São vários os indícios
de que a política mudou de lugar. Na medida em que a sociedade nacional
transformou-se em província da sociedade global, são evidentes os deslocamentos
ou esvaziamentos dos princípios de soberania, hegemonia e cidadania, sem esquecer
da democracia.
Octavio Ianni
A globalização desafia radicalmente os quadros de referência da
política, como prática e teoria. Há categorias básicas da ciência política que
parecem ter perdido a vigência ou estão necessitando de reelaboração. Dadas as transformações
geoistóricas em curso no século XX, são bastante evidentes os desenvolvimentos da
transnacionalização, mundialização ou, mais propriamente, globalização. São
transformações que não só atravessam a nação e a região, mas que também
conformam uma realidade geoistórica de envergadura global. Uma realidade
emergente, porém já bastante evidente e,
simultaneamente, carente de categorias interpretativas.
Estas são algumas dentre as categorias do pensamento político que
parecem desafiadas pelos dilemas e horizontes que se abrem com a globalização
estão: sociedade civil, Estado, partido político, sindicato, movimento social,
opinião pública, povo, classe social, cidadania, soberania e hegemonia, entre
outras. À medida que essas e outras categorias foram elaboradas com base na
dinâmica da sociedade nacional, como emblema por excelência das ciências
sociais, provavelmente elas pouco ou nada respondam às exigências da reflexão
sobre a dinâmica da sociedade mundial. Sim, as relações, os processos e as
estruturas de dominação, mais característicos da sociedade global, como novo
emblema das ciências sociais, podem estar criando desafios radicais à política,
como prática e teoria.
Cabe reconhecer, desde o início, que está em curso uma crise
generalizada do Estado-Nação. A crescente transnacionalização da economia não
só reorienta como reduz a capacidade decisória do governo nacional. Em
praticamente todos os setores da economia, sem esquecer as finanças, as
injunções externas são, com freqüência, decisivas para a adoção de diretrizes
por parte do governo. Também no campo dos transportes, habitação, saúde, educação
e meio ambiente cresceram muito as sugestões, os estímulos, as orientações, os
financiamentos e as imposições de organizações multilaterais, dentre as quais destacam-se
o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Banco Internacional de
Reconstrução e Desenvolvimento – Bird). Sem esquecer que, muitas vezes, as
diretrizes dessas organizações articulam-se com os interesses das corporações
transnacionais ou dos países dominantes no âmbito do capitalismo.
Sendo assim, está em causa a crise do princípio da soberania nacional.
Ao intensificarem e generalizarem as injunções “externas”, as condições e as
possibilidades da soberania alteram-se, redefinem-se e também reduzem-se. Se
cresce a importância das injunções “externas”, configurando a dinâmica da
globalização, pode reduzir-se a importância das forças sociais “internas”, no
que se refere à organização e às diretrizes do poder estatal.
Daí o hiato crescente entre a sociedade civil e o Estado. São evidentes
os descompassos entre as tendências de boa parte da sociedade civil quanto aos
problemas sociais, econômicos, políticos e culturais e às diretrizes que o
Estado é levado a adotar. Talvez se possa dizer que, enquanto a sociedade civil
está predominantemente determinada pelo jogo das forças sociais “internas”, o
Estado parece estar crescentemente determinado pelo jogo das forças sociais que
operam em escala transnacional. Um aspecto particularmente esclarecedor desse
impasse revela-se no âmbito da reforma do Estado. São muitos os países nos
quais o Estado vem sendo reestruturado, com a desregulação da economia,
privatização das empresas produtivas estatais, abertura de mercados, reforma
dos sistemas de previdência social, saúde, educação, etc. Em todos esses casos,
é evidente a interferência de injunções “externas”, através das corporações
transnacionais e das organizações multilaterais, cujas diretrizes, em geral, se
conjugam. Sem esquecer que as injunções “internas”, isto é, aquelas relativas aos
setores sociais subalternos, têm escassa ou nenhuma presença na maneira pela
qual se realiza a reforma do Estado. Daí o divórcio entre as tendências
fundamentais da sociedade civil e as orientações predominantes no Estado. Sim,
as tensões entre o globalismo e o nacionalismo, traduzidas nas diretrizes e
práticas neoliberais, agravam os desencontros entre as tendências reais ou
potenciais da sociedade civil e as orientações que se impõem, ou são adotadas,
no âmbito do aparelho estatal.
