terça-feira, 8 de abril de 2014

A política mudou de lugar


São vários os indícios de que a política mudou de lugar. Na medida em que a sociedade nacional transformou-se em província da sociedade global, são evidentes os deslocamentos ou esvaziamentos dos princípios de soberania, hegemonia e cidadania, sem esquecer da democracia.


Octavio Ianni
A globalização desafia radicalmente os quadros de referência da política, como prática e teoria. Há categorias básicas da ciência política que parecem ter perdido a vigência ou estão necessitando de reelaboração. Dadas as transformações geoistóricas em curso no século XX, são bastante evidentes os desenvolvimentos da transnacionalização, mundialização ou, mais propriamente, globalização. São transformações que não só atravessam a nação e a região, mas que também conformam uma realidade geoistórica de envergadura global. Uma realidade emergente, porém já bastante  evidente e, simultaneamente, carente de categorias interpretativas.
Estas são algumas dentre as categorias do pensamento político que parecem desafiadas pelos dilemas e horizontes que se abrem com a globalização estão: sociedade civil, Estado, partido político, sindicato, movimento social, opinião pública, povo, classe social, cidadania, soberania e hegemonia, entre outras. À medida que essas e outras categorias foram elaboradas com base na dinâmica da sociedade nacional, como emblema por excelência das ciências sociais, provavelmente elas pouco ou nada respondam às exigências da reflexão sobre a dinâmica da sociedade mundial. Sim, as relações, os processos e as estruturas de dominação, mais característicos da sociedade global, como novo emblema das ciências sociais, podem estar criando desafios radicais à política, como prática e teoria.
Cabe reconhecer, desde o início, que está em curso uma crise generalizada do Estado-Nação. A crescente transnacionalização da economia não só reorienta como reduz a capacidade decisória do governo nacional. Em praticamente todos os setores da economia, sem esquecer as finanças, as injunções externas são, com freqüência, decisivas para a adoção de diretrizes por parte do governo. Também no campo dos transportes, habitação, saúde, educação e meio ambiente cresceram muito as sugestões, os estímulos, as orientações, os financiamentos e as imposições de organizações multilaterais, dentre as quais destacam-se o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento – Bird). Sem esquecer que, muitas vezes, as diretrizes dessas organizações articulam-se com os interesses das corporações transnacionais ou dos países dominantes no âmbito do capitalismo.
Sendo assim, está em causa a crise do princípio da soberania nacional. Ao intensificarem e generalizarem as injunções “externas”, as condições e as possibilidades da soberania alteram-se, redefinem-se e também reduzem-se. Se cresce a importância das injunções “externas”, configurando a dinâmica da globalização, pode reduzir-se a importância das forças sociais “internas”, no que se refere à organização e às diretrizes do poder estatal.
Daí o hiato crescente entre a sociedade civil e o Estado. São evidentes os descompassos entre as tendências de boa parte da sociedade civil quanto aos problemas sociais, econômicos, políticos e culturais e às diretrizes que o Estado é levado a adotar. Talvez se possa dizer que, enquanto a sociedade civil está predominantemente determinada pelo jogo das forças sociais “internas”, o Estado parece estar crescentemente determinado pelo jogo das forças sociais que operam em escala transnacional. Um aspecto particularmente esclarecedor desse impasse revela-se no âmbito da reforma do Estado. São muitos os países nos quais o Estado vem sendo reestruturado, com a desregulação da economia, privatização das empresas produtivas estatais, abertura de mercados, reforma dos sistemas de previdência social, saúde, educação, etc. Em todos esses casos, é evidente a interferência de injunções “externas”, através das corporações transnacionais e das organizações multilaterais, cujas diretrizes, em geral, se conjugam. Sem esquecer que as injunções “internas”, isto é, aquelas relativas aos setores sociais subalternos, têm escassa ou nenhuma presença na maneira pela qual se realiza a reforma do Estado. Daí o divórcio entre as tendências fundamentais da sociedade civil e as orientações predominantes no Estado. Sim, as tensões entre o globalismo e o nacionalismo, traduzidas nas diretrizes e práticas neoliberais, agravam os desencontros entre as tendências reais ou potenciais da sociedade civil e as orientações que se impõem, ou são adotadas, no âmbito do aparelho estatal.
