partida político do “milagre econômico” chinês, a que se refere insistentemente
Deng Xiaoping?
Não é fácil reconstruir e sintetizar um processo tão complexo. Mas parece não haver duvida que “o grande salto capitalista” da China, começou no final da década de 50, com a ruptura entre o comunismo chinês e o soviético. Uma ruptura ideológica que se transformou numa disputa de fronteira, durante toda a década de 60, culminando com o conflito militar do Rio Ussuri, em 1969. A partir daí, a URSS aumentou geometricamente sua força militar junto à fronteira chinesa, e a China respondeu ao cerco russo, com seus primeiro teste nuclear, em 1964, e com o lançamento do seu primeiro foguete balístico, em 1966. O sentimento de ameaça e insegurança crescente, levou Mao Tse Tung a convocar de volta, em 1969, um grupo quatro marechais do Exército de Libertação Popular, que haviam sido expurgados pela Revolução Cultural – Chen YI, Nie Rongzhen, Xu Xiangqian e Ye Jianying – com a tarefa de apresentar um mapa das opções estratégicas da China, frente aos desafios criados pela ruptura do bloco comunista. O diagnóstico da alta comissão militar foi terminante, e suas propostas mudaram a história da política externa chinesa.
A URSS era definida como a principal ameaça à segurança chinesa, e deveria ser contida através de uma politica militar de “defesa ativa”, e de uma estratégia politica-diplomática “ofensiva”, de reaproximação com os EUA. No ano seguinte, no dia 8 de dezembro de 1971, chegou à Casa Branca, em Washington, a mensagem do primeiro-ministro, Chou en Lai, que deu início à uma das transformações geopolíticas mais importantes do século XX. Em nome da nova estratégia, na reunião presidencial de 1972, entre os presidentes Mao e Nixon, Mao Tse Tung colocou entre parêntesis as divergências dos dois sobre a questão de Taiwan, e propôs ao presidente Nixon uma “linha horizontal” de contenção da URSS, que passava pelo Oriente Médio, e chegava até o Japão.
Na sequencia, e como forma de fortalecer a capacidade defensiva da China, o primeiro-ministro Chou en Lai propôs, em 1975, o seu programa das “4 modernizações” que foram implementadas por Deng Xiaoping, a partir de 1978. Seguindo esta mesma estratégia, o governo de Deng Xiaoping promoveu em 1979 uma invasão preventiva do Vietnã, para impedir a expansão da influencia militar soviética na Indochina, com o conhecimento do Japão e com o apoio logístico do governo Carter.
A nova estratégia militar e econômica encerrou definitivamente a Revolução Cultural (1965-1974) e fortaleceu o estado central chinês, que recuperou sua condição milenar de guardião moral da unidade e do “interesse universal” do território continental e da civilização chinesa. Uma sociedade multitudinária que se vê a si mesma como uma civilização superior, homogênea e com pelo menos 2300 anos de existência, a despeito do “século de humilhação” que lhe foi imposto à China, pela “barbárie europeia”, entre 1842 e 1945.
Depois do fim da URSS, a China se reaproximou da Rússia e redefiniu seu “mapa estratégico”, mas manteve sua fidelidade ao ponto de vista político de Deng Xiaoping: o desenvolvimento da China deve estar sempre a serviço da sua política de defesa. Neste sentido, se nossa hipótese estiver correta, e mesmo que a história não se repita, o mais provável é que a nova Doutrina Obama de contenção da China reforce e expanda a “economia de guerra” do país, acelerando e aprofundando sua “conquista do oeste” e sua integração com a Rússia e com a Ásia Central. Por fim, esta história deixa uma lição surpreendente: para os chineses, o desenvolvimento capitalista é apenas um instrumento a mais de defesa de sua civilização milenar, contra os sucessivos cercos e invasões dos “povos bárbaros”.
