quarta-feira, 30 de abril de 2014

Rapaz, a Revolução dos Cravos é esta noite”


 
Um dos capitães daquele abril de 1974 lembra a Revolução dos Cravos, que nesta sexta-feira completa 40 anos.

Antonio Jiménez Barca
Era 24 de abril de 1974 e Portugal definhava sob uma ditadura que durava mais de 50 anos. Naquela manhã, no quartel da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, 70 quilômetros ao norte de Lisboa, o capitão José Salgueiro Maia encontrou o tenente-substituto Carlos Beato (então com 27 anos) e disse a ele, em segredo:
— Rapaz Beato, é esta noite.
O que aconteceria naquela noite foi um levante organizado por um grupo de capitães e jovens oficiais portugueses com o objetivo de derrubar a ditadura de Marcelo Caetano, instaurar a democracia em Portugal e acabar com uma guerra colonial em Angola e Moçambique completamente impossível de vencer do ponto de vista militar.
“E eu, claro, quando ouvi o capitão Maia me dizendo que tudo ia acontecer e que seria naquele dia, senti um calafrio que me congelou. Você pode imaginar: uma coisa é conspirar e outra diferente é saber que tudo vai começar em horas”, diz Beato, de 67 anos.
(...)
Para continuar a leitura, acesse: http://brasil.elpais.com/brasil/2014/04/24/internacional/1398366831_081581.html




 Uma revolução em 24 horas
 §  Em 24 de abril de 1974, um grupo de militares, o Movimento das Forças Armadas (MFA), liderado por Otelo Saraiva de Carvalho, instala em segredo um posto de comando no quartel da Pontinha, em Lisboa. Às 22h55 é transmitida a canção E depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, na rádio Emissores Associados de Lisboa.
 §  O segundo sinal combinado para começar a revolução,Grândola, Vila Morena, de José Afonso, uma canção proibida pelo regime, é transmitida pela Rádio Renascença à 0h25 do dia 25 de abril. A partir da uma hora da madrugada, os quartéis das principais cidades do país (Porto, Santarém, Braga, Faro) se juntam ao MFA, fecham o espaço aéreo e tomam portos e aeroportos. Ao amanhecer, o Governo perdeu o controle de quase todo o país.
 §  O primeiro-ministro Marcelo Caetano se rende aos rebeldes às 17h45. Apesar disso, a polícia política PIDE mata a tiros quatro manifestantes civis às 20h00.
 §  À 1h00 do dia 26 de abril, a televisão e rádio públicos apresentam as autoridades do MFA.
    (Este conteúdo aparece em quadro anexo à mesma reportagem).


Antonio Jiménez Barca – 25.04.2014
IN El País Internacional – Lisboa.






Os 40 anos da Revolução dos Cravos, que
 pôs fim a 48 anos de ditadura em Portugal

A Revolução dos Cravos será celebrada com eventos culturais e conferências, promovidos pela Presidência da República, o parlamento e os partidos.

Milton Ribeiro
Durou décadas a ditadura em Portugal. A rigor, foram 48 anos entre os anos de 1926 e 1974. Só Antônio de Oliveira Salazar governou por 36 anos, entre 1932 e 1968, e a Constituição de 1933, que implantou o Estado Novo nos moldes do fascismo italiano com seu Partido Único, permaneceu até o último da ditadura, tendo durado 41 anos.
A ditadura acabou em 25 de abril de 1974 numa revolução quase sem tiros. Morreram apenas quatro pessoas pela ação da DGS (Direção-Geral de Segurança), ex-PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado), espécie de DOPS português. A adesão aos militares que protagonizaram o golpe na ditadura foi tão grande que as cinco mortes mais pareceram um desatino final. O nome de “Revolução dos Cravos” foi devido a um ato simbólico tomado por uma simples florista. Ela iniciou uma distribuição de cravos vermelhos a populares e estes os ofereceram aos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas.
Tudo fora bem planejado. A ação começou em 24 de abril de forma musical. Um grupo militar anti-salazarista instalou-se secretamente em um posto no quartel da Pontinha, em Lisboa. Então, às 22h55, foi transmitida por uma estação de rádio a cançãoE depois do adeus, de Paulo de Carvalho. Este era o sinal para todos tomarem seus postos. Aos 20 minutos do dia 25, outra emissora apresentou Grândola, Vila Morena, de José Alfonso. Ao contrário da primeira canção, que era bastante popular, Grândola estava proibida, pois, segundo o governo, era uma clara alusão ao comunismo.
(...)
Para continuar a leitura, acesse: http://www.sul21.com.br/jornal/os-40-anos-da-revolucao-dos-cravos-que-pos-fim-a-48-anos-de-ditadura-em-portugal/



Milton Ribeiro- 25.04.2014
IN Sul21.





