A gestão irresponsável
desta crise está a levar à destruição dos fundamentos da democracia nos Estados
europeus.
José Manuel Pureza
O que está hoje em jogo no apodrecimento imparável da crise do euro já
não é a sobrevivência de uma moeda nem mesmo a sobrevivência da integração
europeia. É a sobrevivência da democracia. Pelas mãos de integristas que
idolatram o equilíbrio das contas públicas como supremo bem, a gestão
irresponsável desta crise está a levar à destruição dos fundamentos da
democracia nos Estados europeus. Entrámos numa era de pós-democracia em que os
critérios de legitimidade da governação e dos seus protagonistas deixaram de
ser a expressão do voto popular para passarem a ser o alinhamento com o sector
financeiro e a suposta capacidade mágica de "tranquilizar os
mercados".
Os últimos dias mostraram em que ponto vai já esta pós-democracia. O
diretório franco-alemão, reunido em Cannes, não hesitou em perpetrar um
verdadeiro golpe de Estado na Grécia, afastando de cena um primeiro-ministro
que ousara sugerir que o povo se pronunciasse sobre os ditames da troika. Golpe
de Estado, sim: sem eleições, a Grécia passa a ser governada por um homem vindo
do Banco Central Europeu e da Trilateral com a óbvia confiança dos mercados.
Ei-la enfim no bom caminho, dizem-nos os telejornais e os comentadores
encartados. Entretanto, em Itália, é nomeado um Governo presidido por um
emissário do sistema bancário e composto por tecnocratas em quem ninguém votou.
Definitivamente, a democracia tornou-se um risco para os mercados e, diante
disso, a Europa desistiu da democracia.
Entenda-se a lógica que dá suporte a este afastamento da democracia. Tal
como na América Latina dos anos 80 e 90, a Europa está hoje a ser bombardeada
pela apologia dos gestores como os governantes ideais. A direita liberal, a que
se junta muito do antigo campo social-democrata fascinado pelas lendas do new
public management, tem sido capaz de fazer vingar a tese de que o Estado
tem de ser governado pela mesma lógica das empresas privadas, demonizando o
défice e cortando a eito nos serviços públicos (saúde, educação, transportes) e
nas políticas sociais. Para essa missão redentora, "os políticos" -
e, sobretudo, as exigências da democracia - são descartáveis como
"gorduras". A governação, não mais como serviço das populações mas como
aplicação dos ditames dos credores, passa a ser empresarializada. E não tardará
muito que seja mesmo contratualizada em regime de outsourcing... O
horror da política, tão caro aos liberais, é o pórtico para o fim da
democracia.
Portugal não escapa a esta onda pós-democrática. As eleições de 5 de
Junho foram já um desvio grave ao que deve ser um genuíno pronunciamento
popular sobre as propostas dos diferentes partidos - a troika tinha assegurado
a assinatura de sangue dos três principais partidos para que, qualquer que
fosse o resultado, o programa a aplicar no dia seguinte fosse o acordado com
ela. E nas próximas semanas acentuar-se-á a pressão para uma governação
"de unidade nacional". PS e PSD, sob a batuta da troika e dos seus
ideólogos internos, dão sinais inequívocos de ir nesse caminho. Só que esta não
será uma unidade nacional para defender a democracia, mas para a minorar quer
no campo político quer no terreno social. Uma "unidade nacional" para
mais facilmente conseguir o completo desmantelamento do Estado social, do
serviço Nacional de Saúde ao salário mínimo e às pensões.
Refém da irresponsabilidade da ganância, a Europa não hesita em acolher
governos ilegítimos e em adotar como seu o discurso de que o voto do povo é um
empecilho para "o que tem de ser feito". Esta Europa tem medo da
democracia. E só a democracia pode resgatar a Europa.
José Manuel Pureza – Dirigente do Bloco de Esquerda e professor universitário em Portugal –19.11.2011
Artigo publicado no “Diário de Notícias” de
18 de Novembro de 2011
IN “Esquerda.net” – http://www.esquerda.net/opiniao/democracia-como-um-risco