Não é fácil reconstruir e sintetizar um processo tão complexo. Mas parece não haver duvida que “o grande salto capitalista” da China, começou no final da década de 50, com a ruptura entre o comunismo chinês e o soviético. Uma ruptura ideológica que se transformou numa disputa de fronteira, durante toda a década de 60, culminando com o conflito militar do Rio Ussuri, em 1969. A partir daí, a URSS aumentou geometricamente sua força militar junto à fronteira chinesa, e a China respondeu ao cerco russo, com seus primeiro teste nuclear, em 1964, e com o lançamento do seu primeiro foguete balístico, em 1966. O sentimento de ameaça e insegurança crescente, levou Mao Tse Tung a convocar de volta, em 1969, um grupo quatro marechais do Exército de Libertação Popular, que haviam sido expurgados pela Revolução Cultural – Chen YI, Nie Rongzhen, Xu Xiangqian e Ye Jianying – com a tarefa de apresentar um mapa das opções estratégicas da China, frente aos desafios criados pela ruptura do bloco comunista. O diagnóstico da alta comissão militar foi terminante, e suas propostas mudaram a história da política externa chinesa.
A URSS era definida como a principal ameaça à segurança chinesa, e deveria ser contida através de uma politica militar de “defesa ativa”, e de uma estratégia politica-diplomática “ofensiva”, de reaproximação com os EUA. No ano seguinte, no dia 8 de dezembro de 1971, chegou à Casa Branca, em Washington, a mensagem do primeiro-ministro, Chou en Lai, que deu início à uma das transformações geopolíticas mais importantes do século XX. Em nome da nova estratégia, na reunião presidencial de 1972, entre os presidentes Mao e Nixon, Mao Tse Tung colocou entre parêntesis as divergências dos dois sobre a questão de Taiwan, e propôs ao presidente Nixon uma “linha horizontal” de contenção da URSS, que passava pelo Oriente Médio, e chegava até o Japão.
Na sequencia, e como forma de fortalecer a capacidade defensiva da China, o primeiro-ministro Chou en Lai propôs, em 1975, o seu programa das “4 modernizações” que foram implementadas por Deng Xiaoping, a partir de 1978. Seguindo esta mesma estratégia, o governo de Deng Xiaoping promoveu em 1979 uma invasão preventiva do Vietnã, para impedir a expansão da influencia militar soviética na Indochina, com o conhecimento do Japão e com o apoio logístico do governo Carter.
A nova estratégia militar e econômica encerrou definitivamente a Revolução Cultural (1965-1974) e fortaleceu o estado central chinês, que recuperou sua condição milenar de guardião moral da unidade e do “interesse universal” do território continental e da civilização chinesa. Uma sociedade multitudinária que se vê a si mesma como uma civilização superior, homogênea e com pelo menos 2300 anos de existência, a despeito do “século de humilhação” que lhe foi imposto à China, pela “barbárie europeia”, entre 1842 e 1945.
Depois do fim da URSS, a China se reaproximou da Rússia e redefiniu seu “mapa estratégico”, mas manteve sua fidelidade ao ponto de vista político de Deng Xiaoping: o desenvolvimento da China deve estar sempre a serviço da sua política de defesa. Neste sentido, se nossa hipótese estiver correta, e mesmo que a história não se repita, o mais provável é que a nova Doutrina Obama de contenção da China reforce e expanda a “economia de guerra” do país, acelerando e aprofundando sua “conquista do oeste” e sua integração com a Rússia e com a Ásia Central. Por fim, esta história deixa uma lição surpreendente: para os chineses, o desenvolvimento capitalista é apenas um instrumento a mais de defesa de sua civilização milenar, contra os sucessivos cercos e invasões dos “povos bárbaros”.
II. (28.03.2013)
Como sobrevive e avança um Estado
que não reconhece soberania popular nem eleições, mas admite direito “divino” a
sublevação social?
José Luís Fiori
“Para mim, uma vez que fui designado pelo povo
para o atual cargo, preciso colocar sempre o povo no lugar mais importante do
coração, ter sempre em mente as enormes expectativas que o povo me confia e
lembrar que as responsabilidades são mais pesadas que a montanha Tai”.