A democracia que falta, segundo Mário 
Soares

Mário Soares – "Por que o atual governo procede de forma antidemocrática, destruindo o Estado social, o Serviço Nacional de Saúde, bem como a Justiça, dado que os corruptos estão todos impunes. As grandes desigualdades sociais são o produto do atual governo, para o qual só conta a Troika [Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional]. Também a União Europeia, que perdeu, com a chanceler [Angela] Merkel [da Alemanha], a solidariedade entre os Estados europeus. (...) Nos primeiros 37 anos, tudo mudou para incomparavelmente melhor. Nos últimos três anos, tudo mudou, do que se conseguiu e foi imenso, com o atual governo, mas para pior”.

Francisco Goes
Mário Soares, ex-presidente e ex-primeiro ministro de Portugal, já foi descrito, em seu país, como "pai da democracia". Em 1974, foi um dos líderes que surgiram com a Revolução dos Cravos, conduzida pelos militares. Em 2014, prestes a completar 90 anos - em 7 de dezembro -, Soares continua em atividade. Escreve todas as semanas no "Diário de Notícias", de Lisboa, e preside a Fundação que leva seu nome. "Apesar de não desempenhar nenhum cargo no PS [Partido Socialista], mantém enorme influência no partido e continua a ser escutado pela opinião pública", diz o historiador David Castaño, autor do livro "Mário Soares e a Revolução".
Nesta entrevista ao Valor, Soares mostra preocupação com os rumos da democracia e o regime de austeridade a que a economia do país foi submetida. "Como diz o papa Francisco, [a austeridade] mata."
(...)




Francisco Goes – 25.04.2014
IN Valor Econômico.

domingo, 27 de abril de 2014

20 anos após o genocídio em Ruanda



A comunidade internacional não pode afirmar estar preocupada com tais atrocidades e, em seguida, não comprometer os recursos e a vontade necessários para efetivamente preveni-los. Os líderes mundiais devem fazer mais para evitar o evitável, a crueldade que ocorre diante de nossos olhos.


 Ban Ki-moon
Hoje, na República Centro-Africana, líderes governamentais e comunitários estão se esforçando para ajudar o país a encontrar o caminho da paz.
Ontem, segunda-feira, dia 7 de abril, em Kigali, me uni ao povo de Ruanda para lembrar o 20º aniversário do genocídio que ainda ecoa por todo um arco de incertezas na região dos Grandes Lagos da África e na consciência coletiva da comunidade internacional.
Cada situação tem sua própria dinâmica. O mesmo acontece com o conflito sírio, que a cada dia faz novas vítimas. Mas cada uma delas tem suscitado um complexo desafio de vida ou morte: o que pode a comunidade internacional fazer quando inocentes estão sendo massacrados em grande número e o governo é incapaz ou relutante em proteger seu povo - ou, ainda, está entre os próprios perpetradores da violência? E o que podemos fazer para evitar que essas atrocidades inicialmente ocorram?
(...)
Para continuar a leitura, acesse: 
http://www.valor.com.br/opiniao/3508998/20-anos-apos-o-genocidio-em-ruanda



Ban Ki-moon – Secretário-geral das Nações Unidas –08.04.2014
In Valor Econômico. 


20 anos após genocídio, Ruanda ainda tenta trazer refugiados de volta para casa


Há cerca de 100 mil refugiados — em sua maioria, mulheres e crianças — que o país se esforça em repatriar.


