Sobrevivente do massacre de Corumbiara, há 16 anos, vive escondido.
Entidades pedem nova investigação do caso
João Peres
Claudemir Gilberto Ramos, de 38
anos, há 16 tem a cabeça a prêmio. Pelo que se sabe, são R$ 50 mil por sua
morte. "Para mim, já estou cumprindo a pena até demais, mesmo não estando
na prisão. Só não me entreguei porque acho injusto. Se tivesse cometido crime,
tinha que pagar pelo que fiz, mas não cometi." Claudemir considera-se um
"foragido da injustiça". Desde o massacre de trabalhadores rurais em
Corumbiara (RO), ele não sabe o que é endereço fixo, trabalho com registro em
carteira ou convívio familiar. Condenado a oito anos e meio de reclusão,
reclama um novo julgamento e uma efetiva apuração dos fatos ocorridos na
madrugada de 9 de agosto de 1995, quando ao menos 12 sem-terra foram mortos por
policiais militares e pistoleiros na Fazenda Santa Elina.
Em entrevista à Rede Brasil Atual e
à TVT - a primeira desde aquela época -, Claudemir contou que não sabe quando
foi a última vez que viu as filhas e a mãe. Na visão da Organização dos Estados
Americanos (OEA), o episódio representa um erro cometido pelo Brasil devido às
execuções realizadas por policiais e ao júri repleto de inconsistências.
Claudemir e seu colega Cícero
Pereira Leite foram condenados com base em uma peça do Ministério Público
Estadual que se baseou quase exclusivamente na investigação da Polícia Civil.
Esta tomou como fundamento a apuração conduzida pela Polícia Militar, envolvida
na operação. O lavrador diz que teme pela própria integridade física, por isso
não se entregou em 2004, quando se esgotaram os recursos no Judiciário e ele
passou a ser considerado foragido. "Tenho certeza que se me entregar e for
pra Rondônia não demora muito eles (fazendeiros e policiais) me assassinam,
porque o preconceito da Polícia Militar é grande pela morte do tenente",
afirma. A referência é a um dos policiais que morreram no enfrentamento.
Relatório de 2004 da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), integrante da OEA, concluiu que eram
necessários novos esforços de investigação. "A falta de independência,
autonomia e imparcialidade da PM (…) constitui violação do Estado
brasileiro", defende o órgão. Nas palavras de Claudemir, não se pode pagar
por um crime que não se cometeu: "O julgamento foi totalmente
preconceituoso. Para mim, quem tinha que ser condenado eram os mandantes".
Os fazendeiros apontados como responsáveis pelo aliciamento de uma milícia
armada infiltrada entre policiais foram "impronunciados pela Justiça"
- quer dizer, as acusações foram descartadas antes mesmo de haver julgamento.
Ocupação
A ocupação teve início em 15 de
julho de 1995. Na tarde de 8 de agosto, quando havia uma ordem judicial para a
remoção dos sem-terra, uma negociação definiu que em 72 horas haveria nova
conversa sobre a saída, segundo Claudemir. Os acampados queriam garantias de
que a área seria destinada à reforma agrária. "Até comemoramos entre os
familiares, fizemos assembleia-geral, achando que tinha (sido) conquistado um
passo da vitória porque a área já estava negociada", resume.
Na madrugada, no entanto, um grupo
invadiu o local a balas. "A gente não pode ser hipócrita: tinha vigília no
acampamento, até porque já tinha recebido vários ataques dos jagunços. Tinha arma
de caça, ferramentas, só que (com) nossas armas era impossível combater o
comando da polícia e dos jagunços." A legislação brasileira proíbe que
ações de reintegração de posse sejam cumpridas durante a noite. Na troca de
tiros, morreram três policiais e dois trabalhadores. "O que fiz foi me
deitar no chão. Só ouvi os gritos das pessoas. Não tinha como fazer nada.
Fiquei ali de bruços no chão. A única arma que eu tinha, que eu tava usando no
dia da negociação, era uma máquina de foto, que no dia seguinte, na tortura,
foi quebrada na minha cabeça."
Dominados os trabalhadores, a
polícia deu início a uma série de agressões, torturas e execuções, documentadas
em depoimentos e análises técnicas. Os adultos foram amarrados e jogados no
chão; crianças eram obrigadas a pisoteá-los. Uma menina de 6 ou 7 anos
recusou-se e acabou morta, segundo relatos. Claudemir conta que homens sofreram
mutilação dos testículos e alguns mortos tiveram o pescoço cortado por
motosserra. Os trabalhadores foram obrigados a comer terra misturada ao sangue.
Nessa etapa, há oito execuções extrajudiciais comprovadas.
"Não tinha um comando, um
chefe, mas eles me consideravam um chefe. Foi onde começou a tortura." Com
a cabeça ferida por baionetas, ele desmaiou e, segundo testemunhas, foi jogado
em um caminhão em que foram transportadas as vítimas. Claudemir lembra que
acordou no necrotério. Lá, representantes da CUT e do PT já haviam se inteirado
do massacre e pressionaram para que fosse preservada a vida dos feridos.
Em 2000, o Tribunal de Justiça de
Rondônia agendou uma série de julgamentos sobre o caso. O Ministério Público
defendeu a tese de que Claudemir e Cícero convenceram as mais de 2.000 pessoas
que integravam as 500 famílias a ocupar Santa Elina. O promotor Elício de
Almeida Silva defendeu, então, que os policiais eram culpados pela morte de 12
trabalhadores e deveriam ainda responder por cárcere privado, uma vez que
teriam impedido a saída dos demais acampados.
"Não achava que ia ser
condenado porque não tinham prova nenhuma. Só que no final do julgamento a
surpresa foi grande. No corpo de jurados, para mim, tudo era ou fazendeiro, ou
amigo dos fazendeiros", relata Claudemir. "Para mim, não tem prova,
não devo esse crime. Estava lutando pelos direitos dos trabalhadores, e isso
não é crime", sustenta.
O colega Cícero Pereira foi
condenado a seis anos e dois meses por participação em um homicídio. Pela parte
dos policiais, foram sentenciados o capitão Vitório Regis Mena Mendes e os
soldados Daniel da Silva Furtado e Airton Ramos de Morais, mas todos ganharam
direito a novo julgamento. Os demais policiais foram absolvidos, bem como
Antenor Duarte, indicado por pistoleiros como mandante do massacre, tendo
inclusive premiado com carros os comandantes da operação.
Movimentos de defesa dos direitos
humanos remeteram o caso à OEA. Em 2004, a CIDH informou que os fatos ocorreram
antes do ingresso do Brasil no sistema interamericano de Justiça e, portanto, o
caso não poderia ser enviado à Corte. Mesmo assim, recomendou que o país
deveria conduzir uma apuração imparcial e séria, determinando inclusive a
participação de cada um dos envolvidos nos crimes, a começar pelos mandantes.
O Comitê Nacional de Solidariedade
ao Movimento Camponês de Corumbiara apoia-se no relatório da CIDH para
solicitar novo julgamento. "Estamos tentando despertar o interesse de
nossa sociedade em torno de uma grande injustiça", argumenta o padre Leo
Dolan, presidente do comitê. "Sem uma reforma agrária séria, os problemas
do Brasil não serão resolvidos", insiste. "Durante anos muito sangue
já foi derramado, muitas vidas perdidas, e até hoje não foi possível uma
reforma agrária séria e eficaz."
João Peres – Abril de 2011
IN “Revista do Brasil” – Edição 58 – http://www.redebrasilatual.com.br/revistas/58/fugitivos-da-injustica/view