Presidente Xi Jinping, Valor Econômico, 20/03/2013
O
desenvolvimento chinês possui características que confundem inteiramente a
ciência política ocidental, e colocam de cabeça para baixo a teoria do “estado
desenvolvimentista”, formulada pelos anglo-saxões, na década de 1980. Até a
segunda metade do século XIX, a China desenvolveu-se fora do mundo
euro-cêntrico e só se transformou num “estado nacional” depois de 1912, e numa
“economia capitalista” no final do século XX. Mas na verdade, a China tem muito
pouco a ver com os pequenos estados nacionais originários da Europa, e é de
fato um “estado-civilização” que não possui sociedade civil nem conhece o
princípio da “soberania popular”. Apesar disto – contra todas as expectativas
ocidentais – o estado chinês tem se demonstrado altamente flexível e inovador,
uma contradição aparente que remete às suas origens e à história de longo prazo
de sua civilização.
A China é em
si mesmo um continente, e seu estado – isoladamente – é responsável por cerca
de 1/5 da população mundial. O processo de centralização do poder territorial
ocorreu na China há pelo menos 2300 anos, e apesar de várias fragmentações
posteriores o povo chinês sempre conseguiu refazer sua unidade e preservar sua
homogeneidade linguística e cultural, transformando-se no país com a história
contínua mais antiga da humanidade. O que mantém o povo chinês unido não é sua
identificação à “nação Han”, que foi inventada no final do século XIX, mas com
uma civilização e uma história cujas raízes remontam até o ano 5000 a.C.
A China nunca
teve nenhum tipo de religião oficial, nem jamais dividiu o seu poder imperial e
burocrático com nenhuma instituição religiosa, nobreza ou classe econômica,
como no caso das “sociedades civis” europeias. O império chinês foi gerido,
através dos séculos, por um mandarinato meritocrático e homogêneo, que se consolidou durante a
dinastia Ming (1368-1644), e que sempre se pautou pela filosofia moral de
Confúcio (551-479 a.C.), com sua concepção da virtude e do compromisso ético
dos governantes com o interesse universal do povo e da civilização chinesa.
Deste ponto
de vista, o Partido Comunista Chinês apenas prolongou e radicalizou uma
tradição milenar, ao criar uma espécie de “dinastia mandarim”, que segue
governando a China segundo os mesmos preceitos morais confucianos do período
imperial. Por outro lado, não existe na tradição chinesa a ideia da “soberania
popular”, e o princípio da “soberania nacional” é associado diretamente à
“soberania do estado”. Mais do que isto, a filosofia confuciana nunca valorizou
a participação do povo no governo, e sempre teve uma visão elitista do estado e
dos seus governantes. Mas ao mesmo tempo, a tradição chinesa sempre admitiu o
direito “divino” da sublevação popular contra as autoridades que não cumprissem
suas obrigações morais, como foi o caso da rebelião que derrubou a Dinastia
Qing (1644-1912) e proclamou a República da China, em 1912.
Aos
olhos do Ocidente, este “modelo chinês” é autoritário e inflexível e está
condenado à esclerose e à paralisia decisória, como ocorreu com o estado e o
governo soviético. No entanto, contra todas as expectativas, o estado chinês
tem demonstrado uma extraordinária capacidade de se autocorrigir e de se
reinventar, sem apresentar até hoje nenhuma tendência ou necessidade de se
transformar numa democracia eletiva e multipartidária. Neste sentido, a
história da China traz uma grande novidade, e coloca algumas questões decisivas
para a reflexão ocidental:
i.
Ainda
que seja difícil de entender e aceitar, o Estado chinês não está a serviço do
desenvolvimento capitalista; pelo contrário, é o desenvolvimento capitalista e
o próprio estado chinês que estão a serviço de uma civilização milenar que já
se considera o pináculo da história humana.
ii.
A
história milenar da China e do mundo sino-cêntrico questiona a inevitabilidade
da democracia eleitoral e multipartidária, que seria apenas um fenômeno datado
e circunscrito, do ponto de vista temporal e territorial. Neste sentido, se
poderia valorizá-la ou adotá-la, mas ela não seria inevitável, nem seria um
valor universal.
iii.