Portanto, as forças predominantes na sociedade civil têm reduzidas
possibilidades de influenciar ou reorientar as diretrizes governamentais. Visto
que o Estado é crescentemente obrigado a atender às condições e injunções das organizações
multilaterais e das corporações transnacionais, as orientações das forças
predominantes na sociedade civil, no que diz respeito ao povo, aos setores
sociais subalternos ou à maior parte das classes assalariadas não encontram
condições políticas ou jurídico-políticas de realização. Precisam reavivar suas
instituições ou organizações de atuação política, ou mesmo criar novas, tendo
em conta a envergadura dos processos e estruturas que submergem muito do que é
nacional do âmbito do global. A globalização está pondo as classes subalternas
na defensiva, que passaram a depender de novas interpretações e novas práticas,
diagnosticando relações, processos e estruturas de dominação e apropriação
mundiais.
Estão em causa, pois, as condições de construção e realização da
hegemonia, seja das classes e grupos sociais subalternos, seja de outros e
novos arranjos compreendendo subalternos e dominantes que desafiem as
diretrizes dos blocos de poder organizados e atuantes nos moldes do
neoliberalismo. Assim, forças sociais importantes da sociedade civil
defrontam-se com obstáculos às vezes intransponíveis para traduzir-se em
governo, governabilidade, dirigência ou hegemonia. A construção de hegemonias conflitantes,
alternativas ou sucessivas, pode ser um requisito essencial da dialética
sociedade civil e Estado. E sem hegemonia, fica difícil pensar não só em
soberania nacional, mas também em democracia, mesmo apenas política.
Ocorre que a hegemonia, em suas diferentes modalidades de expressão e
realização, tem estado cada vez mais sob o controle das organizações
multilaterais e das corporações transnacionais. Essas instituições
habitualmente detêm poderes econômicos e políticos decisivos, capazes de se
sobrepor e impor aos mais diferentes estados-nacionais. Por meio de sua
influência sobre governos ou por dentro dos aparelhos estatais, burocracias e
tecnocracias, estabelecem objetivos e diretrizes que se sobrepõem e impõem às
sociedades civis, no que se refere a políticas econômico-financeiras, de
transporte, habitação, saúde, educação, meio ambiente e outros setores da vida
social nacional. Nesse sentido é que as condições e possibilidades de
construção e exercício da hegemonia podem ser decisivamente influenciadas pelas
exigências da globalização, expressa na atuação das organizações multilaterais
e das corporações transnacionais.
Sim, as organizações multilaterais e as corporações transnacionais são
novas, poderosas e ativas estruturas mundiais de poder. Elas se sobrepõem e
impõem aos Estados nacionais, compreendendo extensos segmentos das sociedades
civis, isto é, das suas forças sociais. É claro que essas estruturas mundiais
de poder têm crescido muito em agressividade e abrangência, influenciando
nações e regiões e alcançando com freqüência o âmbito propriamente global.
Atuam segundo cartografias, mapas do mundo, diretrizes geoeconômicas ou, mais
propriamente, geopolíticas de alcance global. São estruturas de poder
econômico-político, com implicações sociais e culturais muitas vezes de grande influência
e abrangência. Expressam os objetivos e as práticas dos grupos, classes ou
blocos de poder predominantes em escala mundial. Naturalmente, respondem aos
objetivos e às práticas predominantes não só em países centrais, potências mundiais
ou imperialistas, como também em âmbito transnacional, mundial ou propriamente
global. Já se formaram e continuam a desenvolver-se estruturas globais de poder,
respondendo aos objetivos e às práticas dos grupos, classes ou blocos de poder
organizados em escala realmente global.
Sendo assim, desloca-se radicalmente o lugar da política. Ainda que se
continue a pensar e agir em termos de soberania e hegemonia, ou democracia e
cidadania, tanto quanto de nacionalismo e Estado-Nação, modificaram-se radicalmente
as condições “clássicas” dessas categorias, no que se refere às suas
significações práticas e teóricas.
