Determinar qual o número
de pobres a serem atendidos não é algo técnico, porque para além dos indigentes
existe um enorme contingente de nossa população que não consegue viver sua vida
privada e usufruir do espaço público com dignidade. Definir a linha da pobreza
é uma decisão política.
Silvio Caccia Bava
Qual é a linha da pobreza? Esta é a discussão mais importante neste
momento em que o governo Dilma prepara novos programas sociais. O compromisso
de erradicar a miséria e reduzir a pobreza, para ser cumprido, precisará de
importantes decisões que deverão gerar novas políticas e novos aportes de
recursos públicos.
Determinar qual o número de pobres a serem atendidos não é algo técnico,
porque para além dos indigentes existe um enorme contingente de nossa população
que não consegue viver sua vida privada e usufruir do espaço público com
dignidade. Definir a linha da pobreza é uma decisão política.
Há um consenso entre os especialistas da área de que a pobreza se mede a
partir da capacidade de consumo privado e das condições de acesso a serviços
públicos básicos.
O mais pobre, o miserável, o indigente, é definido como o indivíduo que
não tem renda para adquirir a cesta alimentar que atenda às suas necessidades
nutricionais. Já a linha da pobreza, ela é definida não só pela insatisfação
das necessidades nutricionais, mas pela falta de acesso a condições dignas de
moradia, vestuário, higiene, transporte, educação, lazer etc.
Baseada nas necessidades fisiológicas, a linha da miséria deveria ser
facilmente determinada, mas não é o que se vê. O número de calorias necessárias
varia, em diferentes documentos e estudos técnicos, de 1.750 a 4.532
kcalorias/dia1. Esta variação se deve a metodologias e critérios
distintos, que acabam por determinar o tamanho da clientela dos programas
sociais.
Segundo estimativas de Marcelo Nery, economista da Fundação Getúlio
Vargas, que adota o critério também usado pelo Banco Mundial de estabelecer a
linha da pobreza em US$ 2/dia, o custo do programa de erradicação da miséria
será de R$ 21 bilhões/ano, com tendência a diminuir se a economia continuar
crescendo e gerando novos empregos. Mas é bom lembrar que, com US$ 2/dia para
consumo, ninguém deixou de ser pobre. A questão é se os recursos públicos
disponíveis dão conta de expandir esta clientela e esses valores. Hoje, estes
gastos estão na casa dos 0,4% do PIB.
Não podemos esquecer que toda melhoria dos indicadores sociais
brasileiros nos últimos 25 anos se deveu a decisões que aumentaram os valores e
tornaram obrigatória a destinação de parte do orçamento público para as
políticas sociais. Decisões estas inscritas na Constituição de 1988. De 10% em
1991, o orçamento para políticas sociais saltou para 20% do PIB em 2003.
É a constituição de novos fundos públicos com importantes recursos que
permitirá impulsionar esse projeto de erradicação da miséria e redução da
pobreza. Fundos destinados à ampliação do consumo privado e fundos destinados à
ampliação e melhoria dos equipamentos e serviços públicos.
A iniciativa do fundo social criado para acolher os recursos do pré-sal
tem esse significado, mas ainda é muito pouco para dar conta das demandas por
transformações mais estruturais, de ativação de potencialidades de empreendedorismo
popular, como fez o Grameen Bank, em Bangladesh, com grande sucesso, e podemos
fazer também no Brasil.
No momento atual, com o apoio do Estado, pode florescer um novo tipo de
economia, solidária, focada no desenvolvimento do território, na inclusão
produtiva, na sustentabilidade ambiental, em novas formas de produção e
consumo. Já existem muitas iniciativas aqui no Brasil, novas tecnologias
sociais, novas formas de organização produtiva que podem ganhar escala e mudar
lógicas de mercado.
Na frente de combate à pobreza que representa o aumento e a melhoria dos
serviços públicos, todos os investimentos públicos necessários para ampliar a
cobertura e a qualidade dos serviços e equipamentos serão dinamizadores das
empresas privadas, que buscarão rápidas formas de reconversão produtiva para
atender a esses novos mercados, como ocorreu com a indústria da construção
civil e sua reestruturação para atender ao programa Minha Casa, Minha Vida.