Fabíola Ortiz
Há vinte anos, um massacre generalizado tomou conta de um dos países mais pobres do mundo. Entre abril e julho de 1994, cerca de 800 mil pessoas morreram no que ficou conhecido como o genocídio de Ruanda, promovido pelo governo de maioria hutu — que visava exterminar uma etnia inteira, os tutsis.
Vinte anos depois, o país continua a se reerguer e tenta trazer de volta todos os que fugiram do conflito. Hoje, 11 milhões de habitantes vivem neste que já foi considerado um dos piores países para se viver. Há cerca de 100 mil refugiados — em sua maioria, mulheres e crianças.
Muitos deles foram para países que fazem fronteira com Ruanda, como República Democrática do Congo, Tanzânia e Burundi. Nas regiões fronteiriças, já não existem mais campos de refugiados para ruandeses. Mas, eles ainda existem no Congo Brazzaville, Zâmbia, Uganda e Malaui.
Porém, como admite o próprio governo, ainda há muita desconfiança e não foi fácil para Ruanda começar a se reconstruir sem o total de sua população.
(...)



Fabiola Ortiz – 07.04.2014
IN Opera Mundi. 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Médicos cubanos no Haiti deixam o mundo envergonhado


Números divulgados na semana passada mostram que o pessoal médico cubano, trabalhando em 40 centros em todo o Haiti, tem tratado mais de 30.000 doentes de cólera desde outubro. Eles são o maior contingente estrangeiro, tratando cerca de 40% de todos os doentes de cólera. Um outro grupo de médicos da brigada cubana Henry Reeve, uma equipe especializada em desastre e em emergência, chegou recentemente. Uma brigada de 1.200 médicos cubanos está operando em todo o Haiti, destroçado pelo terremoto e pela cólera. Enquanto isso, a ajuda prometida pelos EUA e outros países...

Nina Lakhani
Eles são os verdadeiros heróis do desastre do terremoto no Haiti, a catástrofe humana na porta da América, a qual Barack Obama prometeu uma monumental missão humanitária dos EUA para aliviar. Esses heróis são da nação arqui-inimiga dos Estados Unidos, Cuba, cujos médicos e enfermeiros deixaram os esforços dos EUA envergonhados.
Uma brigada de 1.200 médicos cubanos está operando em todo o Haiti, rasgado por terremotos e infectado com cólera, como parte da missão médica internacional de Fidel Castro, que ganhou muitos amigos para o Estado socialista, mas pouco reconhecimento internacional.
Observadores do terremoto no Haiti poderiam ser perdoados por pensar operações de agências de ajuda internacional e por os deixarem sozinhos na luta contra a devastação que matou 250.000 pessoas e deixou cerca de 1,5 milhões de desabrigados. De fato, trabalhadores da saúde cubanos estão no Haiti desde 1998, quando um forte terremoto atingiu o país. E em meio a fanfarra e publicidade em torno da chegada de ajuda dos EUA e do Reino Unido, centenas de médicos, enfermeiros e terapeutas cubanos chegaram discretamente. A maioria dos países foi embora em dois meses, novamente deixando os cubanos e os Médicos Sem Fronteiras como os principais prestadores de cuidados para a ilha caribenha.
Números divulgados na semana passada mostram que o pessoal médico cubano, trabalhando em 40 centros em todo o Haiti, tem tratado mais de 30.000 doentes de cólera desde outubro. Eles são o maior contingente estrangeiro, tratando cerca de 40% de todos os doentes de cólera. Um outro grupo de médicos da brigada cubana Henry Reeve, uma equipe especializada em desastre e em emergência, chegou recentemente, deixando claro que o Haiti está se esforçando para lidar com a epidemia que já matou centenas de pessoas.
Desde 1998, Cuba treinou 550 médicos haitianos gratuitamente na Escola Latinoamericana de Medicina em Cuba (Elam), um dos programas médicos mais radicais do país. 

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Nina Lakhani – 27.12.2010
IN Carta Maior. 

