Impressiona a lista de casos que vem sendo
enfrentada pelo STF, como confirmar poderes do CNJ e reconhecer direitos de
minorias É tudo da Lei.
Oscar Vilhena Vieira
Com a Constituição de 1988 o STF assumiu posição de grande proeminência
em nosso sistema político. Afinal, guardar uma Constituição tão ambiciosa não é
missão destituída de enormes desafios. Impressiona a qualquer um a lista de
casos relevantes enfrentada pelo Supremo nos últimos anos. Importante que se
diga, no entanto, que na ampla maioria desses casos o STF apenas reagiu a
demandas formuladas por atores políticos e sociais inconformados com suas
derrotas sofridas no plano democrático. Ou seja, sua atuação predominante se
deu no campo da análise de políticas públicas ou medidas legislativas aprovadas
e colocadas em prática pelo sistema representativo. O que indica que a
proeminência do STF não resulta da omissão do Executivo e do Legislativo, mas,
sobretudo, em função de políticas promovidas por governos reformistas que
desagradaram a setores da sociedade.
O caso das ações afirmativas e do
ProUni, julgado nessa semana, constituem bom exemplo. Essas políticas foram
desenhadas e implementadas pelas universidades, pelo governo federal e pelo
legislador, cumprindo ao Supremo apenas convalidá-las da perspectiva
constitucional. Não há, portanto, que se falar em uma postura ativista. O mesmo
poderia ser dito em relação a decisão tomada pelo tribunal no caso da lei de
biossegurança, que autorizou a utilização de embriões congelados inviáveis para
a realização de pesquisa com células-tronco; da decisão que legitimou a
proibição estabelecida pelo governo em relação à importação de pneus usados da
União Europeia, que se tornariam um enorme ônus ambiental para a sociedade
brasileira; ou, ainda, da decisão que confirmou a demarcação de Raposa Serra do
Sol. Nessa mesma linha, o STF proferiu decisões relevantíssimas para o
aprofundamento do Estado de Direito e da democracia, ao confirmar os poderes do
CNJ, criado pela emenda 45, e respaldar a Lei da Ficha Limpa, o que certamente
produzirá efeitos saneadores sobre nossas instituições políticas e jurídicas.
O tribunal foi mais ousado, no entanto,
ao reconhecer direitos de minorias insulares e tradicionalmente excluídas do
processo político, como os homossexuais ou as mulheres portadoras de fetos
anencéfalos. Aqui, a ausência de norma legal foi superada por uma decisão que
extraiu diretamente da Constituição, mais especificamente do princípio da
dignidade humana, a proteção devida. Ao expressar publicamente a
constitucionalidade de políticas e extrair sentido concreto do texto
constitucional, o Supremo favorece o enraizamento de nosso pacto
constitucional, estabiliza o sistema político e permite que as mudanças que a
sociedade brasileira exige sejam realizadas sem maiores conflitos. Ao proferir
o último voto no caso das ações afirmativas, o novo presidente da corte,
ministro Carlos Ayres Britto, reivindicou que o STF estaria dando sua
contribuição ao processo de construção de uma verdadeira nação, que a todos
reconhece como sujeitos de direito e obrigações. Vejo nessa reivindicação uma
aguda percepção de que o direito pode ter um importante papel no processo de
desenvolvimento de uma sociedade e para isso é indispensável que as
instituições cumpram, sem tergiversar, seu papel.
Ao assumir tamanhas responsabilidades,
no entanto, o Supremo demonstra suas fragilidades e angaria adversários. O
recente projeto voltado a conferir ao Congresso poderes para suspender atos
normativas é uma demonstração rústica dos descontentes que não deve prosperar.
O momento, no entanto, é oportuno para que o Supremo qualifique seu processo
decisório de forma a ampliar a autoridade de suas decisões. Deveriam constar de
uma agenda de reformas de nosso processo constitucional as seguintes medidas:
racionalização e transparência da agenda do tribunal. Não se pode aceitar que
questões de alta relevância durmam por décadas nos gabinetes enquanto outras
sejam julgadas em semanas e é urgente reduzir as decisões monocráticas no
Supremo, pois essas subvertem a própria natureza de um tribunal. Aquele que tem
por responsabilidade dar a última palavra deve se cercar de todos os cuidados
para que essa seja a palavra mais certa possível; a construção de decisões
consensuais, que expressem razões e a interpretação dada pela maioria dos
ministros da corte. Hoje, mesmo em decisões unânimes, temos a concorrência de
11 votos, cada um com sua lógica, o que dificulta o estabelecimento de
precedentes que pautem as demais instâncias do Judiciário, do poder público e
da sociedade. Para que o STF possa continuar exercendo sua missão de garantir a
Constituição, é indispensável que sua transparência, autoridade e a integridade
de suas decisões estejam reforçadas.