A conjuntura favorece a possibilidade de o Brasil potencializar o
dinamismo do seu mercado interno, tendo como estratégia ampliar a capacidade de
consumo dos pobres e investir na produção de políticas públicas universais que
assegurem boa qualidade de vida para todos.
Somente as áreas de infraestrutura urbana, saneamento e transportes
públicos serão investimentos muito significativos. Processos de dinamização da
indústria nacional, que poderão ser induzidos por linhas de financiamento
público e induzir também a criação de novos paradigmas de produção e consumo.
Mas a própria noção de desenvolvimento está em questão. Durante muitos
anos, a medida do desenvolvimento era o crescimento da economia. Na verdade,
ainda é. Todos saudaram que o Brasil tenha crescido cerca de 8% no ano passado.
E o crescimento traz benefícios, não há dúvida. Mas hoje cresce na opinião
pública e nos meios científicos uma postura de defesa do planeta, da vida,
reconhecendo que a economia não pode matar a galinha dos ovos de ouro, o
próprio ambiente em que vivemos.
Não se trata de confrontar o modelo atual, mas de abrir espaço para
múltiplas formas de organização produtiva e social, que podem prosperar em
paralelo neste momento político. A proposta que circula oficiosamente, de que o
governo irá criar o ministério da micro e pequena empresa, aponta para esta
estratégia.
A criação deste novo ministério sinaliza uma vontade política de
mobilização democrática e produtiva do território, mas o projeto que ele
expressa não pode ser apenas simbólico. Para impulsionar políticas de apoio ao
empreendedorismo, às micro e pequenas empresas, é preciso uma importante
dotação orçamentária.
Para erradicar a miséria e reduzir a pobreza, é preciso promover
transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres. É um jogo de soma
zero: se você põe em um lado, tem de tirar de outro.
A reforma tributária é o único caminho para viabilizar este projeto. Não
necessitamos chegar a extremos, mas vale lembrar que para enfrentar as questões
sociais geradas pela crise de 1929 nos EUA, o presidente Roosevelt, durante um
período, elevou a alíquota superior do imposto de renda para 90% e os
capitalistas aceitaram esta quota de sacrifício.
Sendo o Brasil um dos países de maior desigualdade no mundo, onde a
riqueza, portanto, é das mais concentradas, a adoção de novos impostos sobre a
riqueza – como novos tributos sobre as heranças e a propriedade –, uma maior
progressividade na taxação da renda e dos fluxos do capital, são políticas que
existem há muito tempo em outros países e podem oferecer os recursos
necessários para a reforma tributária.
Não é mais possível que 45% de toda a riqueza e renda nacionais estejam
nas mãos de apenas 5 mil famílias extensas2 e que os impostos sobre
o patrimônio representem apenas 3,4% do total dos impostos arrecadados pela
União, Estados e municípios3.
A lógica do modelo de desenvolvimento concentrador e excludente não é o
resultado da somatória caótica das ações individuais. Ela obedece a um modelo
que se estrutura a partir de regras e instituições públicas, isto é, a partir
das políticas de Estado.
Dito claramente, nos últimos 20 anos o Estado garantiu e viabilizou a
doutrina do livre mercado, abrindo o espaço para a disputa dos grandes com os
pequenos em condições extremamente favoráveis aos grandes. Se são as políticas
de Estado que garantem o modelo concentrador, isto é, a ação do “livre
mercado”, também serão elas que permitirão a criação de um modelo mais
redistributivo.
É importante ressaltar que estas novas políticas passarão pelo Congresso
Nacional e serão objeto de muitas negociações. Sua aprovação depende da
avaliação dos congressistas de que esta reforma, para alguns, é um mal
necessário. Temos que saber encontrar um novo ponto de equilíbrio entre os
interesses representados no Congresso para dar este passo de criação de uma
melhor qualidade de vida para toda a sociedade.
O que está em questão é se nossa sociedade tem hoje a capacidade de
produzir um novo pacto civilizatório, promover um grande diálogo através de
suas representações, buscando estabelecer um novo pacto político e de
convivência social que tenha este sentido redistributivo e de promoção da
coesão social, garantindo paz, uma convivência solidária, a universalidade e a
melhor qualidade dos serviços públicos, entre outras coisas.
