Este texto se dirige a quem diz essa
frase de boa fé, na tentativa de convencê-los de que se trata de um engano
tático.(...)
O
uso de “nem esquerda nem direita” é perigoso (...) porque um de seus sentidos –
o principal – consiste em negar a existência de divisões.
Rodrigo Guimarães Nunes
É
comum que se responda à frase “nem esquerda, nem direita” com o adágio:
“mostre-me alguém que não acredita em esquerda e direita, e eu lhe mostrarei
alguém de direita”. Mas este não é sempre o caso, pelo menos no que toca às
intenções. Se é verdade que é de má fé o uso mais comum que da frase se faz, há
muita gente, talvez cada vez mais, que a usa sinceramente. Aos cínicos, não há
nada a dizer; eles sabem (e nós sabemos) de que lado estão. Este texto se
dirige, portanto, a quem diz a frase de boa fé, na tentativa de convencê-los de
que se trata de um engano tático. Falar em “tática”, aqui, é deixar duas coisas
nas entrelinhas: que há motivos legítimos que pelos quais alguns se sentem
tentados a falar desta forma, e que as intenções com que o fazem são intenções
das quais, em geral, compartilho. Dizer tratar-se de uma questão tática
significa, portanto, fazer a pergunta: o uso desta frase é mais benéfico ou,
pelo contrário, mais prejudicial a tais intenções? É aqui que se impõe a
discussão.
1 – A frase é equívoca.
Seu
sentido varia conforme o contexto e, principalmente, quem a usa. Ela
significava uma coisa quando era usada, principalmente a partir dos anos 70 e
80, para se referir a lutas e sujeitos políticos que não eram reconhecidos por
um lado nem por outro, ou cujas pautas eram, de alguma maneira, resistidas e/ou
escamoteadas por ambos: mulheres, negros, índios, gays e lésbicas… Neste caso,
queria dizer: “nenhum dos lados nos reconhece e luta por nós, por isso fazemos
nossa própria luta”.
No
surgimento do movimento ambiental, nos anos 70 e 80, ela tinha este significado
e mais um, suplementar: o meio-ambiente, questão que demorou para ser
incorporada à agenda tanto da esquerda quanto da direita (e que, na maioria dos
casos, o foi no nível do discurso muito mais que na prática), nos diz respeito
enquanto seres vivos e habitantes deste planeta, independentemente de
preferência política. Logo, seria uma questão “nem de esquerda, nem de
direita”, mas de todos.
Ela
tinha outro sentido quando começou a ser usada por atores oriundos da esquerda
histórica a partir dos anos 90. Neste caso, justificava a capitulação diante da
realidade, agora aceita como absoluta e imutável, da economia de mercado e dos
limites atuais da democracia representativa. Foi neste sentido – de “direita e
esquerda (históricas) já não existem” – que ela foi a
consigna da dita Terceira Via, isto é, a adesão, por parte de forças políticas
cuja origem remonta às lutas operárias dos séculos 19 e 20, ao neoliberalismo.
“Não há mais esquerda e direita”, no sentido de projetos que de alguma forma
fundamental se opõe; “há apenas nuances”. O tempo fez estas nuances cada vez
mais imperceptíveis, uma fratura na democracia representativa que foi exposta
de forma cristalina pela crise financeira iniciada em 2008 – em que partidos
“de esquerda” como Labour (Inglaterra), PSOE (Espanha) e Pasok (Grécia) estão
tão implicados quanto seus equivalentes “de direita”. É este o sentido do grito
de “não nos representam” que se ouve das multidões na Europa e nos EUA: a democracia
representativa, nos países onde supostamente tinha atingido sua forma mais
acabada, transformou-se num sistema em que todas as opções são essencialmente a
mesma, e todos os partidos respondem essencialmente a um cartel de interesses
corporativos financeiros, energéticos e midiáticos.
Era
também com este sentido de ruptura histórica – “já não existe” –
que, no mesmo período, ela passou a ser usada por atores provindos da direita
histórica. Com o fim do bloco soviético, já não existe mais projetos
alternativos, “não há alternativa” (como disse Thatcher) ou “o único sabor no
mercado agora é baunilha” (parafraseando Stiglitz); quem não aceita isto, é um
dinossauro cujo tempo passou. O triunfalismo da direita de sempre e o
oportunismo da “nova” esquerda partidária convergiam nisto: “fora nós, não há
nada, e quem não vê isto, está ultrapassado”. Mas convém notar que, conforme a
crise atual tem deixado claro, isto se deu não por uma convergência das agendas
políticas, mas porque a “nova” esquerda (isto é, a esquerda histórica que se
“renovou”) incorporou a agenda da direita, acrescentando-lhe “nuances” que o
tempo desbotou por inteiro.
