A revolta contra o regime ditatorial expandiu-se a partir de novembro de
2011. Atinge as áreas urbanas mais importantes. No plano social, as camadas
envolvidas na mobilização também aumentaram.
Charles-André
Udry
No dia 1 de fevereiro de 2012, Robert Fisk terminava assim o seu artigo
no jornal The Independent: "Mas há uma pergunta que falta fazer.
Suponha que o regime [do presidente Bashar el-Assad] vai sobreviver. Sobre qual
Síria irá ele exercer o poder? " Por outras palavras: a revolta chegou a
um ponto sem retorno. A revista sob todas as formas, pela polícia e forças
militares, de dezenas de milhares de manifestantes e opositores – todas as
semanas, todos os dias – em várias cidades e aldeias do país faria subir amanhã
o número de mortos e presos torturados, se a luta parasse, e se o regime do clã
Assad se mantivesse. O terrível custo humano desta luta popular está de acordo
com a natureza hedionda e implacável do regime, com o qual não é possível
nenhuma negociação aceitável para os combatentes antiditadura.
A 4 de fevereiro de 2012, Khaled al-Arabi, membro da Organização Árabe
de Direitos Humanos, dizia: "O exército sírio bombardeia com rockets e
mísseis. Está a provocar um banho de sangue de horror nunca visto até agora na
cidade de Homs ... ". A Radio France Internationale (RFI) na mesma data,
afirmava: "Em Homs, só ontem, sexta-feira, 3 de fevereiro, foram mortas cerca
de 300 pessoas, segundo o Conselho Nacional Sírio (CNS). Embora seja difícil
saber exatamente o que acontece neste país fechado à imprensa e submetido a um
controlo rigoroso, as imagens transmitidas pela televisão árabe e os
testemunhos recolhidos evocam o aumento da violência e cegueira. As testemunhas
descrevem um bombardeio implacável, uma cidade transformada em zona de guerra.
Ninguém, nem nenhum bairro foi poupado por "uma verdadeira chuva de
bombas." E é um banho de sangue o que é descrito. O bombardeamento da
cidade começou sexta-feira, 3 fevereiro às 17 horas, hora local, e continuou
até ao amanhecer. Testemunhas afirmam que os primeiros bombardeamentos se
concentraram principalmente na al-Khalidiya, onde muitas casas desmoronaram
sobre os ocupantes e onde se registam a maioria das vítimas. Durante a noite,
os balanços têm continuado a aumentar. De acordo com os opositores do Conselho
Nacional Sírio, foi "um dos mais terríveis massacres desde o início
(março) da revolta na Síria." A oposição acredita que é uma retaliação
pelas novas deserções registadas nas forças armadas. "
Dois pontos emergem das várias fontes possíveis. Em primeiro lugar, a
revolta contra o regime ditatorial expandiu-se a partir de novembro de 2011.
Atinge as áreas urbanas mais importantes. Por isso se formou um movimento a
partir da periferia para o centro, que se foi reforçando ao longo dos últimos
onze meses. No plano social, as camadas envolvidas na mobilização contra a
ditadura – a palavra revolução deve ser inserida nesse sentido – também
aumentaram. Só a existência de uma "frente social", permite
compreender a manutenção e o reforço de uma organização que assegura: os dias
sucessivos de mobilização; os slogans que dão sentido a cada
"sexta-feira" de luta contra o poder do clã Assad; a magnitude dos
funerais, muitas vezes sob a custódia de soldados que desertaram; os cuidados –
embora muitas vezes prestados em condições terríveis – a centenas e centenas de
feridos que não podem ser tratados em hospitais porque as ditas forças de
segurança sequestram para torturar e matar; o estabelecimento de redes de
comunicação e de transporte no contexto da guerra. É nesta base de atividades
sociais que assentam os Comités de Coordenação Locais. A população em revolta
recebe um apoio da diáspora síria que dispõe de recursos materiais. Mas o facto
de não depender de uma força "estrangeira" reforçou a sensação de que
ela deve confiar na sua própria força. O que impulsiona – apesar dos
sacrifícios a que se sujeitam – as múltiplas formas de ajuda mútua e auto-organização.
Depois, os massacres, as torturas de crianças, as violações de mulheres,
o número de famílias ofendidas, feridas, fizeram emergir formas de autodefesa.
As deserções multiplicam-se: as do regime militar que se recusam a ser o braço
assassino de Assad, as de jovens que se recusam a inscrever-se. Estes soldados
da revolta – conhecidos como membros do Exército Sírio Livre – têm um armamento
leve. Neste sentido, não há uma verdadeira militarização da luta
antiditatorial, embora tenha ocorrido já o confronto direto, relativamente
reduzido, que pode vir a agravar-se como resultado do massacre em Homs.
Essas deserções revelam falhas no sistema. Mais exatamente, com a
propagação e a duração da revolta, o regime não consegue evitar o processo de
emancipação nos diversos centros de poder, mais ainda quando tem mais de 40
anos. Episódios de lutas semelhantes na história mostram que – à medida que a
mobilização se prolonga fortalece-se e fica irreversível – o processo decisório
vai-se tornando mais difícil. Refletem a relutância de setores que não estão no
círculo de umas poucas "famílias" que monopolizam o poder e a máquina
de corrupção a ele ligada. Instala-se assim uma dinâmica errática na gestão das
próprias operações políticas e repressivas. E a incerteza sobre o futuro
económico preocupa comerciantes, importadores e exportadores, assim como os
meios ligados ao turismo. As sanções aumentam a dependência do Irão, o que não
é uma solução que agrade a várias frações da classe média.
