Os incômodos causados por Keynes aos que postulam o paradigma da “racionalidade” foi e têm sido consideráveIS. A inexistência de bases “racionais” para a tomada das decisões econômicas cruciais, aproxima perigosamente a economia e suas pretensões científicas do “inferno irracional” que os economistas imaginam cercar as decisões políticas. A economia, transformada num “saber histórico”, converteria os economistas em cidadãos de segunda classe na hierarquia da comunidade científica.
Luiz Gonzaga Belluzzo
Na antiguidade clássica e na idade média, argumenta Hegel na Fenomenologia
do Espírito , a subjetividade estava completamente submetida a uma ordem
“objetiva”, imutável e implacável do mundo. Esta cosmologia estava presente na
religião grega, no mundo jurídico romano e, com algumas diferenças, na “ordem
revelada” da Idade Média cristã. Mesmo os que, como Heráclito, fundavam sua
reflexão sobre o “movimento universal”, viam nele uma sucessão de
desdobramentos da natureza e da sociedade que escapavam ou estavam acima da
personalidade humana. O destino implacável não era, portanto, uma representação
ilusória do movimento do mundo, mas uma forma histórica da consciência dos
homens.
Na aurora da Idade Moderna, a expansão do comércio nos poros da ordem
feudal, a ciência experimental de Bacon, o “cogito” de Descartes desembaraçaram
o sujeito de sua submissão ao mundo objetivo e estimularam o projeto do
controle da natureza e do destino humano pela razão. Desde então, o sujeito
pretendeu cobrar os seus os seus direitos de dominação, reivindicando o poder
de suas Luzes, abominando os obstáculos da tradição ou de tudo lhe figurasse
contrário aos princípios de uma ordem natural, desvendada e comandada pela
“razão”.
A Economia Política Clássica já estava “contida” no pensamento político
e moral inglês do século XVII e na filosofia da Ilustração do século XVIII, que
tentavam responder aos desafios colocadas pelo nascimento de uma sociedade de
indivíduos, nos interstícios da ordem assegurada pelo Estado Absolutista. Carl
Schmitt afirma que ninguém compreendeu tão bem a natureza da sociedade dos
indivíduos como Hobbes. Quando Hobbes se refere ao estado de natureza, não está
se referindo ao momento de constituição do Estado, mas a um momento em que o
Estado está ausente, em que as hordas privadas mergulhavam a sociedade dos
indivíduos na guerra civil. Isto o fez concluir que é o medo do aniquilamento
que constrange os indivíduos a entregar a própria liberdade aos cuidados do
Leviatã.
Para o Hobbes de Schmitt, a visão do estado de natureza como um estado
em que os homens conviviam pacificamente, em que o homem era naturalmente bom,
só pode surgir em uma sociedade em que o Estado está consolidado, em que a
sociedade civil já está submetida às leis emanadas do Soberano. A visão do bom
selvagem, do homem predisposto ao contrato com o outro, como Locke a formula,
pressupõe o Estado já organizado.Hobbes, ao contrário, surpreende a sociedade
dos indivíduos no momento em que o Estado submergiu na voragem da guerra
religiosa, soçobrou na crise da sociedade governada pelo desejo e pelo medo.
Para Hobbes, a possibilidade de o Estado ser destruído numa crise desencadeada
pelas rivalidades “particularistas” da sociedade civil é permanente.
Na Teoria dos Sentimentos Morais, Adam Smith dispõe-se a refutar “tão
odiosa doutrina e provar que, anteriormente a qualquer lei ou instituição
positiva, a mente estava dotada naturalmente da faculdade que permitia
distinguir, em certas ações e afeições, as qualidades do certo, do louvável e
do virtuoso, e, em outras, aquelas do errado, do condenável e do vicioso... É
através da razão que descobrimos estas regras gerais de justiça que regulam
nossas ações. ”Na Riqueza das Nações, Smith deriva a propensão para a troca a
partir das inclinações naturais do indivíduo naquele “estado rude e primitivo
da sociedade”. A troca de mercadorias decorre da disposição natural dos
indivíduos privados à relação com o “outro”, cimentando em bases firmes e
racionais a nova “sociabilidade”.
Os indivíduos, produtores independentes de mercadorias, buscando o seu
interesse, “constituem” a sociedade. Smith procede, na verdade, a uma
“despolitização” das relações sociais, buscando afirmar a autonomia da
sociedade econômica em relação ao Estado Absolutista, sublinhando o seu caráter
natural e “espontâneo”, que se deixa revelar na sabedoria providencial e
impessoal da Mão Invisível. Enquanto permanecia a dependência do político, como
sustentavam as teorias economicas do mercantilismo, não era possível pensar a
economia como um sistema racional, submetido à operação de leis semelhantes às
que comandam o mundo físico e biológico.