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Um enforcamento


George Orwell
Foi na Birmânia, numa encharcada manhã das chuvas. Uma luz desmaiada, como uma prata de chocolate dourada, alongava-se por sobre as paredes altas, entrando no pátio da prisão. Esperávamos no exterior das celas dos condenados, uma fileira de barracões com grades duplas na parte da frente, como pequenas jaulas para animais. Cada cela media cerca de três metros por três e o seu interior era quase completamente despido, exceptuando uma cama de tábuas e um cântaro de água potável. Em algumas, homem morenos silenciosos agachavam-se junto das grades internas, enrolados nos seus cobertores. Eram os condenados, que seriam enforcados dentro de uma ou duas semanas.
Um prisioneiro fora retirado da sua cela. Era um hindu, um exíguo dez-réis de gente, de cabeça rapada e olhar ausente e lacrimoso. Tinha um bigode espesso e espetado, absurdamente grande para o seu corpo, um pouco como o bigode de um cómico de cinema. Seis carcereiros indianos altos guardavam-no e preparavam-no para o patíbulo. Dois mantinham-se perto, com espingardas e baionetas afixadas, enquanto os outros o algemavam, passando uma corrente pelas algemas e fixando-a aos seus cintos, amarrando-lhe com firmeza os braços ao corpo. Formavam uma multidão à sua volta, sempre com as mãos em cima dele, agarrando-o com cuidado, como se estivessem a tocar-lhe para se assegurarem de que estava ali. Era como um homem a pegar num peixe ainda vivo que pode saltar de volta para a água. Mas de não resistia de modo algum, abandonando molemente os braços às cordas, como se quase nem notasse o que estava a acontecer.
Bateram as oito. e um toque de corneta, desoladoramente agudo no ar molhado, veio da caserna distante. O superintendente da cadeia, que se mantinha afastado de nós, remexia enfadonhamente o saibro com o seu bastão, e levantou a cabeça ao ouvir o som. Era um médico do exército, com um bigode cinzento que parecia uma escova e uma voz áspera.
- Por amor de Deus, despacha-te Francis! - disse com irritação. - O homem já devia estar morto a esta hora. Ainda não estás pronto?
Francis, o chefe dos carcereiros, um drávida gordo, de farda branca de instrução e óculos de aros amarelos, acenou com a sua mão negra.
- Sim senhor, sim senhor - balbuciou. - Tudo está satisfatoriamente preparado. O verdugo aguarda. Vamos agora.
- Bom, marcha rápida, então. Os prisioneiros não podem tomar o pequeno-almoço, até isto acabar.
Dirigimo-nos para o patíbulo. Dois carcereiros marchavam junto do prisioneiro, um de cada lado, com as espingardas ao ombro; os outros dois marchavam colados a ele, agarrando-o no braço e no ombro, como se estivessem ao mesmo tempo a empurrá-lo e a carregá-lo. Os restantes, magistrados e outros, seguimos de perto.
Subitamente, quando tínhamos avançado três metros, a procissão parou, sem qualquer ordem ou aviso. Uma coisa terrível tinha acontecido - um cão, sabe-se lá vindo de onde, aparecera no pátio.
Veio saltar para junto de nós com uma série de latidos altos, e pulava à nossa volta remexendo o corpo, doido de alegria por encontrar, tantos seres humanos juntos. Era um cão grande e cheio de pêlo, metade terrier, metade rafeiro. Por um momento, empinou-se à nossa volta e depois, antes de alguém poder fazer alguma coisa, avançou para o prisioneiro e tentou com um salto lamber-lhe a cara. Ficámos todos horrorizados, demasiado abalados para agarrar o cão.
- Quem deixou entrar aqui esse maldito animal? - perguntou o superíntendence, irado. – Alguém que o agarre!
Um carcereiro, afastado da escolta, tentou desajeitadamente apanhar o cão, que dançava e cabriolava fora do seu alcance, tomando tudo como parte de um jogo. Um carcereiro eurasiático novo apanhou uma mão-cheia de cascalho e tentou afastar o cão atirando-lhe pedras, mas este esquivou-se, dirigindo-se outra vez para nós. Os seus latidos faziam eco nas paredes da prisão. O prisioneiro, agarrado pelos dois carcereiros, olhava sem curiosidade, como se fosse mais uma formalidade do enforcamento. Passaram-se vários minutos, até alguém conseguir apanhar o cão.