“Três elementos da regionalização e da globalização precisam ser
reconhecidos: primeiro, o modo pelo qual os processos de interdependência
econômica, política, legal, militar e cultural estão mudando a natureza, o
alcance e a capacidade do Estado moderno, e de como a sua capacidade ‘regulatória’
está sendo desafiada e reduzida em algumas esferas; segundo, o modo pelo qual a
interdependência regional e global cria cadeias de decisões e atuações políticas
inter-relacionadas entre os Estados e os seus cidadãos, alterando a natureza e
dinâmica dos próprios sistemas políticos nacionais; e, terceiro, o modo pelo
qual as identidades culturais e políticas estão sendo redesenhadas e reavivadas
por tais processos, levando muitos grupos, movimentos e nacionalismos, em
âmbito nacional e regional, a questionar a representatividade e a
confiabilidade do Estado-nação” (Held, 1995:136).
Uma face importante da realidade política global compreende a formação
das corporações transnacionais da mídia, que organizam e agilizam não só os
meios de comunicação e informação, mas também a eleição, seleção e
interpretação dos fatos, sejam estes sociais, econômicos, políticos ou
culturais. Muito do que ocorre no mundo – da África e Indonésia ao Caribe ou do
Oriente ao Ocidente –, seja importante ou irrelevante, divulga-se pelos quatro cantos
do mundo por intermédio dos recursos e das diretrizes das corporações da mídia,
compreendendo as modalidades impressas e eletrônicas. É a mídia que forma e conforma,
ou influencia, decisivamente as mentes e os corações de muitos, da grande
maioria, em todo o mundo, compreendendo tribos, nações e nacionalidades, ou
continentes, ilhas e arquipélagos. Isto não significa que o leitor, o ouvinte,
o espectador, a audiência ou o público são inermes, passivos. É claro que eles
são sempre ativos, radicados no jogo das atividades sociais, compreendendo as
condições concretas de vida e trabalho. E não há dúvida de que as situações
sociais em que se inserem os indivíduos e as coletividades são fundamentais no
processo de elaboração ou desenvolvimento da sua consciência social. Mas também
é claro que os meios de comunicação, informação e análise organizados na mídia
e na indústria cultural agem com muita força e preponderância, no modo pelo
qual se forma e conformam as mentes e os corações da grande maioria, pelo mundo
afora.
“A sofisticação da tecnologia de persuasão, no último meio século,
modificou as velhas regras da comunicação humana. Na medida em que a indústria
da publicidade e relações públicas tornava-se cada vez mais hábil em controlar
a opinião pública, as posturas, as crenças e os sistemas de valores, foi
tornando-se um imperativo manter o segredo e capacitar a população a reprimir a
consciência daquilo que os manipuladores estão tramando. O controle da
percepção não pode ser alcançado se for reconhecido, o que fez com que
proliferassem os controles perceptivos em níveis conscientes e inconscientes
(...) A suscetibilidade humana à persuasão ideológica é baseada na promessa
eternamente não cumprida de sentido e ordem, uma resposta estereotipada à
solidão, à monotonia, ao medo e às ameaças de fome, doença, insegurança e caos
político, moral ou social. Estas ameaças são incessantemente suscitadas pela
mídia comercial. A mensagem constante da mídia com estas ameaças mantém a busca
compulsiva por perguntas e respostas, causas e efeitos, e compromissos ideológicos.
A mensagem da mídia indica a última direção do consumo, divertimento, da política,
dos negócios, da indústria, das questões militares e da religião, com suas
relativas promessas de reduzir a ansiedade” (Key, 1993:313-319).
Nesse sentido, a mídia transformou-se no intelectual orgânico das
classes, grupos ou blocos de poder dominantes no mundo. Um intelectual orgânico
complexo, múltiplo e contraditório, mas que atua mais ou menos decisivamente
por sobre os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais e as
correntes de opinião pública. Enquanto estes continuam a operar principalmente no
âmbito local e nacional, a mídia atua e predomina também em escalas regional e
mundial, formando e confrontando movimentos de opinião pública, em diferentes esferas
sociais – que compreendem tribos, nações e nacionalidades – ou atravessando
culturas e civilizações. “A esfera da mídia faz tempo que conta com suas
corporações globais, as quais tendem a tornar-se crescentemente maiores e mais
poderosas, à medida que o século corre para o seu fim” (Sreberny-Mohammadi,
1991:123).