Neste
momento a China não parece estar se propondo como um modelo alternativo, mas
com certeza o seu sucesso demonstra que existem alternativas ao “modelo
ocidental”, que seria apenas uma invenção europeia transformada em “necessidade
histórica”.
iv.
Por
fim, o ingresso do “estado-civilização” chinês no sistema interestatal deixa
uma pergunta: a China que se adaptará ao sistema de Vestfália, ou se será o
sistema de Vestfália que terá que se adaptar ao sistema “hierárquico-tributário”
do mundo sino-cêntrico?
III. (25.04.2013)
China expande seu poder há dois milênios. Seu “sistema
hierárquico-tributário” merece estudo, inclusive porque Ocidente parece prestes
a adotá-lo…
José Luís Fiori
Engana-se quem pensa que a China nunca foi um estado expansionista. O
poder é sempre expansivo, ainda que ele possa ter longos períodos de
“adormecimento” ou “fragmentação”. Foi assim, em qualquer tempo ou lugar,
durante toda a história da humanidade, independente da existência de economias
de mercado, e muito antes da existência do capitalismo. E o mesmo aconteceu na
história da China. Começando pelo próprio processo originário de unificação do
império chinês depois de longos séculos de guerras e conquistas, durante o
período dos “Reinos Combatentes”, entre os anos de 481 a.C e 221 a.C..
Resumindo a história, o primeiro império chinês nasceu da expansão vitoriosa de
dois reinos situados no nordeste da China atual: o Estado Qin, que foi o grande
vencedor da guerra e promoveu a unificação, e o Estado Han, que o sucedeu em,
206 a.C, e foi responsável pela construção de um império que durou 400 anos,
período “dourado” da história chinesa. O Império Han depois estendeu sua
influencia à Coréia, Mongólia, Vietnã e Ásia Central, chegou ao Mar Cáspio e
inaugurou a famosa “rota da seda”. Foi neste período que o império chinês
concebeu o seu “sistema hierárquico-tributário” de relacionamento como povos
vizinhos que aceitassem manter sua autonomia em troca do reconhecimento da
superioridade da civilização chinesa. Um “modelo de relacionamento” que se
transformou numa “rotina milenar”, dentro do mundo sinocentrico, até meados do
século XIX.
No século XIV, depois de um longo período de fragmentação territorial e
guerras intestinas, a China viveu um novo processo de centralização do poder,
sob a Dinastia Ming (1368-1644), que reorganizou o estado chinês e liderou uma
segunda “era de outro”, nas artes, na economia, na filosofia, mas também nas
conquistas territoriais e navais. De novo, a centralização do poder interno se
prolongou no expansionismo externo, através da diplomacia, da guerra, e do
brilho exemplar da civilização confuciana. Durante a Dinastia Ming, a China
reconquistou a Mongólia, a Coréia e o Vietnã, e impôs seu domínio ao Japão,
Java, Brunei, Srivijaya, Sião e Camboja. Em 1424, o império suspendeu as
expedições marítimas do Almirante Cheng Ho, mas foi apenas uma opção pelas
conquistas terrestres, através das infinitas “fronteiras móveis” do império,
por onde se multiplicou o seu território e a sua população, sem que ele tivesse
que se afastar de suas linhas de suprimento estratégico, como ocorreu com os
impérios marítimos europeus. No tempo em que a acumulação do poder se media em
território, população, excedente econômico e capacidade de tributação, a China
conquistou, em três séculos, mais do que o dobro do que foi conquistado pela
Europa e seus impérios marítimos. E o mesmo veio a ocorrer mais tarde, com a
Dinastia Qing, que governou a China, entre 1668 e1912, em particular durante o
reinado do Imperador Ch´ien-Lung (1735-1799), quando a China duplicou seu
território, conquistando o Tibet, Taiwan, e todo o oeste do atual território
chinês, até o Turkistão. No caso destas regiões, a conquista chinesa foi
particularmente violenta e as terras conquistadas foram transformadas em
colônias, numa posição inferior dentro do sistema de “círculos concêntricos”,
como era concebido pelos chineses o seu “Império do Meio”, construído a partir
do seu pináculo civilizatório, situado em Pequim.