Portanto, as forças predominantes na sociedade civil têm reduzidas possibilidades de influenciar ou reorientar as diretrizes governamentais. Visto que o Estado é crescentemente obrigado a atender às condições e injunções das organizações multilaterais e das corporações transnacionais, as orientações das forças predominantes na sociedade civil, no que diz respeito ao povo, aos setores sociais subalternos ou à maior parte das classes assalariadas não encontram condições políticas ou jurídico-políticas de realização. Precisam reavivar suas instituições ou organizações de atuação política, ou mesmo criar novas, tendo em conta a envergadura dos processos e estruturas que submergem muito do que é nacional do âmbito do global. A globalização está pondo as classes subalternas na defensiva, que passaram a depender de novas interpretações e novas práticas, diagnosticando relações, processos e estruturas de dominação e apropriação mundiais.
Estão em causa, pois, as condições de construção e realização da hegemonia, seja das classes e grupos sociais subalternos, seja de outros e novos arranjos compreendendo subalternos e dominantes que desafiem as diretrizes dos blocos de poder organizados e atuantes nos moldes do neoliberalismo. Assim, forças sociais importantes da sociedade civil defrontam-se com obstáculos às vezes intransponíveis para traduzir-se em governo, governabilidade, dirigência ou hegemonia. A construção de hegemonias conflitantes, alternativas ou sucessivas, pode ser um requisito essencial da dialética sociedade civil e Estado. E sem hegemonia, fica difícil pensar não só em soberania nacional, mas também em democracia, mesmo apenas política.
Ocorre que a hegemonia, em suas diferentes modalidades de expressão e realização, tem estado cada vez mais sob o controle das organizações multilaterais e das corporações transnacionais. Essas instituições habitualmente detêm poderes econômicos e políticos decisivos, capazes de se sobrepor e impor aos mais diferentes estados-nacionais. Por meio de sua influência sobre governos ou por dentro dos aparelhos estatais, burocracias e tecnocracias, estabelecem objetivos e diretrizes que se sobrepõem e impõem às sociedades civis, no que se refere a políticas econômico-financeiras, de transporte, habitação, saúde, educação, meio ambiente e outros setores da vida social nacional. Nesse sentido é que as condições e possibilidades de construção e exercício da hegemonia podem ser decisivamente influenciadas pelas exigências da globalização, expressa na atuação das organizações multilaterais e das corporações transnacionais.
Sim, as organizações multilaterais e as corporações transnacionais são novas, poderosas e ativas estruturas mundiais de poder. Elas se sobrepõem e impõem aos Estados nacionais, compreendendo extensos segmentos das sociedades civis, isto é, das suas forças sociais. É claro que essas estruturas mundiais de poder têm crescido muito em agressividade e abrangência, influenciando nações e regiões e alcançando com freqüência o âmbito propriamente global. Atuam segundo cartografias, mapas do mundo, diretrizes geoeconômicas ou, mais propriamente, geopolíticas de alcance global. São estruturas de poder econômico-político, com implicações sociais e culturais muitas vezes de grande influência e abrangência. Expressam os objetivos e as práticas dos grupos, classes ou blocos de poder predominantes em escala mundial. Naturalmente, respondem aos objetivos e às práticas predominantes não só em países centrais, potências mundiais ou imperialistas, como também em âmbito transnacional, mundial ou propriamente global. Já se formaram e continuam a desenvolver-se estruturas globais de poder, respondendo aos objetivos e às práticas dos grupos, classes ou blocos de poder organizados em escala realmente global.
Sendo assim, desloca-se radicalmente o lugar da política. Ainda que se continue a pensar e agir em termos de soberania e hegemonia, ou democracia e cidadania, tanto quanto de nacionalismo e Estado-Nação, modificaram-se radicalmente as condições “clássicas” dessas categorias, no que se refere às suas significações práticas e teóricas.