Em
virtude desta equivocidade, é uma frase com que convém se cuidar: não só o que
se quer dizer com ela pode soar de maneira muito distinta a outros ouvidos,
como aquilo que soa a nossos ouvidos pode ser muito distinto da intenção, de
boa ou má fé, que outros têm ao usá-la.
2. A
frase abre mão de redefinir o passado.
É no
sentido de uma virada ou corte histórico, de novidade, que normalmente se
emprega a frase hoje: a partir de um determinado momento, a divisão entre “esquerda”
e “direita” teria perdido o sentido. A primeira coisa a fazer é observar que,
enquanto o momento histórico apontado como aquele da ruptura varia e sempre
encontra um novo “agora”, a frase em si já é usada assim há pelo menos 15 anos.
A segunda é perguntar se o desaparecimento desta distinção política implica o
desaparecimento das divisões sociais: ainda se pode falar de “pobres” e
“ricos”, os que “têm acesso” e os que “não têm acesso”, os que “têm
oportunidades” e os que “não têm oportunidades”? Foi nestas divisões, afinal,
que a distinção entre esquerda e direita se originou. Introduzir uma distinção
em termos de “mais” e “menos” – “mais ou menos” acesso, “mais ou menos”
oportunidade – não parece suficiente para eliminar as divisões. No limite, sempre
restam aqueles que têm “muito pouco” e os que têm “demais”; uma distância que,
nas três últimas décadas tendeu, de forma geral no mundo, a aumentar.
A
frase pode ser entendida como um exercício legítimo de distanciamento em
relação ao desastre das experiências do “socialismo real”: os gulags, as
coletivizações forçadas que levaram a mortes em massa, as ditaduras de um só
partido. (Sem embargo, é curioso notar como, enquanto o socialismo real “foi
testado e falhou”, o capitalismo real, em seus mais de cinco
séculos de colonialismo, escravagismo, miséria sistêmica, negação de direitos e
destruição ambiental, sempre nos pede que o julguemos de acordo com seu estado ideal:
“é verdade que há muitos problemas – mas um dia haverá abundância para
todos!”.) Mas então “esquerda” foi apenas aquilo?
O que
dizer dos desejos de igualdade, liberdade e reconhecimento que animaram os
indivíduos cujas lutas formaram aquilo que se veio a chamar de esquerda – e
que, em muitos casos, acabaram oprimidos pelas instituições (partidos,
sindicatos, estados) que contribuíram para criar? Por trás do esforço para
escamotear este patrimônio e tornar “esquerda” sinônimo dos horrores feitos sob
este nome, existe, no uso cínico que muitos fazem da frase, o desejo de afirmar
que lutar contra as divisões que existem e buscar-lhe alternativas
inevitavelmente acabará em desastre. É do papel de quem não tem interesse em
que as coisas mudem dizer que o “melhor é inimigo do bom” (Voltaire), que “não
há alternativa”; é do papel de quem tem o desejo de mudanças não ajudá-los. E
se os desejos de mudança ainda existem, é fundamentalmente porque as divisões
não acabaram, pelo contrário, estão sempre ressurgindo, em outros limites e de
novas formas. E se alguém pode e deve encarnar estes desejos, é justamente
aqueles que “não têm” – renda, acesso, oportunidades, reconhecimento.
Aceitar
que se reduza a esquerda histórica a seus horrores não seria, então, admitir
que os opressores de hoje reduzam aqueles que ontem lutaram e
aqueles que hoje desejam àquelesque ontem oprimiram?
Sim, os horrores foram muitos. Mas a inventividade e ousadia de milhões de
homens e mulheres, quer se identificassem como “esquerda” ou não, que
acreditaram na possibilidade de alternativas; e a riqueza daquilo que eles, por
mais frágil e temporário que tenha sido, souberam construir – isto também foi
o que historicamente se chamou de esquerda. Permitir que esta memória suma por
trás da sombra de ditadores é enterrar estes mortos de novo, negar-lhes em
morte os sonhos que apenas os vivos poderão, talvez, um dia redimir. É, ainda,
negar aos vivos uma herança, e participar da negação da possibilidade de seus
desejos por parte daqueles que são… “vivos demais”.