A economia surge, portanto, com a pretensão de se constituir numa esfera
privilegiada da convivência, em que a liberdade é uma imposição das leis que
regem a natureza humana. As leis naturais decorrem da “razão”dos indivíduos que
os predispõem às relações contratuais, mediante a livre disposição da vontade.
Tais leis devem seguir o seu curso, desembaraçadas da interferência e do
arbítrio da política. “Laissez-faire, laissez-passer” clamavam os
fisiocratas, imaginando o organismo econômico como um análogo dos organismos
biológicos.
A economia, ao longo do século XIX, tomou como paradigma cientifico a
imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo
da filosofia radical do final do século XVIII. O homo oeconomicus,
dotado de conhecimento perfeito, busca maximizar sua utilidade ou os seus
ganhos, diante das restrições de recursos que lhe são impostas pela natureza ou
pelo estado da técnica. O programa de investigação da corrente dominante em
Economia continua a apoiar a sua construção no homo oeconomicus. O ser
racional e calculador fundamenta a sociedade, definida como a agregação dos
indivíduos atomizados. Se a concepção é atomística, então todas as causas devem
ser extrínsecas. E se os sistemas não dispõem de uma estrutura intrínseca (isto
é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos que os compõem) toda a
ação deve se desenvolver pelo contato. Os indivíduos “atomizados” não são
afetados pela ação dos demais, isto é, as partículas que executam os cânones da
ação utilitarista jamais alteram o seu comportamento na interação com as outras
partículas carregadas de “racionalidade”.
Os fundamentos da teoria econômica dominante definem coerentemente o
mercado como um ambiente comunicativo cuja função é a de promover de modo mais
eficiente possível a circulação da informação relevante. Essa “ontologia do
econômico” tem uma expressão metafísica e outra epistemológica. A metafísica
reivindica o caráter passivo e inerte da matéria e a causação é vista como um
processo linear e unidirecional, externo e inconsistente com a geração do novo.
Na versão epistemológica, reduto preferido do positivismo, os fenômenos são
apresentados como qualidades simples e independentes, apreendidas através da
experiência sensível.
Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância regular de eventos que se expressa, depois de processada pelo sujeito do conhecimento, sob a forma de leis naturais. Não é surpreendente, portanto, que a suposição fundamental das teorias novo-clássicas, com expectativas racionais, afirme que a estrutura do sistema econômico no futuro já está determinada agora. Isto porque a função de probabilidades que governou a economia no passado é a mesma distribuição de probabilidades que a governa no presente e a governará no futuro. Haveria por detrás das ações humanas estruturas naturais capazes de garantir a reprodução, quase sem atritos, das relações sociais. Tudo o que é sólido não se desmancha no ar.
Nesse caso, a causalidade é vista como a concomitância regular de eventos que se expressa, depois de processada pelo sujeito do conhecimento, sob a forma de leis naturais. Não é surpreendente, portanto, que a suposição fundamental das teorias novo-clássicas, com expectativas racionais, afirme que a estrutura do sistema econômico no futuro já está determinada agora. Isto porque a função de probabilidades que governou a economia no passado é a mesma distribuição de probabilidades que a governa no presente e a governará no futuro. Haveria por detrás das ações humanas estruturas naturais capazes de garantir a reprodução, quase sem atritos, das relações sociais. Tudo o que é sólido não se desmancha no ar.
A Lógica e o Tempo
No livro Epistemics and Economics, o economista George Shackle
cuida de encarar a questão da racionalidade, tão cara aos economistas. “O tempo
e a lógica”, comenta Shackle, “são estranhos um ao outro. O primeiro implica a
ignorância, o segundo demanda um sistema de axiomas, um sistema envolvendo tudo
o que é relevante. Mas, infelizmente, o vazio do futuro compromete a
possibilidade da lógica”. George Shackle está simplesmente afirmado que a
economia é um saber que está obrigado a formular suas hipóteses levando em
consideração o tempo histórico, dimensão em que se desenrola a ação humana. Ela
deve se entregar ao estudo do comportamento dos agentes privados em busca da
riqueza, no marco de instituições sociais e políticas produzidas ou construídas
pelas ações e decisões do passado.
A especificidade da ação econômica, numa sociedade em que as decisões
são “descentralizadas”, é definida pelo carater crucial das antecipações do
grupo social que detêm o controle da riqueza e que deve decidir o seu uso a
partir do critério da vantagem privadas. Por um lado, os planos individuais de
utilização da riqueza não podem ser pré-reconciliados; de outra parte, os
resultados não-intencionais do turbilhão de ações egoístas modificam
irremediavelmente as circunstâncias em que as decisões foram concebidas.