“Três elementos da regionalização e da globalização precisam ser reconhecidos: primeiro, o modo pelo qual os processos de interdependência econômica, política, legal, militar e cultural estão mudando a natureza, o alcance e a capacidade do Estado moderno, e de como a sua capacidade ‘regulatória’ está sendo desafiada e reduzida em algumas esferas; segundo, o modo pelo qual a interdependência regional e global cria cadeias de decisões e atuações políticas inter-relacionadas entre os Estados e os seus cidadãos, alterando a natureza e dinâmica dos próprios sistemas políticos nacionais; e, terceiro, o modo pelo qual as identidades culturais e políticas estão sendo redesenhadas e reavivadas por tais processos, levando muitos grupos, movimentos e nacionalismos, em âmbito nacional e regional, a questionar a representatividade e a confiabilidade do Estado-nação” (Held, 1995:136).
Uma face importante da realidade política global compreende a formação das corporações transnacionais da mídia, que organizam e agilizam não só os meios de comunicação e informação, mas também a eleição, seleção e interpretação dos fatos, sejam estes sociais, econômicos, políticos ou culturais. Muito do que ocorre no mundo – da África e Indonésia ao Caribe ou do Oriente ao Ocidente –, seja importante ou irrelevante, divulga-se pelos quatro cantos do mundo por intermédio dos recursos e das diretrizes das corporações da mídia, compreendendo as modalidades impressas e eletrônicas. É a mídia que forma e conforma, ou influencia, decisivamente as mentes e os corações de muitos, da grande maioria, em todo o mundo, compreendendo tribos, nações e nacionalidades, ou continentes, ilhas e arquipélagos. Isto não significa que o leitor, o ouvinte, o espectador, a audiência ou o público são inermes, passivos. É claro que eles são sempre ativos, radicados no jogo das atividades sociais, compreendendo as condições concretas de vida e trabalho. E não há dúvida de que as situações sociais em que se inserem os indivíduos e as coletividades são fundamentais no processo de elaboração ou desenvolvimento da sua consciência social. Mas também é claro que os meios de comunicação, informação e análise organizados na mídia e na indústria cultural agem com muita força e preponderância, no modo pelo qual se forma e conformam as mentes e os corações da grande maioria, pelo mundo afora.
“A sofisticação da tecnologia de persuasão, no último meio século, modificou as velhas regras da comunicação humana. Na medida em que a indústria da publicidade e relações públicas tornava-se cada vez mais hábil em controlar a opinião pública, as posturas, as crenças e os sistemas de valores, foi tornando-se um imperativo manter o segredo e capacitar a população a reprimir a consciência daquilo que os manipuladores estão tramando. O controle da percepção não pode ser alcançado se for reconhecido, o que fez com que proliferassem os controles perceptivos em níveis conscientes e inconscientes (...) A suscetibilidade humana à persuasão ideológica é baseada na promessa eternamente não cumprida de sentido e ordem, uma resposta estereotipada à solidão, à monotonia, ao medo e às ameaças de fome, doença, insegurança e caos político, moral ou social. Estas ameaças são incessantemente suscitadas pela mídia comercial. A mensagem constante da mídia com estas ameaças mantém a busca compulsiva por perguntas e respostas, causas e efeitos, e compromissos ideológicos. A mensagem da mídia indica a última direção do consumo, divertimento, da política, dos negócios, da indústria, das questões militares e da religião, com suas relativas promessas de reduzir a ansiedade” (Key, 1993:313-319).
Nesse sentido, a mídia transformou-se no intelectual orgânico das classes, grupos ou blocos de poder dominantes no mundo. Um intelectual orgânico complexo, múltiplo e contraditório, mas que atua mais ou menos decisivamente por sobre os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais e as correntes de opinião pública. Enquanto estes continuam a operar principalmente no âmbito local e nacional, a mídia atua e predomina também em escalas regional e mundial, formando e confrontando movimentos de opinião pública, em diferentes esferas sociais – que compreendem tribos, nações e nacionalidades – ou atravessando culturas e civilizações. “A esfera da mídia faz tempo que conta com suas corporações globais, as quais tendem a tornar-se crescentemente maiores e mais poderosas, à medida que o século corre para o seu fim” (Sreberny-Mohammadi, 1991:123).