Pusemos então o meu lenço na sua coleira e continuámos a marcha, com o cão ainda a retorcer-se e a ganir.
Eram cerca de doze metros até ao patíbulo. Observei as costas acastanhadas e nuas do prisioneiro que marchava à minha frente. Caminhava desajeitadamente com os braços amarrados, mas em passo firme, com aquele passo ondulante do Indiano, em que os joelhos nunca se desdobram completamente. A cada passo, os seus músculos deslizavam correctamente no devido lugar, o anel de cabelo da sua cabeça dançava para cima e para baixo, os pés deixavam marcas no  saibro molhado. E, apesar dos homens que o agarravam pelos ombros, desviou-se uma vez ligeiramente para evitar uma poça de água.
É curiosp, mas até esse momento nunca me apercebera realmente do que significa destruir um homem saudável e consciente. Quando vi o prisioneiro afastar-se para evitar a poça de água, vi o mistério, o mal indizível de cortar a vida de um homem quando está em pleno florescimento. Este homem não estava a morrer, estava vivo tal e qual como nós estávamos vivos. Todos os órgãos do seu corpo estavam a funcionar - as entranhas a digerir a comida. a pele a renovar-se, as unhas a crescer, os tecidos a formar-se - labutando todos em solene inconsequência. As suas unhas continuariam a crescer quando começasse a cair, quando estivesse a cair, com um décimo de segundo de vida. Os seus olhos viram o saibro amarelo e as paredes cinzentas, e o seu cérebro ainda recordava, previa, raciocinava - raciocinava até acerca de poças de água. Ele e nós éramos um grupo de homens caminhando juntos, vendo, ouvindo, sentindo, compreendendo o mesmo mundo; e em dois minutos, com um esticão súbito, um de nós teria partido - um espírito a menos, um mundo a menos.
O patíbulo estava num pátio pequeno, separado dos terrenos principais da prisão e cheio de ervas com espinhos. Era uma construção de tijolo como três lados de um alpendre, com tábuas no topo, e acima disso duas traves e uma barra transversal com uma corda pendente. O verdugo, um  recluso de cabelo cinzento, vestido com o uniforme branco da prisão, estava à espera ao lado da sua máquina. Ao entrarmos. cumprimentou-nos com uma vénia servil. A uma palavra de Francis, os dois carcereiros, agarrando o prisioneiro mais de perto que nunca, conduziram-no aos empurrões para o patíbulo e ajudaram-no desajeitadamente a subir a escada. Então o verdugo subiu e ajeitou a corda em torno do pescoço do prisioneiro.
Ficámos à espera, a um metro e meio de distância. Os carcereiros formaram um círculo imperfeito em torno do patíbulo. E então, quando se ajeitou o nó, o prisioneiro começou a clamar pelo seu deus. Era um grito alto e reiterado de «Ram! Ram! Ram! Rarm!» Não era urgente e temeroso como uma súplica ou um pedido de ajuda, mas regular, rítmico, quase como o dobrar de um sino. O cão respondeu ao som com um ganido. O verdugo, ainda no patíbulo,. desencantou um pequeno saco de algodão, corno os de farinha, e tapou a cara do prisioneiro. Mas o som, abafado pelo pano, persistiu ainda, uma vez e outra: «Ram! Ram! Ram! Rarm!»
O verdugo desceu e ficou à espera, segurando a alavanca. Pareceram passar minutos. O grito regular e abafado do prisioneiro continuava sem parar, «Ram! Ram! Ram!», sem falhar um instante.
O superintendente, de cabeça baixa, remexia vagarosamente no chão com o seu bastão; talvez estivesse a contar os gritos, atribuindo ao prisioneiro um número definido – cinquenta, talvez, ou uma centena. Toda a gente perdera a cor. Os indianos tinham ficado cinzentos como café estragado, e uma ou duas das baionetas tremiam. Olhámos para o homem amarrado e encapuçado no cadafalso, e escutámos os seus gritos - cada grito um segundo mais de vida; o mesmo pensamento estava em todos os espíritos: oh, matem-no depressa, acabem com isso, parem esse ruído abominável!