Há, portanto, uma dupla incerteza. Shackle, combinando criativamente
Hayek e Keynes, está conferindo às decisões empresariais de investimento um
caráter crucial, na medida em que “criam o futuro”. Esta criação do futuro é,
para ele, um ato que decorre do poder originário e irredutível dos que
controlam a criação de riqueza no capitalismo. É um ato praticado em condições
de incerteza radical que muda, a cada momento, a configuração da economia.
Sir Isaiah Berlin valeu-se de Arquíloco para distinguir dois tipos de
sabedoria e de ciência: “A raposa sabe muitas coisas, o ouriço sabe uma grande
coisa”. Shackle usou o texto de Berlin para definir Keynes e a Teoria Geral,
diante do desencontro de idéias que assolou a chamada teoria econômica durante
os anos 30. Shackle sugeria que, sob vistosa pelugem de raposa, escondia-se
Keynes, o ouriço. A Teoria Geral parece ter muitas ideias, mas apenas uma é
fundamental: a acumulação de riqueza numa economia descentralizada e monetária
é um salto no vazio. Os detentores de riqueza sob a forma monetária são
obrigados a apostar que nenhum fenômeno perturbador vai ocorrer, entre o
momento em que tomam a decisão de empregar o seu dinheiro na contratação de
fatores de produção e a recuperação, no futuro, deste valor monetário acrescido
do lucro. Tais decisões são tomadas individualmente na suposição ilusória de
que o futuro vai continuar reproduzindo o passado.
Keynes não estava negando a possibilidade de funcionamento das economias
descentralizadas. Estava sugerindo que, ao contrário do que procurava demonstrar
a bela arquitetura dos modelos de equilíbrio geral, a reprodução destas
sociedades não estava garantida. Estava sim amparada em convenções precárias,
que poderiam ser desfeitas por impulsos, medos e súbitas mudanças no estado de
expectativas da classe social que detem o monopólio dos meios de produção. Esta
classe de empresários e de senhores da finança têm a faculdade de usar o seu
poder - conferido pela posse dos meios de produção e pelo controle do dinheiro
e do crédito - para promover o próprio enriquecimento, em benefício do conjunto
da sociedade ou simplesmente entregar-se ao“amor do dinheiro” e à proteção
patrimonial, produzindo a pobreza coletiva.
O nascimento das ciências sociais e da economia tem a ver basicamente
com a questão das condições de reprodução de uma sociedade fundada na divisão
social do trabalho, na “separação” entre os indivíduos e na busca do
enriquecimento privado. Keynes e Marx, como Hobbes, trataram desta questão,
acima de todas as demais. O importante, porém, não foi a forma específica como
cada um deles a tratou, mas o fato de que procuraram demostrar o caráter
problemático da reprodução desse sistema social e econômico. Não falaram apenas
de crises de funcionamento, de desajustes passageiros quase auto-regeneráveis, mas
da possibilidade de um colapso nos processos de coordenação que permitem a
compatibilização das decisões descentralizadas .
Um determinado grupo de indivíduos é responsável, nestas sociedades,
pelas decisões cruciais. Não é suficiente que sejam sábios, prudente e
virtuosos. Não haverá sabedoria ou virtude capaz de livrá-los de decisões
socialmente insensatas, simplesmente porque eles não podem abandonar seus
impulsos de acumular riqueza abstrata, nem - recorrendo à lógica e ao cálculo
de probabilidades - adivinhar o futuro. Estão condenados a construir o futuro a
cada momento, com o precário conhecimento do passado.
Keynes era organicista. Aceitava o entendimento conservador -antiliberal
e anti-iluminista - que concebia a sociedade e o indivíduo como produtos da
tradição e da história. Cultivava os valores de uma moral comunitária,
anti-vitoriana e, sobretudo anti-utilitarista. Não é casual, portanto, que ele
tenha começado a sua vida intelectual criticando a racionalidade instrumental,
operativa. Isso não quer dizer que recusasse o programa da modernidade,
empenhado na progressiva liberdade e autonomia do indivíduo. Mas não acreditava
que esta promessa pudesse ser cumprida numa sociedade individualista em que os
possuidores de riqueza orientam o seu comportamento dentro das regras
estabelecidas pelo ganho monetário. O “amor ao dinheiro”, sentimento que move o
indivíduo na economia mercantil-capitalista é um obstáculo ao processo de
emancipação do sujeito, a menos que seus efeitos negativos sejam neutralizados
pela atuação jurídica e política do Estado Racional.