Oscar
Vilhena Vieira – Professor de
Direito Constitucional, diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas
em SP - 06 de maio de 2012
O perigoso charme do Supremo
O Supremo está discutindo o que deveria ser debatido
pelos partidos – da marcha da maconha às cotas.
Fernando Abrúcio
O aumento do
poder do STF tem sido interpretado, geralmente, de dois modos. De um lado, há
aqueles que louvam a visão progressista de seus ministros, capazes de resolver
de forma parcimoniosa problemas como o da reserva Raposa Serra do Sol ou de
solucionar questões que o Congresso evita deliberar, como a união homoafetiva
ou a recente decisão contra a guerra fiscal. De outro, existem os críticos a
esta maior judicialização da política, uma vez que os togados não foram eleitos
pelo povo e estariam usurpando funções dos que têm voto – como no caso da
verticalização das eleições.
As duas
interpretações contêm parcelas da verdade. Obviamente que é perigoso repassar a
não eleitos atividades que deveriam ficar com os políticos, depositários
últimos da soberania popular. Mas também é fato que o Supremo tem garantido
espaço a uma agenda essencial ao país que não tem sido resolvida pelo Congresso
Nacional. Por essa razão, a legitimidade do STF tem se fortalecido, tornando a
instituição cada vez mais respeitada.
Mais ativista,
o Supremo Tribunal Federal gera, a um só tempo, desequilíbrio na relação entre
os Poderes e aumento da necessidade de atuação do Executivo e, sobretudo, do
Legislativo em temáticas centrais para a sociedade. Em outras palavras, o STF
pode se envolver nas funções dos demais, mas também incentivá-los a reagir e a
atuar mais intensamente na agenda que interessa ao país. No jogo entre esses
dois vetores, nem sempre a melhor resposta será obtida. Talvez somente o
aprendizado cotidiano com o sistema democrático nos leve, ao longo do tempo, a
melhores resultados.
O ponto mais
preocupante não está numa pretensa usurpação de poderes, embora, por vezes,
ministros togados exagerem no exercício de seu poder. Também não creio, em
hipótese alguma, no esvaziamento do Executivo ou do Legislativo por conta do
ativismo do Supremo. O Executivo continua com grande força por conta de seus
instrumentos burocráticos, financeiros e políticos. A centralidade da
Presidência no sistema político é evidente. O Congresso em muitas ocasiões
abdica ou delega poderes, mas também é fato que assuntos fulcrais passam por
sua alçada, como recentemente foram os casos do Código Florestal e do sigilo
dos documentos oficiais.
O STF está
discutindo aquilo que deveria ser debatido pelos partidos políticos e estes,
infelizmente, não conseguem se posicionar sobre o que mais importa à sociedade
brasileira. Afinal, para além dos discursos genéricos e vazios, qual é a visão
de PT e PSDB sobre a reforma tributária? Alguém pode dizer que essa é uma
questão muito complexa. Retruco: em relação ao Código Florestal, tão em voga e
que será definido em breve pelo Congresso Nacional, o que tucanos e petistas pensam
como agremiação política? Passando para o terreno dos valores, o que as duas
maiores siglas do país acham da decisão do Supremo de liberar a “marcha da
Maconha”? Ou sobre as cotas para negros, tema que será definido pelos ministros
togados no próximo semestre?
Poderia
fazer essas mesmas perguntas ao PMDB, DEM, PSB e outros. Obviamente que não as
faria ao PSD, que já se disse ser de todos os espectros ideológicos. Se a
resposta permanecer basicamente a mesma, fica a constatação de uma grande
preocupação: os partidos não discutem e nem se definem em relação ao que é
central na agenda do país. No contraste com esta situação, e diante da
fragmentação da sociedade brasileira, é que se afirma o perigoso charme do STF.
Fernando Abrúcio – Doutor em
ciência política pela USP e professor na FGV – 24.06.2011