Sob muitos aspectos, a mídia transnacional acaba transformando-se também
no intelectual orgânico dos grupos, classes ou blocos de poder atuantes em
escala mundial; sempre com fortes ingerências em assuntos sociais, econômicos, políticos
e culturais também regionais e nacionais.
“As mudanças que abalam o mundo criam insegurança. Elas exigem que o
povo reavalie e mude de atitudes, de modo a administrar as novas mudanças. O
povo busca orientação e informação, mas tem também uma forte necessidade de
entretenimento e recreação. Para fazer face a essas diversas necessidades, uma
corporação global da mídia tem responsabilidades especiais. A comunicação é um
elemento básico de qualquer sociedade. A mídia torna essa comunicação possível,
ajuda a sociedade a compreender as idéias políticas e culturais, além de
contribuir para formar a opinião pública e o consenso democrático. Hoje, a
sociedade usa a mídia para exercer uma forma de autocontrole. Com estas
responsabilidades como pano de fundo, os executivos da mídia devem estar cientes
das suas obrigações, respeitando princípios éticos em suas atividades” (Bertelsmann,
1993:4).
Sem esquecer a mobilização de todos os tipos de tecnologias, ou de todos
os recursos da razão instrumental, para realizar eficazmente os meios e os fins
destinados a garantir o “autocontrole” da sociedade. “Para combater a
resistência do público à televisão e à publicidade, a manipulação das emoções tornou-se
ainda mais sofisticada. Ciências sociais e técnicas psicológicas foram
acrescentadas ao arsenal, com o objetivo de condicionar o comportamento humano”
(Bagdikian, 1993:223).
Note-se que a atuação da mídia está sempre acompanhada ou complementada
pela publicidade, que publicidade não tem sido apenas de mercadorias, no
sentido convencional. A publicidade está presente na política, religião e
diferentes esferas da cultura, tanto quanto nos bens de consumo corrente. Ela
envolve a informação e a interpretação de coisas, gentes e idéias, de tal modo
que o leitor, o ouvinte, o espectador, a audiência, ou o público são
informados, orientados, induzidos, subordinados ou manipulados. Assim, nasce o
consumismo, crescente e avassalador, sôfrego e compulsivo. Mais que isso, a
publicidade devido ao modo pelo qual induz ao consumo faz com que indivíduos, coletividades
e multidões, consciente ou inconscientemente, elejam o consumismo como um
exercício efetivo de participação, inserção social ou mesmo de cidadania. São
muitos os que se comportam e imaginam como se o consumismo fosse o mais
imediato, objetivo e evidente exercício de cidadania.
Sem esquecer que muito do que tem sido a mídia, como meio de
comunicação, informação e interpretação, envolvendo publicidade e consumismo,
ou a indústria cultural, tem sido em todos esses e outros níveis, cada vez mais
imagem, muito mais do que palavra. Ou seja, a mídia compreende palavras, sons,
cores, formas e movimentos, em geral articulados na profusão das imagens. Na
época do globalismo, quando também se intensificam e generalizam as tecnologias
eletrônicas, informáticas e cibernéticas, o mundo está sendo colocado sob o
signo da imagem. Em larga medida, é assim que a realidade social, econômica,
política e cultural, nos âmbitos local, nacional, regional e mundial
transforma-se em realidade virtual.
“A preeminência da palavra, dos grandes relatos e também do discurso
político tem sido nos anos recentes substituída pela imagem. Vivemos imersos em
uma cultura da imagem, que altera a idéia que fazemos da política. Para bem ou
por mal, já não podemos pensar a política à margem da televisão. Quando o dom
da palavra é inibido pela manipulação da imagem, mudam as estruturas
comunicativas nas quais se apóiam tanto as relações de representação como as
estratégias de negociação e decisão. As técnicas de marketing não substituem,
mas modificam a capacidade decisória do cidadão. Enquanto os políticos competem
empenhadamente pela atenção, sempre limitada, do espectador, este deve
enfrentar mudo a invasão de estímulos. Fragmentada em milhares de instantâneos inconexos,
a política acaba sendo reconstruída como um caleidoscópio de flashes. Há uma
superoferta de informação que não faz senão ressaltar a erosão dos códigos de interpretação.