Subitamente, o superintendente resolveu-se. Levantando a cabeça, fez um movimento rápido com o bastão: «Chalo!», gritou quase furiosamente.
Ouviu-se um ruído metálico e depois um silêncio mortal. O prisioneiro fora-se e a corda girava por cima de si.
Libertei o cão, que foi aos saltos imediatamente para a parte de trás do patíbulo; quando lá chegou parou subitamente, ladrou e depois foi para um canto do pátio, onde ficou entre as ervas, olhando timoratamente para nós. Demos a volta ao patíbulo para inspeccionar o corpo do prisioneiro. Balouçava com os dedos dos pés apontando directamente para baixo, numa revolução lenta, morto como uma pedra.
O superintendente levantou o seu bastão e empurrou o corpo acastanhado nu; este oscilou ligeiramente.
- Ele está bem - disse o superintendente. Abandonou o patíbulo e respirou fundo. O olhar maldisposto desaparecera do seu rosto subitamente. Olhou de relance para o relógio de pulso. – Oito minutos depois das oito. Bem, esta manhã está feita, graças a Deus!
Os carcereiros tiraram as baionetas e saíram em marcha. O cão, sóbrio e ciente de se ter portado mal, escapuliu-se atrás deles. Saímos do patíbulo, passámos as celas dos condenados, onde os prisioneiros aguardavam, e entrámos no grande pátio central da prisão. Os reclusos, sob ordens de carcereiros armados com mocas, comiam já o pequeno-almoço. Acocoravam-se em longas filas, cada um pegando numa tigela de lata, enquanto dois carcereiros com baldes andavam em volta distribuindo arroz; parecia uma cena muito doméstica e bem-disposta, depois do enforcamento. Um alívio imenso apoderara-se de nós, agora que a tarefa terminara. Sentia-se um impulso para cantar, para desatar a correr, para rir à socapa. Subitamente, toda a gente começou a tagarelar jovialmente.
O rapaz eurasiático que caminhava ao meu lado acenou com a cabeça na direcção de onde tínhamos vindo, com um sorriso conhecedor:
- Sabe, senhor. o nosso amigo (ele queria dizer o morto), quando soube que o seu recurso fora recusado, mijou no chão da cela. De medo. Aceite por favor um dos meus cigarros, senhor. Não gosta da minha pasta prateada nova, senhor? Do boxwalah1, duas rupias e oito anás. Estilo europeu de classe.
Várias pessoas riram - de quê, ninguém parecia saber. Francis caminhava com o superintendente, falando loquazmente:
- Bem, senhor, tudo correu da maneira mais satisfatória. Tudo acabou... clique! Assim. Nem sempre corre bem ... oh, não! Soube de casos em que o médico foi obrigado a ir à parte de baixo do patíbulo puxar as pernas de prisioneiro para se assegurar da morte. Muito desagradável!
- Retorcendo-se, hã? Isso é mau! - disse o superintendente.
- Ah, senhor, é pior quando ficam obstinados! Lembro-me de um homem que se agarrou às grades da cela quando fomos buscá-lo. Dificilmente acreditará, senhor, que foram precisos seis carcereiros para o levar, três puxando em cada perna. Tentámos convencê-lo. «Meu caro amigo», dissemos, «pense em toda a mágoa e chatice que nos está a causar!»~ Mas não, ele não queria ouvir! Ah, foi um grande problema!
Dei comigo a rir muito alto. Toda a gente estava a rir. Mesmo o superintendente sorriu, condescendente.
- O melhor é virem todos beber qualquer coisa, disse muito jovialmente. - Tenho uma garrafa de uísque no carro. Bem precisamos.
Atravessámos os grandes portões duplos da prisão, em direcção à estrada.
- Puxar-lhe as pernas! - exclamou um magistrado bírmanês subitamente, e desatou a rir alto.
Recomeçámos todos a rir. Nesse momento, a historieta de Francis parecia extraordinariamente engraçada. Todos juntos, nativos e europeus, bebemos muito amigavelmente. O morto estava a trinta metros de distância.

