O
coronel Ustra teve a finalização das funções de seu corpo físico. Contudo, a
máquina de triturar corpos e produzir medo, em meio à democracia, permanece.
Edson Telles
Morreu o coronel Ustra, comandante por quatro anos do maior
centro de torturas do Exército brasileiro durante a ditadura, o Doi-Codi da rua
Tutoia em São Paulo.
No pensamento político inglês do século XVI se
estabeleceu a teoria dos dois corpos do Rei. Além do corpo físico e biológico
comum a qualquer outro ser humano, o rei possuía um corpo místico, que nunca
morria, simbólico e jurídico, indicando as funções de poder do reinado. Se o
corpo natural estava exposto à morte, às perversões e à impunidade, o outro
corpo definia-se pelas estratégias políticas. Por isto vemos em alguns filmes
de época a expressão “O Rei está morto. Viva o Rei!”, demonstrando que as
estruturas políticas permanecem apesar da morte do corpo físico que executava
aquelas atividades próprias às suas engrenagens.
O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
responsável por tortura, assassinatos e desaparecimentos de corpos teve,
recentemente, a finalização das funções de seu corpo físico. Contudo, a máquina
de triturar corpos, produzir medo, implantar o terror, agora em meio à
democracia, permanece. A tortura enquanto estratégia política de controle,
disciplinarização, punição e ameaça mantém suas funções.
(...)
Edson Telles – Professor de filosofia na Universidade Federal de São
Paulo e ativista da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
da Ditadura - 23.10.2015
IN Carta Maior.
Ustra: um corpo sem dignidade
seu
corpo, que será enterrado ou cremado inteiro, com atestado de óbito verdadeiro,
com todos os cuidados médicos e na companhia de seus familiares que dele
poderão se despedir é um corpo sem dignidade. É o corpo de um torturador
covarde. É o corpo de um violador dos direitos humanos. É o corpo de alguém que
matou, torturou, desapareceu e ainda achava que agiu corretamente. Morre
reivindicando seus atos em gozo da liberdade e da impunidade que os verdugos
não merecem. É o corpo impune que atesta a falta de justiça da nossa democracia.
Renan Quinalha
OBITUÁRIO COM HURRAS, de Mario
Benedetti
(...)
viva
morreu o cretino
vamos festejá-lo
e não chorar como de hábito
que chorem os que são como ele
e que engulam suas lágrimas
foi-se embora o monstro magnata
acabou-se para sempre
vamos festejá-lo
sem ficar mornos
sem acreditar que este
é um morto qualquer
vamos festejá-lo
sem ficar frouxos
sem esquecer que este
é um morto de merda
***
Ustra morreu hoje. Com 83 anos,
faleceu tranquilamente em um hospital, com tratamento médico adequado e na
companhia de sua família. Em tudo o oposto do sofrimento atroz que impingiu às
suas vítimas e seus familiares.
Coronel da ditadura, Ustra
comandou o principal centro clandestino de detenção e tortura brasileiro. No
DOI-CODI de São Paulo, onde era conhecido como ‘major Tibiriçá’, pelas suas
mãos sujas de sangue, entre 1970 e 1974, passaram ao menos 50 pessoas que foram
mortas ou estão até hoje desaparecidas, além de mais de 500 pessoas torturadas
barbaramente.
Sua família terá um corpo
presente para velar e consumar o luto da sua perda. Não será um corpo torturado
como o dos milhares de presos políticos, que passaram pelos cárceres ilegais da
ditadura brasileira. Não será um corpo enforcado como o de Vladimir
Herzog. Não será um corpo desfigurado como o de Eduardo Leite (Bacuri). Não será um corpo mutilado,
como o de Luiz Eduardo da Rocha Merlino.
Não será um corpo desaparecido, como o deHirohaki
Torigoe. Não será um corpo baleado, como o de Carlos
Marighella. Não será um corpo sepultado como indigente ou com
nome falso, como no caso de Luiz Eurico Tejera Lisboa.
Não será um corpo jogado em uma vala comum, como o de Flávio Carvalho Molina. Não será um corpo
enterrado e desenterrado diversas vezes para depois ser atirado no alto mar,
como o de Rubens Paiva.
(...)
Para continuar a leitura, acesse http://justificando.com/2015/10/15/ustra-um-corpo-sem-dignidade/
Renan Quinalha –
Advogado – 15.10.2015
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Justificando.com.