Isto nos remete aos desafios que enfrentam as culturas políticas. Além do seu
impacto estritamente político, a televisão ilustra a decomposição dos códigos com
os quais habitualmente interpretamos o mundo. Uma avalanche de imagens fugazes
e repetitivas dilui a realidade, ao mesmo tempo em que a torna avassaladora. O desconcerto
do nosso “sentido de realidade’’ reflete o redimensionamento das noções de
espaço e tempo’’(Lechner, 1996:68).
Esse é o contexto em que o ouvinte, o telespectador, a audiência ou o
público podem ficar mais ou menos indefesos diante das forças predominantes na
sociedade. Ficam preparados para tomar o consumismo como exercício efetivo de
cidadania. Consideram muito do que é a realidade virtual como se fosse
experiência, vivência ou existência, deleitando-se ou indignando-se no
exercício da práxis imaginária.
O cartão de crédito torna-se, de fato e de direito, o cartão de
identidade e cidadania de muitos, em níveis nacional e mundial. A credibilidade
do passageiro, viajante, turista, consumidor, cliente ou outra modalidade de
intercâmbio e circulação social está relacionada à carteira de identidade, ao título
de eleitor, à carteira de trabalho, ao passaporte e ao cartão de crédito. Em
praticamente todas as partes do mundo, esses e outros documentos ou signos
entram no processo de caracterização ou qualificação do indivíduo, juntamente
com a idade, sexo, cor, língua, religião e outros signos. O que ocorre no mundo
contemporâneo, e em escala acentuada e generalizada, é que o cartão de crédito
torna-se o principal documento de identidade, credibilidade ou cidadania,
transformando o seu portador em cidadão do mundo, mas enquanto consumidor, alguém
situado no mercado. E o consumismo, por implicação, transforma-se em expressão
e exercício de cidadania, cotidiana, recorrente e universal. Assim se forma o
cidadão do mundo, o cosmopolita, “alheio” à política, mas produzido no jogo do
mercado, como uma espécie de subproduto da lógica do capital.
São vários os indícios de que a política mudou de lugar. Na medida em
que a sociedade nacional transformou-se em província da sociedade global, são
evidentes os deslocamentos ou esvaziamentos dos princípios de soberania, hegemonia
e cidadania, sem esquecer da democracia. Se é verdade que esses princípios
situam-se classicamente no âmbito da sociedade nacional, do Estado-Nação, ou do
contraponto sociedade civil e Estado, então fica evidente que a soberania, a
hegemonia, a cidadania e a democracia mudaram de lugar, perderam significados,
ou simplesmente transformaram-se em ficções jurídico-políticas de um mundo
pretérito.
Para esclarecer este problema, no que se refere à soberania, hegemonia,
cidadania e democracia, cabe mergulhar na análise do que é ou pode ser o
globalismo, compreendendo não só a emergência de estruturas mundiais de poder,
mas também a emergência de uma incipiente, mas evidente, sociedade civil
global. Já são evidentes alguns indícios de uma sociedade civil de âmbito
global. O desenvolvimento das relações, processos e estruturas de dominação e
apropriação, com alcance mundial, indica a formação de uma configuração
geoistórica, isto é, simultaneamente social, econômica, política e cultural.
São relações, processos e estruturas envolvendo diretamente as condições e as
possibilidades de construção ou reconstrução da soberania, hegemonia, cidadania
e democracia, em escalas nacional e mundial.
Na época do globalismo, crescentemente dinamizado pelas tecnologias
eletrônicas, informáticas e cibernéticas, a política se desterritorializa,
realizando-se principalmente na mídia impressa e eletrônica, compreendendo o
marketing, o videoclip, o predomínio da imagem, da multimídia, do espetáculo
audiovisual. Ao mesmo tempo que se descola, desenraíza ou desterritorializa, a
política transforma-se em realidade virtual. Tanto é assim, que o discurso político
torna-se cada vez mais exíguo e fragmentário, com apelos ao coloquial, afetivo,
privado, suave ou inócuo. Muitas vezes parece réplica ou caricatura do programa
de auditório, do show de televisão ou da telenovela.