1 Pequeno comerciante ambulante indiano

George Orwell
The Adelphi, Agosto de 1931, assinado Eric A. Blair
Tradução de Desidério Murcho
Retirado do livro “Por que escrevo e outros ensaios”, de George Orwell, editora
Antígona, publicado em 2008, que pode ser encontrado nas livrarias.
Publicado neste e-book com autorização dos editores

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sábado, 19 de abril de 2014

O longo combate às desigualdades raciais


Avanços nos indicadores socioeconômicos da população negra atestam o impacto positivo das políticas universais. Ao mesmo tempo, os dados mostram a necessidade urgente de ações afirmativas de caráter amplo na busca por igualdade racial no Brasil. Segundo Douglas Belchior, “O jovem negro tem, hoje, oportunidades que seus pais não tiveram, mas isso não significa que elas sejam iguais”

Cristina Charão
Construir pontes que aproximem as realidades de brancos e negros no Brasil é um desafio monumental de engenharia social e econômica. Nas últimas duas décadas, políticas públicas de natureza diversa, adotadas em diferentes níveis de governo, têm sido capazes de impulsionar a construção das bases da igualdade. Indicadores socioeconômicos de toda ordem mostram uma melhoria nas condições de vida da população negra, bem como no acesso a serviços e direitos. Nesse período, homens e mulheres negras viram sua renda, expectativa de vida e acesso à educação – para citar apenas os componentes do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – avançarem de forma mais acelerada do que as da população branca.
Entretanto, ainda não é possível vislumbrar a superação do abismo racial. Os dados disponíveis indicam um caminho: é preciso apostar em políticas de ação afirmativa de forma consistente.
A criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), em nível federal, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial e os resultados encorajadores já revelados por algumas ações indicam um rumo positivo nas políticas públicas dos últimos anos. Embora persistam os debates acerca da constitucionalidade das ações afirmativas – especialmente nas cotas para ingresso em universidades e no serviço público –, muitos avaliam que a agenda está consolidada. “O momento é de continuidade e de ampliação”, afirma Tatiana Dias Silva, coordenadora de Igualdade Racial do Ipea, especialista em análises da questão racial. “Temores de que as ações afirmativas criariam um ‘racismo ao contrário’ ou ‘reduziriam o nível das universidades’ desapareceram. Os dados disponíveis desmentem tudo isso.”
(...)
Para continuar a leitura, acesse: http://www.ipea.gov.br/igualdaderacial/index.php?option=com_content&view=article&id=711




Cristina Charão - 2011
IN Revista “Desafios do desenvolvimento”, ano 8, No 70.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Jovens da classe C têm maior escolaridade, conexão à internet e são menos conservadores


Aumento da escolaridade parece ser a principal mudança entre os membros mais jovens das famílias da chamada nova classe média. Pesquisa traçou perfil dos cerca de 23 milhões de jovens de 18 a 30 anos com renda mensal entre R$ 219 e R$ 1.019. Eles são 55% dos brasileiros dessa faixa etária.

Nice de Paula
RIO - Se a expansão da renda e do poder consumo marcaram a ascensão de quase 40 milhões de brasileiros à classe C na última década, o aumento da escolaridade parece ser a principal mudança entre os membros mais jovens destas famílias. Mas não a única.
Os filhos da chamada nova classe média são mais informados, conectados à internet e têm opiniões menos conservadoras sobre a mulher e o homossexualismo do que seus pais, revela o estudo "Geração C", que acaba de ser concluído pelo Instituto Data Popular. Trata-se de um perfil dos cerca de 23 milhões de jovens de 18 a 30 anos com renda mensal entre R$ 219 e R$ 1.019 e representam 55% dos brasileiros dessa faixa etária.
— Esse jovem vai ser um adulto muito diferente do pai. A educação é o grande diferencial, óbvio. Mas eles já estudaram mais do que os pais e isso traz uma série de desdobramentos, como aumento da renda da família, empregos melhores, mais informação. A primeira geração de universitários da família é menos conservadora, não vê mais a mulher como dona de casa, não vai querer do governo bolsa família, e sim desoneração de impostos para computadores. Eles vão mudar a cara do Brasil — diz Renato Meirelles, sócio-diretor do Data Popular. Segundo ele, o ápice da mudança será em 2022, quando essa geração estará no auge de sua atividade produtiva.


Nice de Paula – 24.04.2013
IN O Globo. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Mortalidade infantil tem queda recorde na década


Nordeste teve maior redução no período; Brasil ainda está longe dos padrões dos países mais desenvolvidos, de cinco mortes por mil nascidos vivos ou menos.