As possibilidades de um novo projeto de desenvolvimento com motor
endógeno estão, justamente, em pôr em movimento um programa de investimentos
públicos muito significativos em áreas como a extensão da rede de esgoto, o
manejo e a destinação dos resíduos sólidos, a melhoria da oferta de transporte
público, educação, saúde, moradia, cultura.
Vale notar que houve, durante décadas, por força da doutrina neoliberal,
uma tendência de crescimento destas áreas de serviços públicos, enquanto
mercados para a iniciativa privada, que se mostram ainda hoje como uma das frentes
mais dinâmicas e importantes do capitalismo atual. Nos EUA, o mercado público e
privado da saúde mobiliza 17% do PIB.
Com a retomada do papel do Estado como indutor do desenvolvimento, esta
área da prestação de serviços públicos, de expansão e melhoria dos equipamentos
e serviços passa a exigir novos e crescentes investimentos que ganharão cada
vez mais expressão no conjunto do PIB do país.
Existem outras regiões do mundo, como a província de Quebec, no Canadá,
que promoveram estratégias de desenvolvimento voltadas para a melhoria da
qualidade de vida de todos. Lá, eles a denominaram “A Revolução Tranquila”. E
em 20 anos, dos anos 1960 aos anos 1980, superaram a pobreza e construíram uma
situação de prosperidade que se destaca dentre todas as províncias do país.
Ninguém duvida, depois da experiência do Bolsa Família, do poder
multiplicador que esta injeção de riqueza gera. É um processo dinâmico, e estes
investimentos, num círculo virtuoso, dinamizarão também a economia.
A questão crucial é a fonte dos vultosos recursos que esta estratégia
requer. São vários outros PACs. De onde virão estes recursos?
As fontes de financiamento
Uma proposta para o governo Dilma é recuperar a melhor posição anterior
da renda do trabalho frente à renda do capital nas contas nacionais, fato que
ocorreu no biênio 1959-1960, quando essa participação era de 57%.4
O histórico das contas nacionais demonstra o forte impacto das políticas
neoliberais na redução da renda dos trabalhadores na primeira metade dos anos
1990 e uma relativa recuperação a partir de 1996. De 1990 a 1996, o rendimento
do trabalho caiu 15,2% no total de renda do país; recuperou 5,4% de 1996 a
2001; sofreu nova queda de 3,1% no período entre 2001 a 2004; a partir de 2005
voltou a recuperar 4%. No biênio 2008-2009 essa participação foi de 43,6%.5
Esta transferência da renda do trabalho para a renda do capital tem como
principais instrumentos a política tributária e o pagamento de juros da dívida
pública. De 2000 a 2007, ela correspondeu anualmente a cerca de 7% da média
total da renda nacional e somou R$ 1,267 trilhão. Os seus principais
beneficiários são, como aponta Roberto Mangabeira Unger, as 30 mil famílias que
têm em suas mãos 70% dos títulos da dívida pública brasileira.6 Apenas
para fins comparativos, no mesmo período, os gastos com saúde foram de R$ 310,9
bilhões e com educação foram de R$ 149,9 bilhões.
O fato é que a concentração de renda gera o empobrecimento generalizado,
e o retrato do Brasil em 2009 é expressão deste processo. As classes D e E, que
reúnem 67 milhões de brasileiros, têm uma renda per capitadiária de R$
8,14. E a classe C, com 93 milhões de brasileiros, vive com uma renda per
capitadiária de R$ 14,18. São 160 milhões de brasileiros abaixo da renda
que o Dieese define como a do salário mínimo.7
Estamos falando que o programa de erradicação da miséria e redução da
pobreza deve dispor de recursos que estão situados entre 6% e 8% do PIB. Este
montante, investido anualmente na estratégia de erradicação da miséria e
redução da pobreza, certamente produzirá um grande impacto econômico, social e
político.
A receita proveniente de novos tributos sobre a riqueza irá para fundos
públicos específicos, indutores deste novo modelo de desenvolvimento. Há ainda
a perspectiva de os recursos do pré-sal serem mobilizados complementarmente.