Sob muitos aspectos, a mídia transnacional acaba transformando-se também no intelectual orgânico dos grupos, classes ou blocos de poder atuantes em escala mundial; sempre com fortes ingerências em assuntos sociais, econômicos, políticos e culturais também regionais e nacionais.
“As mudanças que abalam o mundo criam insegurança. Elas exigem que o povo reavalie e mude de atitudes, de modo a administrar as novas mudanças. O povo busca orientação e informação, mas tem também uma forte necessidade de entretenimento e recreação. Para fazer face a essas diversas necessidades, uma corporação global da mídia tem responsabilidades especiais. A comunicação é um elemento básico de qualquer sociedade. A mídia torna essa comunicação possível, ajuda a sociedade a compreender as idéias políticas e culturais, além de contribuir para formar a opinião pública e o consenso democrático. Hoje, a sociedade usa a mídia para exercer uma forma de autocontrole. Com estas responsabilidades como pano de fundo, os executivos da mídia devem estar cientes das suas obrigações, respeitando princípios éticos em suas atividades” (Bertelsmann, 1993:4).
Sem esquecer a mobilização de todos os tipos de tecnologias, ou de todos os recursos da razão instrumental, para realizar eficazmente os meios e os fins destinados a garantir o “autocontrole” da sociedade. “Para combater a resistência do público à televisão e à publicidade, a manipulação das emoções tornou-se ainda mais sofisticada. Ciências sociais e técnicas psicológicas foram acrescentadas ao arsenal, com o objetivo de condicionar o comportamento humano” (Bagdikian, 1993:223).
Note-se que a atuação da mídia está sempre acompanhada ou complementada pela publicidade, que publicidade não tem sido apenas de mercadorias, no sentido convencional. A publicidade está presente na política, religião e diferentes esferas da cultura, tanto quanto nos bens de consumo corrente. Ela envolve a informação e a interpretação de coisas, gentes e idéias, de tal modo que o leitor, o ouvinte, o espectador, a audiência, ou o público são informados, orientados, induzidos, subordinados ou manipulados. Assim, nasce o consumismo, crescente e avassalador, sôfrego e compulsivo. Mais que isso, a publicidade devido ao modo pelo qual induz ao consumo faz com que indivíduos, coletividades e multidões, consciente ou inconscientemente, elejam o consumismo como um exercício efetivo de participação, inserção social ou mesmo de cidadania. São muitos os que se comportam e imaginam como se o consumismo fosse o mais imediato, objetivo e evidente exercício de cidadania.
Sem esquecer que muito do que tem sido a mídia, como meio de comunicação, informação e interpretação, envolvendo publicidade e consumismo, ou a indústria cultural, tem sido em todos esses e outros níveis, cada vez mais imagem, muito mais do que palavra. Ou seja, a mídia compreende palavras, sons, cores, formas e movimentos, em geral articulados na profusão das imagens. Na época do globalismo, quando também se intensificam e generalizam as tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, o mundo está sendo colocado sob o signo da imagem. Em larga medida, é assim que a realidade social, econômica, política e cultural, nos âmbitos local, nacional, regional e mundial transforma-se em realidade virtual.
“A preeminência da palavra, dos grandes relatos e também do discurso político tem sido nos anos recentes substituída pela imagem. Vivemos imersos em uma cultura da imagem, que altera a idéia que fazemos da política. Para bem ou por mal, já não podemos pensar a política à margem da televisão. Quando o dom da palavra é inibido pela manipulação da imagem, mudam as estruturas comunicativas nas quais se apóiam tanto as relações de representação como as estratégias de negociação e decisão. As técnicas de marketing não substituem, mas modificam a capacidade decisória do cidadão. Enquanto os políticos competem empenhadamente pela atenção, sempre limitada, do espectador, este deve enfrentar mudo a invasão de estímulos. Fragmentada em milhares de instantâneos inconexos, a política acaba sendo reconstruída como um caleidoscópio de flashes. Há uma superoferta de informação que não faz senão ressaltar a erosão dos códigos de interpretação. Isto nos remete aos desafios que enfrentam as culturas políticas. Além do seu impacto estritamente político, a televisão ilustra a decomposição dos códigos com os quais habitualmente interpretamos o mundo. Uma avalanche de imagens fugazes e repetitivas dilui a realidade, ao mesmo tempo em que a torna avassaladora. O desconcerto do nosso “sentido de realidade’’ reflete o redimensionamento das noções de espaço e tempo’’(Lechner, 1996:68).