Depois das duas “Guerra do Ópio”, em 1839-42 e 1856-60, a China foi
submetida a um século de humilhações por parte das potencias europeias do
“Sistema de Westphalia”. Mas na segunda metade do século XX, o país voltou a
centralizar seu poder interno, expulsou as potências coloniais, adotou o
capitalismo como instrumento de acumulação de poder e entrou num novo período
de crescimento econômico e expansão externa do seu poder e de sua influencia
civilizatória. E está reconstruindo o seu antigo “sistema hierárquico
tributário”, dentro e fora do antigo mundo sinocêntrico, o que leva muitos
analistas a prever um grande embate civilizatório com o “Sistema de
Westphalia”. Do nosso ponto de vista, entretanto, este choque não ocorrerá, por
quatro motivos fundamentais:
i.
O
“Sistema de Westphalia”, formado por estados iguais e soberanos, foi uma
invenção europeia do século XVII, que só funcionou efetivamente na Europa, e
até meados do século XX.
ii.
Quando
este sistema se expandiu para fora da Europa, não foi igualitário nem respeitou
o principio de soberania dos povos conquistados e submetidos à condição de
colônias, protetorados, domínios ou periferias dependentes.
iii.
O
que estamos assistindo no início do século XXI, dentro do mundo eurocêntrico, é
um realinhamento de vários sistemas “hierárquico-tributários”, como por
exemplo, no caso da nova relação da Alemanha com os demais países da União
Europeia; ou dos EUA com os países da “Aliança do Pacífico”.
iv.
Não
é improvável que o mundo eurocêntrico abandone aos poucos suas fantasias
westfalianas, e aceite cada vez mais o modelo hierárquico chinês, enquanto o
sistema mundial adota a forma de dois grandes “impérios do meio”, com algumas
réplicas inferiores.
IV. (04.06.2013)
China está tornando-se um líder
global em inovação tecnológica. Como nos EUA, há setenta anos, avanço apoia-se
na pesquisa militar.
José Luís Fiori
“As
happened with other great powers,
China seems to be following a technological road
where the search for modern defense systems constitutes a primum mobile
for national scientific endeavors and modern technologies”.
China seems to be following a technological road
where the search for modern defense systems constitutes a primum mobile
for national scientific endeavors and modern technologies”.
N. Trebat e C. A. Medeiros [1]
É visível, a olho nu, que a liderança da inovação
tecnológica concentra-se nos países com maior poder dentro do sistema
internacional. E que os países que ocupam posições inferiores acessam as
tecnologias de “ponta”, através da cópia, da importação ou de pequenas
adaptações incrementais, mediante pagamento de “direitos de propriedade
intelectual”. Por isto, invariavelmente, os países que se propõe mudar sua
posição dentro da hierarquia internacional também mudam, em algum momento, seu
sistema de pesquisa e inovação. Como vem acontecendo com a China, segundo
estudo recente dos professores N. Trebat e C. Medeiros, que demonstra que os
chineses estão deixando para trás a “cópia tecnológica”, e estão se aproximando
rapidamente do modelo norte-americano, onde o “sistema de defesa” do país ocupa
um lugar central no seu “sistema de inovação”.
Nos EUA, a mudança acelerou-se durante a II Guerra
Mundial, com a criação do Conselho Nacional de Psquisa para a Defesa (National
Defense Research Council, NDRC). Ele foi responsável pelo projeto
Manhattan, pela criação da primeira bomba atômica e pela reorganização da
pesquisa cientifica dentro das universidades e das empresas privadas, reunidas
dentro de um mesmo “complexo-militar–industrial-acadêmico” de pesquisa e
inovação, orientado pela competição militar com a União Soviética. Donde se
possa dizer, hoje, que a Guerra Fria foi responsável – em última instancia —
pelos principais avanços tecnológicos norte-americanos da segunda metade do
século XX, no campo aeroespacial e da energia nuclear, da computação, das
fibras óticas e dos transístores, assim como da química, da genética e da
biotecnologia.