Assegurados estes recursos, o combate à erradicação da miséria e redução
da pobreza se dá em duas frentes: a que diz respeito ao consumo privado, e a
que diz respeito às políticas públicas.
No que diz respeito ao consumo privado, as políticas centrais são de
ampliação da oferta de emprego, aumento do valor do salário, apoio a toda sorte
de iniciativas que multipliquem, fortaleçam e articulem pequenas instituições,
pequenos negócios, associações e cooperativas e gerem novos postos de trabalho.
Na estimativa do Dieese, que calcula o seu valor com base na lei do
salário mínimo, ele deveria ter sido de R$ 2.223 neste mês de janeiro, algo
como US$ 1.323, um valor 4 vezes maior que o atual.
Creio que interessa aumentar a capacidade de consumo dos pobres e também
estimular os circuitos curtos, isto é, que a produção e o consumo, sempre que
possível, se deem no mesmo território, beneficiando sua cidade ou região. Não
se trata apenas de encurtar distâncias, mas de estruturar uma economia de
empresas locais, pequenas e grandes, que estimulem a circulação da riqueza no
local, articulem cadeias produtivas, absorvam a mão de obra local, necessitem
pouco capital e utilizem baixa tecnologia, abrindo espaço para que estas
iniciativas sejam também empreendimentos populares.
Nesta perspectiva de desenvolvimento do território, existe todo um
conjunto de políticas públicas de estímulo e apoio ao empreendedorismo e ao
pequeno negócio. Políticas que podem ser implementadas de maneira articulada,
com foco na redução da desigualdade e no desenvolvimento do território, com
apoio e estímulo do governo federal.8
No que diz respeito às políticas públicas de expansão e qualificação dos
serviços e equipamentos, é preciso dar mais um passo: desenhar um novo pacto
federativo, isto é, uma nova relação entre o governo federal, os governos
estaduais e municipais, descentralizando recursos e poderes de gestão para os
governos municipais, e instituindo novas políticas públicas e mecanismos
efetivos de participação cidadã e controle social. Na Suécia, mais de 70% do
orçamento público fica com os municípios; no Brasil estima-se que este valor
seja algo em torno de 20%.
Como na ponta quem presta o serviço é o governo municipal, a capacitação
técnica dos governos municipais, a integração destes governos em redes de
gestão a descentralização dos recursos públicos são requisitos para esta
estratégia de desenvolvimento. Serão necessários mais professores, mais
médicos, mais enfermeiros, um maior e melhor atendimento para o cidadão. Ao
contrário dos críticos que defendem o Estado mínimo, é preciso reforçar a
capacidade de atendimento das necessidades sociais por parte do Estado.
Mas como também é preciso garantir o planejamento participativo no
território, assim como combater a corrupção e toda a forma de desvios e má
utilização de recursos públicos, a participação cidadã e o controle social são
fundamentais.
O reforço ao orçamento dos governos municipais, associado a fortes
transferências de recursos públicos federais vinculados a programas, permitirá
a construção da infraestrutura urbana, de equipamentos e serviços públicos que
garantam boa qualidade de vida para todos.
1 A POF – Pesquisa de Orçamento Familiar 1987/1988, realizada pelo
IBGE, trabalha com o critério de manutenção do funcionamento do metabolismo
basal e determina, como mínimo, 1.750 calorias/dia. A lei do salário mínimo, de
1938, trabalha com um critério mais generoso de manutenção da qualidade de vida
e determina o valor necessário de calorias/dia entre 4.457 e 4.532, dependendo
da região do país.
2 Marcio Pochmann, “ Brasil, o país dos desiguais”, Le Monde
Diplomatique Brasil; Ano I, nº3; out/2007.
3 Evilásio Salvador, citado por Odilon Guedes em “Mais para
quem tem menos”, Le Monde Diplomatique Brasil, Ano II,nº 13,
jan 2008.
4 Comunicado 47 do Ipea; “Participação dos salários na renda
nacional é baixa”. 05/05/2010
Silvio Caccia Bava – Editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do
Instituto Pólis – 01.02.2011
IN “Le Monde
Diplomatique Brasil” – http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=863