Está longe do debate político partidário, do comício, da praça pública,
do público ou do povo, estes como coletividades de cidadãos no sentido
“clássico”. Transforma o público e o povo em ouvintes ou telespectadores passivos
e inermes, maravilhados ou indignados. Mas uns e outros, o político e o
público, o partido e o povo, transfigurados em realidade virtual, uma ficção paródica,
um simulacro pasteurizado.
Esse é um mundo sistêmico e tem sido crescentemente articulado, em
vários níveis e em diferentes configurações, com base nos ensinamentos e nas
tecnologias cibernéticas, eletrônicas e informáticas. A partir dos interesses
que predominam na economia política mundial, mas influenciando a política e a
cultura, desenvolve-se uma crescente e abrangente articulação sistêmica do
mundo. As corporações transnacionais, as organizações multilaterais, os blocos
regionais e os Estados nacionais não só se baseiam em tecnológicas sistêmicas
como também conjugam-se em moldes sistêmicos, em suas geoeconomias, em seus
mapas do mundo. E é claro que essa ampla e crescente articulação não se
restringe à nova divisão transnacional do trabalho e da produção.
Transborda para todos os setores da vida social, compreendendo a
política, a cultura e a religião, isto é, o cristianismo. Conforme a
conjuntura, em âmbito local, nacional ou regional, a articulação sistêmica
intensifica-se e generaliza-se. Isso está ocorrendo cotidianamente, nas
diretrizes e atividades de corporações transnacionais, organizações
multilaterais, blocos regionais e Estados nacionais; em geral, à revelia de amplos
setores populares das sociedades nacionais, compreendendo grupos e classes
subalternos, partidos políticos e movimentos sociais.
É claro que o mundo sistêmico não é monolítico. Está atravessado por
diversidades e desigualdades, nacionalismos e fundamentalismos, blocos
regionais e imperialismos.
Juntamente com os processos de integração, desenvolvem-se processos de
fragmentação. A rigor, o globalismo tem agravado as condições sociais e
engendrado novas, em todos os níveis, nos quatro cantos do mundo.
Mas subsistem e desenvolvem-se, simultaneamente, as articulações sistêmicas,
organizando o globalismo desde cima, desde os interesses dos blocos de poder
dominantes e contraditórios que prevalecem no mundo.
É claro que as condições de vida e trabalho, assim como as de luta e
emancipação, das classes subalternas situam-se nesse cenário. Mais do que isso,
as condições de luta e emancipação dos grupos e classes subalternos, em todo o
mundo, dependem da inteligência das configurações e dos movimentos da sociedade
global, formando-se como o novo palco da história. Aí passam a se desenrolar
outras e novas lutas sociais, além das que se desenvolvem habitualmente em
níveis locais, nacionais e regionais. Mais do que isso, as lutas locais,
nacionais e regionais adquirem outros significados, como ingredientes e
expressões das lutas que ocorrem em escala mundial. Esse é também o cenário das
ressurgências mundiais do cristianismo e islamismo, tanto quanto das
manifestações de nazifascismo. Esse é o cenário em que emergem as manifestações
sociais, econômicas, políticas e culturais do que se pode denominar de
neo-socialismo. Por enquanto, no entanto, a globalização pelo alto, inclusive
no que se refere à sua organização sistêmica, está sendo articulada pelos ideais
e pelas práticas de cunho neoliberal. São várias as ideologias políticas, assim
como as utopias, que assinalam aspectos fundamentais das configurações e dos movimentos
desse novo palco da história. Esse é o palco no qual a política está sendo
reterritorializada.
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Octavio Ianni – Sociólogo, Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor de
A sociedade global, entre outros – 1997
IN DOWBOR, Ladislau. IANNI, Octavio. RESENDE, Paulo-Edgar A. (Orgs).
“Desafios da Globalização”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.