Esse é o contexto em que o ouvinte, o telespectador, a audiência ou o público podem ficar mais ou menos indefesos diante das forças predominantes na sociedade. Ficam preparados para tomar o consumismo como exercício efetivo de cidadania. Consideram muito do que é a realidade virtual como se fosse experiência, vivência ou existência, deleitando-se ou indignando-se no exercício da práxis imaginária.
O cartão de crédito torna-se, de fato e de direito, o cartão de identidade e cidadania de muitos, em níveis nacional e mundial. A credibilidade do passageiro, viajante, turista, consumidor, cliente ou outra modalidade de intercâmbio e circulação social está relacionada à carteira de identidade, ao título de eleitor, à carteira de trabalho, ao passaporte e ao cartão de crédito. Em praticamente todas as partes do mundo, esses e outros documentos ou signos entram no processo de caracterização ou qualificação do indivíduo, juntamente com a idade, sexo, cor, língua, religião e outros signos. O que ocorre no mundo contemporâneo, e em escala acentuada e generalizada, é que o cartão de crédito torna-se o principal documento de identidade, credibilidade ou cidadania, transformando o seu portador em cidadão do mundo, mas enquanto consumidor, alguém situado no mercado. E o consumismo, por implicação, transforma-se em expressão e exercício de cidadania, cotidiana, recorrente e universal. Assim se forma o cidadão do mundo, o cosmopolita, “alheio” à política, mas produzido no jogo do mercado, como uma espécie de subproduto da lógica do capital.
São vários os indícios de que a política mudou de lugar. Na medida em que a sociedade nacional transformou-se em província da sociedade global, são evidentes os deslocamentos ou esvaziamentos dos princípios de soberania, hegemonia e cidadania, sem esquecer da democracia. Se é verdade que esses princípios situam-se classicamente no âmbito da sociedade nacional, do Estado-Nação, ou do contraponto sociedade civil e Estado, então fica evidente que a soberania, a hegemonia, a cidadania e a democracia mudaram de lugar, perderam significados, ou simplesmente transformaram-se em ficções jurídico-políticas de um mundo pretérito.
Para esclarecer este problema, no que se refere à soberania, hegemonia, cidadania e democracia, cabe mergulhar na análise do que é ou pode ser o globalismo, compreendendo não só a emergência de estruturas mundiais de poder, mas também a emergência de uma incipiente, mas evidente, sociedade civil global. Já são evidentes alguns indícios de uma sociedade civil de âmbito global. O desenvolvimento das relações, processos e estruturas de dominação e apropriação, com alcance mundial, indica a formação de uma configuração geoistórica, isto é, simultaneamente social, econômica, política e cultural. São relações, processos e estruturas envolvendo diretamente as condições e as possibilidades de construção ou reconstrução da soberania, hegemonia, cidadania e democracia, em escalas nacional e mundial.
Na época do globalismo, crescentemente dinamizado pelas tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas, a política se desterritorializa, realizando-se principalmente na mídia impressa e eletrônica, compreendendo o marketing, o videoclip, o predomínio da imagem, da multimídia, do espetáculo audiovisual. Ao mesmo tempo que se descola, desenraíza ou desterritorializa, a política transforma-se em realidade virtual. Tanto é assim, que o discurso político torna-se cada vez mais exíguo e fragmentário, com apelos ao coloquial, afetivo, privado, suave ou inócuo. Muitas vezes parece réplica ou caricatura do programa de auditório, do show de televisão ou da telenovela.
Está longe do debate político partidário, do comício, da praça pública, do público ou do povo, estes como coletividades de cidadãos no sentido “clássico”. Transforma o público e o povo em ouvintes ou telespectadores passivos e inermes, maravilhados ou indignados. Mas uns e outros, o político e o público, o partido e o povo, transfigurados em realidade virtual, uma ficção paródica, um simulacro pasteurizado.