3 – A frase abre mão de redefinir o
presente.
Com
frequência, hoje, ela é usada de boa fé por quem pensa o seguinte: “existem
partidos e instituições que se dizem de esquerda, mas se comportam como
direita; e existem aqueles que não são de direita, mas que, mesmo que bem
intencionados, estão completamente desconectados do presente e são, portanto,
inteiramente irrelevantes”. Neste caso, ela está muito próxima do sentido que
movimentos à margem da esquerda “clássica” nos anos 70 e 80 lhe emprestavam:
ninguém nos representa, logo temos que fazer nossa própria luta. Existe uma
diferença importante entre um momento e outro, contudo, que é precisamente o
fato de que, entre aquele momento e agora, houve um outro em que o sentido de
“nem esquerda nem direita” foi redefinido – e foi redefinido, como vimos, por
quem empregava a frase com o intuito de dizer: “fora nós, não há alternativa, e
quem não vê isto, está ultrapassado”.
Quanto
à segunda parte do pensamento resumido no parágrafo anterior, é bom deixar
claro: dizer que “esquerda” não é sinônimo de “dinossauro” não significa que o
mundo não seja habitado por inúmeros dinossauros que se reivindicam de
esquerda, aparentemente imunes a qualquer meteoro que os possa extinguir. Mas o
que mais importa é a primeira parte, “a esquerda que assim se diz não o é, logo
não existe esquerda”. Deixemos de lado sua lógica defeituosa (se eu digo “x não
é de esquerda”, eu presumo a existência de alguma coisa chamada “esquerda” com
que posso compará-lo); o sentimento que ela expressa é absolutamente real e
amplamente compartilhado. O problema, contudo, é que ela aceita os termos
impostos por quem se está criticando: se eu digo “não existe esquerda” porque
um partido “que se diz de esquerda” não o é, estou consentindo exatamente
aquilo que este partido quer me dizer – que ele “é a esquerda”,
e fora dele “não há alternativa”. De maneira mais geral, isso significa admitir
que a esquerda se reduz àquelas forças constituídas que reivindicam o nome; e,
num sentido ainda mais geral, implica aceitar a redução da política à política representativa.
É aí
que se encontra todo o impasse hoje: não apenas o sistema representativo
colapsou muitas das diferenças que eram relevantes para que se distinguisse
“esquerda” e “direita”, ele demonstra imensas dificuldades para reconhecer
novas divisões surgidas no seio da sociedade. Mais do que isso, o próprio
sistema hoje implica uma divisão, cada vez mais patente, entre
“não-representados” e “representados demais”. É do papel do sistema, como
mecanismo de auto-defesa, negar que esta e outras divisões existem. Mas o que
importa, ainda e sempre, é que elas existem e implicam lados. São os lados que
se opõem ao longo dessas divisões, e os sujeitos sociais que aí se confrontam,
que devem definir, hoje, o que é esquerda e direita. Quando se diz que o atual
momento está “para além de direita e esquerda”, o que se quer dizer é direita e
esquerda dentro do espectro representativo representam a mesma
(ou cada vez mais a mesma) coisa. Mas é só a este espectro que se reduz a
política?
Afirmar
os desejos de mudança de hoje passa por reconhecer as divisões que os
sustentam, e que aqueles que não querem a mudança têm, portanto, todo interesse
em esconder. E se a divisão mais aguda atualmente é que existe entre sub-
e sobre-representados, representados “demais” e “de menos”, o
primeiro passo para tornar o problema visível é, justamente, negar aquilo que a
política representativa tenta afirmar: que ela é o limite absoluto, fora do
qual não há nada. É preciso, portanto, dizer que a política se estende para
além da política representativa e constituída; que ela hoje se dá,
principalmente, naquelas divisões que a política constituída pretende ignorar.
É preciso, sobretudo, apontar estas divisões e torná-las claras: há, sim,
várias questões hoje que opõe um “eles” e um “nós”.
