sexta-feira, 18 de maio de 2012

Aborto: o grande tabu no Brasil



ANOS DE PESQUISAS PERMITEM-ME DIZER: CRIMINALIZAÇÃO PERDURA PORQUE ATINGE MULHERES POBRES: AQUELAS QUE NÃO CONTAM, NEM SÃO VIDAS A PRESERVAR

Heloisa Buarque de Almeida
Joana, que se casara grávida aos 15 anos e tinha dois filhos, me contou, em segredo e sussurrando, sobre a relação violenta e tumultuada que vivia com seu marido, e como havia, certa vez, “tomado um remédio para a menstruação descer”, pois não podia imaginar ter mais um filho naquelas condições. Negava que tinha interrompido uma gravidez, afirmando que era contra o aborto. Laura me disse sem meias palavras que tinha “tirado” quando engravidou pela terceira vez e o marido estava internado numa clínica para deixar as drogas. Ela cuidava sozinha de seus dois filhos pequenos, e não tinha com quem mais contar, não tinha condições de ter outro filho, não naquela hora. Tomou um “remédio” e posteriormente foi internada com uma terrível hemorragia, mas tudo acabou bem.
Noutro contexto, Lúcia e Regina contaram que engravidaram muito jovens, mas ainda não era hora de ter filhos. Uma viveu isso quando ainda estava no colégio e se dizia “contra o aborto”, justificando o seu caso pela precocidade da gravidez (com o primeiro namorado). Regina afirmava que queria terminar a faculdade, ter uma vida profissional, escolher melhor com quem se casar e é totalmente favorável à legalização do aborto. Lúcia e Regina abortaram em uma clínica em São Paulo, não sofreram nenhuma complicação, ainda que uma delas se queixasse pela forma com que foi tratada pelo médico. Todas essas histórias me foram contadas como segredos e todas são mulheres que podemos definir como de classe média, embora as duas últimas tenham mais posses que as primeiras. Os nomes são fictícios. Mas há outras histórias muito mais dramáticas de mulheres que perderam ou a saúde, ou a vida tentando abortar com agulhas de tricô, “curetagens” mal feitas, “remédios” que não deram certo e que resultaram crianças com terríveis malformações.
Apesar da ilegalidade, há um número expressivo de abortos voluntários no Brasil por ano, feitos de modo clandestino – mas nem sempre precário. Ainda assim, o tema permanece um tabu na sociedade brasileira, ainda que o debate esteja se ampliando novamente. A ilegalidade leva inúmeras pessoas (ironicamente, algumas das quais afirmam publicamente serem contra o aborto) a recorrerem a métodos inseguros de interrupção da gravidez, o que gera números elevados de internações no SUS. Segundo dados oficiais, cerca de 244 mil internações no SUS, no ano de 2004, referiam-se a curetagem pós-aborto, apontando para uma estimativa de um milhão de abortos anuais.
Laura foi uma dessas internações, mas há muitas mais que decorrem de métodos abortivos muito violentos e brutais, gerando mortes maternas e sequelas. Tais internações poderiam ser evitadas, tendo se tornado, portanto, uma questão evidente de saúde pública. Há mais abortos e mais complicações nos locais e nas camadas sociais em que o acesso aos métodos de contracepção e o atendimento médico são mais precários, com uma grande diversidade regional e de classe.
A morte materna também é bem mais alta entre mulheres negras. Trata-se, portanto, também de uma questão de justiça social, já que para camadas médias e altas o aborto seguro é acessível, mas as mulheres de camadas populares em todo o país (especialmente, reitero, onde há menos acesso a meios contraceptivos e a atendimento médico) estão sujeitas a um verdadeiro massacre. Para os pesquisadores, a ilegalidade torna o tema difícil de pesquisar e de medir. O aborto voluntário é um crime e um tabu – certamente o veremos ser tratado novamente como tabu quando chegamos perto das eleições.
Apesar de as pessoas se declararem explicita e majoritariamente “contra o aborto” nas pesquisas de opinião pública, muitas das que recorreram a essa prática (mulheres e homens cujas parceiras sexuais o fizeram) justificam suas experiências por uma “circunstância especial” e muitas vezes dramática. “Em princípio” são contrários à prática. Embora vejam sua decisão acoplada a essa circunstância particular, o que os dados de inúmeras pesquisas nos mostram é que essas “circunstâncias” são muito comuns, e mais regularmente oscilam entre dois tipos reiterados. Ainda que contem em segredo tais relatos a uma pesquisadora, amiga, conhecida, muitas vezes, no entanto não conseguem declarar-se sequer a favor da descriminalização.