Esse é um mundo sistêmico e tem sido crescentemente articulado, em vários níveis e em diferentes configurações, com base nos ensinamentos e nas tecnologias cibernéticas, eletrônicas e informáticas. A partir dos interesses que predominam na economia política mundial, mas influenciando a política e a cultura, desenvolve-se uma crescente e abrangente articulação sistêmica do mundo. As corporações transnacionais, as organizações multilaterais, os blocos regionais e os Estados nacionais não só se baseiam em tecnológicas sistêmicas como também conjugam-se em moldes sistêmicos, em suas geoeconomias, em seus mapas do mundo. E é claro que essa ampla e crescente articulação não se restringe à nova divisão transnacional do trabalho e da produção.
Transborda para todos os setores da vida social, compreendendo a política, a cultura e a religião, isto é, o cristianismo. Conforme a conjuntura, em âmbito local, nacional ou regional, a articulação sistêmica intensifica-se e generaliza-se. Isso está ocorrendo cotidianamente, nas diretrizes e atividades de corporações transnacionais, organizações multilaterais, blocos regionais e Estados nacionais; em geral, à revelia de amplos setores populares das sociedades nacionais, compreendendo grupos e classes subalternos, partidos políticos e movimentos sociais.
É claro que o mundo sistêmico não é monolítico. Está atravessado por diversidades e desigualdades, nacionalismos e fundamentalismos, blocos regionais e imperialismos.
Juntamente com os processos de integração, desenvolvem-se processos de fragmentação. A rigor, o globalismo tem agravado as condições sociais e engendrado novas, em todos os níveis, nos quatro cantos do mundo.
Mas subsistem e desenvolvem-se, simultaneamente, as articulações sistêmicas, organizando o globalismo desde cima, desde os interesses dos blocos de poder dominantes e contraditórios que prevalecem no mundo.
É claro que as condições de vida e trabalho, assim como as de luta e emancipação, das classes subalternas situam-se nesse cenário. Mais do que isso, as condições de luta e emancipação dos grupos e classes subalternos, em todo o mundo, dependem da inteligência das configurações e dos movimentos da sociedade global, formando-se como o novo palco da história. Aí passam a se desenrolar outras e novas lutas sociais, além das que se desenvolvem habitualmente em níveis locais, nacionais e regionais. Mais do que isso, as lutas locais, nacionais e regionais adquirem outros significados, como ingredientes e expressões das lutas que ocorrem em escala mundial. Esse é também o cenário das ressurgências mundiais do cristianismo e islamismo, tanto quanto das manifestações de nazifascismo. Esse é o cenário em que emergem as manifestações sociais, econômicas, políticas e culturais do que se pode denominar de neo-socialismo. Por enquanto, no entanto, a globalização pelo alto, inclusive no que se refere à sua organização sistêmica, está sendo articulada pelos ideais e pelas práticas de cunho neoliberal. São várias as ideologias políticas, assim como as utopias, que assinalam aspectos fundamentais das configurações e dos movimentos desse novo palco da história. Esse é o palco no qual a política está sendo reterritorializada.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAGDIKIAN, B.H. O monopólio da mídia. Trad. de Maristela M. de Faria Ribeiro. São Paulo, Scritta Editorial,1993, p.224.
BERTELSMANN. Annual Report 1992/93. Gutersloh, 1993, p.4.
HELD, D. Democracy and the global order (from the modern state to cosmopolitan governance). Cambridge, Polity Press, 1995, p.136.
KEY, W.B. A era da manipulação. Trad. de Iara Biderman. São Paulo, Scritta Editorial, 1993.
LECHNER, N. “Por que la politica ya no es lo que fue?”, Leviatán (Revista de Hechos e Ideas). Madrid, Fundación Pablo Iglesias, n.63, 1996, p. 63-73.
SREBERNY-MOHAMMADI, A. “The global and the local in international communications”. In: CURRAN, J. e GUREVITCH, M. (ed.) Mass media and society. Londres, Edward Arnold, 1991, p.118-138.




Octavio Ianni – Sociólogo, Professor do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor de A sociedade global, entre outros – 1997
IN DOWBOR, Ladislau. IANNI, Octavio. RESENDE, Paulo-Edgar A. (Orgs). “Desafios da Globalização”. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.