Os incômodos causados por Keynes aos que postulam o paradigma da
“racionalidade” foi e tem sido considerável. A inexistência de bases
“racionais” para a tomada das decisões econômicas cruciais, aproxima
perigosamente a economia e suas pretensões científicas do “inferno irracional”
que os economistas imaginam cercar as decisões políticas. Um observador atento
e participante ativo do debate econômico notou, com razão, que a corrente
dominante considera não-científica qualquer teoria construída a partir da
hipótese que afirma o caráter crucial das decisões capitalistas. Se há decisões
que podem “criar o futuro” o processo econômico está mergulhado no fluxo do
tempo histórico, que, dizem, só passa uma vez pelo mesmo lugar. A economia,
transformada num “saber histórico”, converteria os economistas em cidadãos de
segunda classe na hierarquia da comunidade científica.
Excursus Científico
Os economistas podem revigorar seu orgulho, se aceitarem, como consolo,
ficar na companhia dos meteorologistas. Nos 50 e 60, o físico e matemático Von
Neumann, pai do computador, imaginou a possibilidadede aumentar a precisão das
previsões meteorológicas e de controlar as condições do tempo. O aparecimento
dos satélites e da computação digital impulsionou ainda mais a confiança na
transformação dos modelos de previsão em instrumentos tão precisos quanto a
equação que descreve a queda dos corpos.
Nesse tempo, mais exatamente em 1960, o meteorologista e matemático
Edward Lorenz construiu um sistema de 12 equações, um modelo puramente
determinista. Dado um ponto de partida, as condições meteorológicas se
desenvolveriam da mesma maneira, a cada vez. Alterado ligeiramente o ponto de
partida, o tempo evoluiria de uma maneira diferente. Lorenz descobriu, no
entanto, ao longo de suas simulações, que pequenas alterações nas condições
iniciais podem tornar qualquer previsão sem qualquer valor. Os erros e
incertezas interagem, se multiplicam e formam processos cumulativos. Uma brisa
em Porto Alegre pode provocar uma tempestade em São Paulo.
Uma velha canção do folclore ilustra o que na Teoria do Caos foi
designado como dependência sensível das condições iniciais. ”Por falta de um
prego, perdeu-se a ferradura/ Por falta de uma ferradura, perdeu-se o
cavalo/Por falta do cavalo, perdeu-se o cavaleiro/ Por falta do cavaleiro,
perdeu-se a batalha/ Por falta da batalha, perdeu-se o reino”.
Sabe-se muito bem que, tanto na ciência quanto na vida, uma cadeia de
acontecimentos pode ter um ponto de crise que vai aumentando com pequenas
mudanças. Mas o caos significa que estes pontos estão por toda parte. Em
sistemas como o do tempo, a dependência sensível das condições iniciais é a
consequência inevitável da maneira pela qual as pequenas escalas se combinam
com as grandes.
Se a companhia dos cientistas do clima não satisfaz, os economistas
podem buscar arrimo na física do século XX . A termodinâmica, a física dos
quanta e a teoria da relatividade – vem descobrindo que os caminhos na Natureza
não podem ser previstos com exatidão. As pequenas diferenças, as flutuações
insignificantes podem, se produzidas em circunstâncias apropriadas, invadir
todo o sistema e engendrar um novo regime de funcionamento.
Uma das novidades da ciência contemporânea está em sua capacidade de
revelar que a Natureza é muito mais rica em suas determinações do que supunha a
nossa vã filosofia. Ilya Prigogine e Isabelle Stengers mostram que a
fenomenologia descrita pela termodinâmica, pela física das partículas e pela
teoria da relatividade “não só afirmam a seta do tempo, mas tambem nos conduzem
atualmente a compreender um mundo em evolução, um mundo onde a “emergência do
novo” reveste um significado irreversível... O ideal da razão suficiente
supunha a possibilidade de definir a causa e o efeito, entre os quais uma lei
de evolução estabeleceria uma equivalência reversível...” “Comecemos pelo
próprio big bang. Como iremos ver, trata-se de uma consequência inevitável do
próprio modelo standard atualmente dominante: se seguimos a evolução do
universo em relação ao passado, chegamos a uma singularidade, a um ponto sem
extensão” onde se encontra concentrada a totalidade da matéria e da energia do
universo..., mas curiosamente, nem este modelo, nem a física em geral nos
permitem descrevê-la: as leis físicas não se podem aplicar a um ponto de
densidade infinita de matéria e energia.
”Prigogine e Stengers, nas considerações finais do livro “Entre o
Tempo e a Eternidade”, concluem que as ciências não refletem a identidade
estática de uma razão à qual era necessário submeter-se ou resistir, mas
participam da criação de sentido (itálicos meus, LGMB) ao mesmo nível
que o conjunto das práticas humanas. “Elas não nos podem dizer o que “é ” o
homem, a natureza ou a sociedade de tal maneira que, a partir desse saber,
possamos decidir a nossa história.”
Luiz Gonzaga Belluzzo – Economista
e professor – 18.10.2011
IN “Carta Maior” –
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18727