Ao se apontar para um vazio de poder, o que se está fazendo é
revelar a deficiência da visão. Afirmar que há falta de Estado em uma prisão é
cometer um enorme equívoco. Se a questão fosse de dosagem, o problema seria
mais de excesso do que de falta de Estado.
Karina
Biondi
É muito comum ouvirmos vozes que atribuem o
fracasso das prisões brasileiras a uma "falta de Estado". Dizem que
onde o Estado não se faz presente, outras formas de regulação da vida social
entram em cena; que os criminosos ocupam o espaço que deveria ser ocupado pelo
Estado; que o vazio de poder provocado pela omissão ou incapacidade do Estado
acaba por ser preenchido por outras formas de poder, não estatais, não legais,
não legítimas, criminosas. Ao se lançar tais afirmações, esquece-se que nunca
se está mais dentro do Estado do que numa prisão. É Estado por todo lado! É ele
que abre e fecha as celas. É ele quem dita o que se come. Ele define o que
entra e o que não entra na prisão. É ele quem seleciona as pessoas que os
presos podem ver e aquelas que só os verão quando ele sair. Ele é quem revista
minuciosamente as visitantes despidas e revira os alimentos por elas levados.
Estado que impede a entrada de jornais e revistas em unidades prisionais
paulistas. Estado que mantém os presos longe dos livros, das escolas e das
urnas.
Há de se duvidar de aparentes vazios. Ainda mais
quando o espaço que aparenta estar vazio é um campo de batalhas. Aliás, qual
espaço não o é? Basta ajustar o foco, regular as lentes, para alcançar a escala
em que se dão os embates. Ao se apontar para um vazio de poder, o que se está
fazendo é revelar a deficiência da visão. Afirmar que há falta de Estado em uma
prisão é cometer um enorme equívoco. Se a questão fosse de dosagem, o problema
seria mais de excesso do que de falta de Estado. É a sua força que impediu, nas
últimas eleições, que presos que não tinham suas condenações em última
instância exercessem o direito constitucional ao voto. Dentre os critérios
definidos para dizer quem votaria (talvez o critério mais importante) é a ocorrência
de rebeliões. Já se rebelou? Então não pode votar! Justamente não podem votar
aqueles que já se mostraram – nas rebeliões e motins – descontentes com o
Estado. Isso, definitivamente, é a imagem da presença do Estado e não de sua
ausência.
Mas há algo que torna isso ainda mais evidente:
a Casa de Detenção do Carandiru. Ela foi inaugurada na década de 1920 como um
presídio-modelo, com capacidade para 1.200 homens. Ao longo de sua história,
chegou a abrigar quase 8.000 presos e ser considerado o maior presídio da
América Latina. Em 1992, um episódio daria início a processos que tiveram
importantes conseqüências no universo prisional paulista. Uma intervenção
policial com o propósito de dar fim à rebelião instaurada no Pavilhão 9
resultou na morte de 111 detentos, no que ficara conhecido como “Massacre do
Carandiru”. Entre o “Massacre” e a desativação do presídio, em 2002, ocorreu um
crescimento vertiginoso da população carcerária, simultâneo à transferência
desta população para prisões construídas longe dos grandes centros. A partir da
desativação da Casa de Detenção, os passageiros do metrô de São Paulo não mais
avistaram detentos nas janelas de suas celas, as unidades prisionais deixaram
de ser cenário do cotidiano da maioria dos paulistanos, delegacias não mais
abrigavam presos que ofereciam perigo aos seus vizinhos. Por mais que o número
de presos aumentasse, eles não estavam mais sob os olhos da população
paulistana.
Eis a ilusão do vazio. Não é porque não vemos,
não é porque as coisas ocorrem longe de nossos olhos, que elas não existem.
Embora o prédio tenha sido demolido, o universo que a Casa de Detenção guardava
não deixou de existir. Pelo contrário, se expandiu e se intensificou. Está mais
vivo do que nunca. Daí que a ausência da prisão nesse espaço não significa
simplesmente ausência de prisão, mas sim a força em jogo para mantê-la longe de
nossos olhos, para escondê-la de nós. O Parque da Juventude, longe de expressar
o fim dos horrores da Casa de Detenção, é a expressão da política carcerária do
Estado.
Se o surgimento da Casa de Detenção do Carandiru
trouxe os presos à luz do positivismo, sua desativação leva novamente para a
escuridão aqueles que cumprem penas. Não se trata de um retorno à masmorra,
embora muitas das práticas punitivas atuais – como o Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD) – possuam traços semelhantes. Aliás, é no RDD que
encontramos a máxima expressão de um novo tipo de poder que recai sobre os
prisioneiros. Trata-se, como esboçou o antropólogo Adalton Marques, de um poder
contentivo, que não tem mais como centro de suas preocupações exibir punições
exemplares, efetuar ortopedia social ou, ainda, controlar essa população.
Busca-se, agora, contê-la. Conter o som estridente de suas vozes. Conter a
imagem aterrorizante de seu sofrimento. Conter o perigo de seu pensamento. Ao
preso, não é mais permitido pensar, falar ou ser visto. Se alguma dessas
expressões escapa das forças contentivas, o caso é tratado como um vazamento do
que deveria estar contido, como um problema de segurança pública.
Um dos perigos de se falar em falta de Estado
está na evidência e na certeza de seu remédio. Se o problema é falta de Estado,
o remédio é mais Estado. Há de se fechar mais, de se revistar mais, de se
prender mais, de se isolar mais. A prisão continua sendo remédio para seu
fracasso, como já diagnosticou Foucault. A prisão é um fracasso? Deve ser
porque não está sendo bem executada. Está deixando brechas. É falta de Estado.
A solução? A reforma da prisão, de modo que não deixe brechas. Mais Estado. Mais
prisão. E assim caminhamos, por mais de 150 anos.
As atuais propostas de reforma são as mesmas que
foram colocadas em meados de 1850: classificação dos presos de acordo com os
delitos, progressão das penas, trabalho, educação, especialização dos funcionários,
transformação dos presos e reinserção deles à sociedade. Nada de novo, a não
ser a sugestão de que um serviço privado possa dar conta de todos os problemas.
Privatização? O exemplo dos EUA, a maior população carcerária do mundo, não nos
basta? Encarcerar se tornou, lá, um negócio lucrativo. Quanto mais presos, mais
as empresas ganham. É isso que se quer? Quer-se uma prisão cujo projeto nasceu
junto com sua proposta de reforma? De nada adianta fazer ajustes ou dar
continuidade à reforma que vem sendo feita há mais de 150 anos.
Mas mesmo assim, mesmo que rearranjada, que
reformulada, que fracassada, a prisão continua aparecendo como a prática
punitiva por excelência. E hoje, mais do que nunca. A questão que coloco é:
podemos romper com esse modelo? É viável adotar outras práticas punitivas? É
possível que as penas alternativas deixem de ser apenas alternativas? Ou, se
considerarmos que a prisão como prática punitiva está inteiramente consonante
com o mundo atual, seríamos capazes de uma ruptura radical, não só do modo de
punir, mas do modo de enxergar, conceber e de pensar as coisas?
Karina Biondi – Doutoranda em
Antropologia Social na UFSCar com apoio da FAPESP – 18.10.2011
IN “Caros Amigos” – http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/artigos-e-debates/2058-as-cadeias-do-parque-da-juventude