É certo que a Guarda Republicana e a Quarta Divisão de Maher al-Assad
(irmão de Bashar) são instrumentos de terror nas mãos do regime. Mas há um
sinal, de acordo com vários relatórios, que não engana. Por que razão o poder
iria investir tantos recursos para vigiar, para ameaçar com os seus capangas os
círculos cristãos e alauitas que eram (e ainda são) a sua base
"oficial"? Sequestrar as minorias religiosas faz parte das políticas
do regime. Continua a ameaçar com um grande ajuste de contas – em que os
"sunitas" seriam os "futuros mestres" – caso o regime
caísse. E o clã Assad vai fazer – e já fez – que ocorram conflitos religiosos e
setoriais. Portanto, é importante para as várias forças envolvidas nesta
batalha titânica antiditatorial fazer passar uma mensagem: apesar do sofrimento
e degradação que se vivem, as forças envolvidas no combate pela queda do tirano
recusam todos os atos de vingança indiscriminada. Esta é uma das linhas de
abordagem para alargar a frente social e política, para neutralizar
determinadas áreas e para enfraquecer a base, fragilizada, do regime.
O cinismo da chamada comunidade internacional é ilimitado. Os meios de
comunicação estão constantemente a falar dos projetos de resolução do Conselho
de Segurança da ONU. Estes são bloqueados pela Rússia (na verdade, o poder da
KGB de Putin) e pela China (o "Partido Comunista" da China), que são
chamadas a apoiar as consultas para as economias ocidentais! Muitos são os
líderes que derramam lágrimas de crocodilo sobre o "pobre povo sírio"
e denunciam o "déspota cruel" Bashar al-Assad, depois de o terem
recebido com grande pompa e terem apreciado o seu papel na região, pelo menos
como um mal menor.
O lugar da Síria de Assad no "acordo regional" é outro
problema como o da Líbia de Khadafi. Uma grande parte da encenação diplomática
esconde a dificuldade dos diversos 'atores' – no contexto da atual crise
socioeconómica e dos problemas específicos de um sistema globalizado de
hegemonia política com falhas visíveis – definirem "caminhos de
mudança" que não levem a uma perda de controlo e a processos centrífugos
numa região tão estratégica.
Os Estados Unidos parecem determinados. Parecem. Na prática, a indecisão
de resoluções escritas e reescritas – a serem apresentadas ao Conselho de
Segurança – não os incomoda muito. Ganhar tempo e poder dar conferências de
imprensa "humanitárias" convêm à administração Obama. A queda de
Mubarak e a situação atual no Egito mudaram o puzzle construído pelos Estados
Unidos e Israel, pelo menos desde 1979.
As relações entre o Líbano do Hezbollah e Israel não são de uma
tranquilidade infalível, o que faz da Síria de Assad uma fronteira mais
"segura" do que a de um novo regime sírio do qual é difícil dizer
quem o "irá dirigir" ou quem poderá dirigi-lo. As tensões com o Irão
são mais um fator para manter, por agora, um gangster conhecido – Assad
– ou, melhor, peças importantes, reajustadas da sua máquina de segurança
política. O que requer tempo para a manobra. Porque deve ser feita em conjunto
com vários governos recém promovidos nesta arena regional. O Qatar pode
certamente financiar a Irmandade Muçulmana no Egito e na Tunísia; agora
adicionar à lista os irmãos da Síria é uma tarefa politicamente delicada, mesmo
com apoio externo. O envio, a 4 de fevereiro, do embaixador sírio para a
Tunísia – assim como a ocupação da Embaixada da Síria no Cairo localizada em
“zona segura”, mas não protegida, (!) – mostra que a "revolução
árabe" é mais um intérprete dos cenários que se preparam para o ano de
2012.
Isto especialmente porque a Turquia também quer a sua fatia do bolo e é
capaz de consegui-la. O governo russo quer ter a certeza de manter as suas
posições (instalações portuárias, entre outros), mas não pode jogar uma cartada
de ataque. Por isso, só pode bloquear uma decisão do Conselho de Segurança...
pela qual os ocidentais não estão muito ansiosos – ainda que não seja apenas um
pedaço de papel – além das sanções económicas.
O complexo jogo de ingerências – que fez uma boa parte da história desta
região – faz-se hoje num cenário onde o puzzle do passado está em vias de ser
parcialmente apagado, ao mesmo tempo que não estão ainda definidos os contornos
do novo cenário. Daí a importância do seu apoio político a esta revolta popular
que conta com os seus próprios meios e com a solidariedade, e que se opõe a qualquer
intervenção militar estrangeira. (4 de fevereiro de 2012)
Tradução de Deolinda Peralta para o Esquerda.net
IN “Esquerda.net” – http://esquerda.net/artigo/21867s%C3%ADria-o-ponto-sem-retorno