Com
efeito, talvez seja justamente aquele caso em que a inexistência de divisões
seria mais fácil de aceitar – o ambiental – o que melhor as exponha. Porque se
é verdade que a mudança climática nos põe a todos, enquanto habitantes do mesmo
planeta, no mesmo barco – como no Titanic, não estamos todos neste barco do
mesmo modo. Pelo contrário, a questão ambiental evidencia diferenças claras
quanto à distribuição de recursos, custos e efeitos.
A distribuição dos recursos marca divisões tanto entre países e regiões do
mundo quanto internas à países e mesmo cidades: tanto internacional quanto
nacional e localmente, alguns consomem muitos recursos enquanto outros consomem
muito poucos. Os custos, igualmente, se distribuem conforme as linhas da
divisão internacional do trabalho, mas também regional e socialmente dentro de
cada país: o passivo ambiental e social da exploração de novos recursos cai
desproporcionalmente sobre alguns países (o petróleo na Nigéria), regiões (o fracking na
Carolina do Norte, nos EUA; a região norte, no Brasil) e, principalmente, um
determinado tipo de população (pobres, indígenas); os lucros e benefícios vão
desproporcionalmente para países, regiões e grupos mais ricos. Finalmente, os
efeitos da mudança climática afetam desproporcionalmente os mais pobres, desde
os impactos sobre populações em áreas de risco a migrações forçadas e a suba do
preço de alimentos por conta de eventos climáticos extremos. Em outras
palavras, a questão ambiental é inteiramente atravessada por questões sociais e
políticas, porque ela é inteiramente atravessada por divisões sociais
e políticas. Nós podemos querer nos iludir quanto a isto; mas o poderosíssimo
lobby exercido pelas indústrias automobilística e petrolífera, do agribusiness,
da especulação imobiliária e das construtoras, no Brasil e em todo mundo, sabe
muito bem que este é o caso.
O uso
de “nem esquerda nem direita” é perigoso, portanto, porque um de seus sentidos
– o principal – consiste em negar a existência de divisões. Se eu e meu
adversário usamos as mesmas palavras, mas ele tem mais poder que eu para
definir seu sentido, é hora de eu começar a usar outras.
***
Em
1997, um grupo de movimentos sociais, organizações e intelectuais franceses
assinou um manifesto dirigido ao Partido Socialista, que então se apresentava
às eleições, com o título: “Nós somos a esquerda”. Em
outras palavras, o que eles afirmavam era: “se vocês querem dizer que nos
representam e esperam contar com nosso voto, esta é a plataforma que vocês
devem adotar”.
Não se
trata de propor imitar este exemplo, que, em retrospecto, não foi bem-sucedido,
mas sim de ver aí um gesto mais radical que a repetição de uma frase de sentido
equívoco e que serve tão bem ou melhor àqueles que têm intenções contrárias às
nossas. Mais radical porque, ao invés de situar-se nos termos do debate
impostos por aqueles que queremos criticar, se situa diagonalmente a eles,
expondo seu ponto cego e tornando a raiz do problema visível de uma forma que a
outra frase (que pode ser entendida de muitas formas) não consegue. Trata-se,
neste caso, de afiançar a continuidade da existência de divisões e choques de
interesse, e de expor o limite da democracia representativa, que cada vez mais
trabalha para escamoteá-las; de afirmar que são estas divisões, e não a
trajetória passada deste ou daquele político ou deste ou daquele partido, que
deve definir por onde passa hoje a linha que separa “esquerda” e “direita”
hoje; e, finalmente, de dizer que é a partir desta redefinição que se forma,
por trás da “esquerda” – instituída, representativa –, uma outra esquerda que
ainda não se fez ouvir, e que se fará ouvir através de ou apesar
das instituições que reivindicam este nome.
Trata-se,
em suma, de não aceitar a imagem que nos oferecem do presente e do passado, mas
de dedicar-se ativamente a uma nova triagem que, descobrindo virtualidades
passadas e presentes que se pretendia ocultar, abrem novos futuros possíveis.
Qual
seria o conteúdo de um tal “nós”, no Brasil e no mundo, hoje?
Rodrigo
Guimarães Nunes - Doutor em filosofia pelo
Goldsmits College, Universidade de Londres; atualmente é professor colaborador
e pesquisador pós-doutoral CAPES/PNPD-Fapergs no Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da da PUCRS – março 2013
IN
Revista Forum –
http://revistaforum.com.br/blog/2013/02/tres-motivos-para-nao-dizer-nem-esquerda-nem-direita/