Luciana Nunes Leal e Wilson Tosta
 A taxa de mortalidade infantil teve redução recorde na última década e chegou a 15,6 mortes de bebês de até um ano de idade por mil nascidos vivos, segundo dados do Censo 2010 divulgados pelo IBGE. O índice é 47,5% menor que os 29,7 por mil registrados em 2000. Antes do período 2000-2010, a maior queda tinha acontecido entre 1970 e 1980, quando a taxa de mortalidade infantil caiu 39,3%, passando de 113 óbitos por mil nascidos vivos para 69,1 por mil. Desde 1960 (131 mortes por mil nascidos vivos) a 2010, a redução foi de 88%.

Estimativas da Rede Interagencial de Informações para a Saúde (Ripsa), que reúne universidades e outras instituições de pesquisa, além de órgãos do governo como Ministério da Saúde e o próprio IBGE, já indicavam havia alguns anos queda na mortalidade infantil bem mais acentuada do que a registrada anualmente pelas Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílio (Pnads). Com a divulgação do Censo 2010, os dados oficiais e as estimativas se aproximam.

Apesar dos avanços, o Brasil ainda está longe dos padrões dos países mais desenvolvidos, de cinco mortes por mil nascidos vivos ou menos. As mais baixas taxas de mortalidade, segundo a ONU, são da Islândia, Cingapura e Japão, em torno de 3 mortes por mil nascidos vivos. A menor taxa das Américas é de Cuba (5,1 mortes por mil nascidos vivos). Itália, Portugal e Nova Zelândia têm índice de 5 mortes por mil. O Brasil continua atrás da Argentina (13,4 por mil), Uruguai (13,1por mil ) e Chile (7,2 por mil). A taxa brasileira se equipara às da Moldávia (15,8 por mil ) e da Síria (16 por mil). Os piores índices são do Afeganistão (157 por mil) e Serra Leoa (160 por mil).

No período de 2000 a 2010, o Nordeste teve a maior redução na mortalidade infantil, entre todas as regiões, de 58,6%. Os índices nordestinos caíram de 44,7 mortes por mil nascidos vivos para 18,5 por mil. Continua a ser a região com a pior taxa, mas as diferenças entre as regiões caíram significativamente. A taxa de mortalidade infantil no Norte, segundo o Censo 2010, é de 18,1 mortes por mil nascidos vivos. O Centro-Oeste registrou 14,2 por mil; o Sudeste chegou a 13,1 por mil e o Sul continuou com a menor taxa, de 12,6 por mil.

A queda significativa da mortalidade infantil é resultado de uma combinação de fatores, segundo os técnicos do IBGE, como a redução da taxa de fecundidade (número de filhos por mulher), a ampliação de políticas públicas de prevenção em saúde, as melhorias no saneamento básico, o aumento da renda, especialmente da população mais pobre, e maior escolaridade das mães.
Por Estado, a taxa de fecundidade só está acima da taxa de reposição nos Estados do Norte, mais Maranhão, Alagoas, Mato Grosso. O Estado com menor taxa de fecundidade é São Paulo, com 1,67.

O IBGE também revelou que 966 mil crianças e adolescentes de 6 a 14 anos não frequentavam a escola em 2010. É o equivalente a 3,3% do total da população nessa faixa etária.

A comparação com 2000, porém, só é possível para a faixa 7 a 14 anos, porque a lei que fixou os 6 anos como idade para ingresso no Ensino Fundamental é de 2006. Na faixa 7 a 14, o índice de crianças fora da escola era 3,1% em 2010 e representa um avanço em comparação com 2000, quando a proporção era de 5,5%. 
"Seguindo o curso normal da educação, as crianças deveriam ingressar no ensino fundamental aos seis anos de idade e estar cursando a última série aos 14 anos", lembram os técnicos do IBGE na publicação Censo Demográfico 2010 - Dados Gerais da Amostra.

Outros dois dados de educação são preocupantes. Na faixa 15 a 17 anos, 16,7% não iam à escola em 2010. Eram 22,6% em 2000. Na população de 25 anos ou mais, o porcentual de pessoas com pelo menos o ensino médio completo era em 2010 de apenas 35,8%. Em 2000, porém, era muito menos: 23,1%.



Luciana Nunes Leal e Wilson Tosta – 27.04.2013