Em todos estes setores, a estratégia de defesa
americana funcionou como primeiro motor na criação das tecnologias “duais” que
revolucionaram a economia mundial. Hoje, a “Agencia de Projetos Avançados de
Pesquisa em Defesa” (DARPA) — que responde ao Departamento de Defesa dos EUA —
conta com um orçamento de mais de 3 bilhões de dólares, e financia
investigações em todo e qualquer setor considerado estratégico para a segurança
americana, independente do seu objeto específico, bastando se propor “inovações
radicais” na fronteira do conhecimento humano.
No caso chinês, a inflexão começou nos anos 90,
depois da Guerra do Golfo, quando a China reconheceu a necessidade de
modernizar seu sistema de defesa e mudou o rumo da sua pesquisa científica e
tecnológica, adotando progressivamente o modelo americano de integração da
academia com o setor publico e privado, na produção de “tecnologias duais”
capazes de dinamizar, ao mesmo tempo, a economia civil chinesa. O passo inicial
fora dado, ainda na década de 80, com a criação da “Comissão de Ciência,
Tecnologia e Indústria, para a Defesa Nacional”, mas o verdadeiro salto
aconteceu depois de 1990, quando foi criado o “Programa 863” de financiamento à
pesquisa de “ponta”, e depois de 2001, quando foi lançado o “Projeto de
Segurança Estatal 998”, com objetivo explícito de desenvolver a capacidade
chinesa de contenção das forças norte-americanas no Mar do Sul da China.
Entre 1991 e 2001, o gasto militar chinês cresceu
5% ao ano, e entre 2001 e 2010, 13%. Hoje, a China possui o segundo maior
orçamento militar do mundo, mas o que importa, neste caso, é que os gastos com
a “defesa” já alcançam cerca de 30% de todo o gasto governamental com pesquisa
e inovação, e foram os grandes responsáveis pelo avanço dos chineses, nos
últimos anos, na microeletrônica, computação, telecomunicação, energia nuclear,
biotecnologia, química, e no campo aeroespacial. Mais recentemente, o “Plano de
Desenvolvimento Nacional Científico e Tecnológico de Médio e Longo Prazo”, para
o período entre 2006 e 2020, aumentou a tônica no desenvolvimento das
tecnologias “duais”, e na importância da conquista da autonomia militar da
China.
E apesar de que os chineses sigam utilizando
tecnologias importadas, a verdade é que eles obtiveram avanços notáveis nestas
últimas duas décadas. Neste sentido, o novo caminho tecnológico da China parece
reforçar uma verdade antiga e obliterada sistematicamente, pela “ciência
econômica”: que o ritmo e liderança da pesquisa e inovação de “ponta”, nos
países que lideram a hierarquia internacional, não são determinados pelas
forças de mercado. Nestes casos — e cada vez mais — as grandes inovações vieram
de sua estratégia de defesa e de sua permanente “preparação para a guerra”.
Goste-se ou não, foi sempre assim, e ainda mais no caso dos estados nacionais
que criaram e lideraram, ou lutaram pela liderança do sistema interestatal
capitalista, através do séculos.
[1][1] “Assim como ocorreu com
outras grande potências, a China parece estar seguindo um caminho tecnológico
em que a busca de modernos sistemas de defesa constitui um impulso especial
para os esforços nacionais em ciência e modernas tecnologias”. N. Trebat e C. A. Medeiros, “Military
modernization in Chinese Technical Progress and Industrial Innovation”, paper,
“World Keynhes Conference”, Izmair Economics University, junho de 2013.
José Luis Fiori – Professor titular de
Economia Política Internacional da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa do
CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo". (www.poderglobal.net)
– fev. a jun. de 2013
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