Especialmente, em público, em voz alta, o tema ainda é tabu. Menciono aqui informações que tive também em etnografias, onde o fato da pesquisadora viver certo tempo com as pessoas que estuda leva a uma maior intimidade – vários relatos de aborto chegaram aos meus ouvidos, contados como “segredos” pessoais, em pesquisas antropológicas que fiz e faço sobre família, gênero, sexualidade.
Ainda que educação e prevenção (o crescente acesso a informação e métodos mais seguros de contracepção) sejam fundamentais (a gravidez “não planejada” é mais frequente entre mulheres de baixa escolaridade), não há nenhum método 100% seguro. Mesmo mulheres muito bem informadas e com acesso a medicamentos engravidam sem o desejar. Os dados de pesquisa recente da UnB/Anis [DINIZ, Débora e MEDEIROS, Marcelo: “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna” Ciência & Saúde Coletiva, 15 (supl. 1), 959-966, 2010], indicam que entre mulheres com até o 4º ano do ensino fundamental cerca de 23% abortaram, mas com ensino médio completo a taxa é de 12% – portanto, menor, mas não nula. Por outro lado, os dados da pesquisa GRAVAD revelam que a própria gravidez adolescente é muito mais comum nas camadas de baixa renda. Porém, quando engravidam sem planejar, as jovens com mais anos de estudo e situação social de classe média ou alta optam mais pelo aborto do que as jovens de baixa renda, para as quais muitas vezes a gravidez adolescente não é vista como problema e nem como impeditivo de outros planos de vida, tais como educação e profissão.
É possível vislumbrar, no entanto, alguns padrões: grande parte desses abortos não são apenas as imaginadas jovenzinhas inexperientes e “levadas” em sua vida sexual que engravidam cedo e “tiram”. Se parte das moças de camadas populares assumem esses filhos precoces, nas camadas médias e altas o aborto voluntário parece ser mais comum, num modelo de decisão de aborto em que a jovem calcula seus planos de educação superior, seus desejos de carreira profissional ou de evitar uma união repentina. Mulheres de camadas médias e altas fazem abortos razoavelmente seguros em clínicas e consultórios, ou recorrem ao uso do Cytotec.
Segundo a pesquisa da UnB/Anis calcula-se que “ao final da vida reprodutiva, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto”, a maior parte deles no período entre 18 e 29 anos.
Essa mesma pesquisa mostra,portanto, uma outra faixa etária de abortos –nem todas as mulheres que abortaram o fizeram no início de sua vida sexual e reprodutiva. Essas e outras pesquisas, qualitativas e quantitativas, apontam para o fato de que há uma proporção de abortos feita noutro(s) momento(s) da vida, ou seja, quando as mulheres já têm filhos para criar.
São mulheres acima dos 25 anos. Em alguns casos, inclusive, provocaram aborto de modo “escondido” de seus parceiros (como Laura e Joana, que citei acima), como uma dura e dolorosa decisão pessoal considerada a única possível. Às vezes, uma decisão desesperada, diante de uniões conjugais violentas e/ou abusivas, ou quando elas já eram as responsáveis pelo sustento de outros filhos e parentes, ou tinham parceiros ausentes e incapazes de ajudá-las por algum motivo, ou mesmo quando se viam abandonadas. Aqui, a justificativa para o aborto é também uma decisão muito difícil, mas necessária e mesmo considerada racional – nesta casa, não “cabe” mais uma criança.
Seja qual for o caso, o que está em jogo é o direito destas mulheres, jovens ou nem tão jovens assim, de decidir se querem ou não interromper a gravidez. É uma decisão difícil e delicada, mesmo para quem tem acesso ao aborto seguro. Mas é urgente levar em conta que elas – as mulheres que engravidam “sem planejar” (como se só competisse a elas evitar a gravidez) – também são uma vida, uma vida completa e vivendo na labuta cotidiana, tentando estudar, trabalhar, criar seus filhos, com vidas mais ou menos precárias, mas com vidas reais, já sendo vividas e muitas delas cuidando de outras vidas (filhos, idosos, doentes).
Sim, e aqui temos a polêmica sobre quando começa o que chamamos de uma vida humana. Não simplesmente uma vida, pois as plantas e animais também são vivos, mas aquilo que vemos como “vida de um ser humano”. Os contrários ao aborto consideram o momento da concepção – para eles, portanto, a pílula do dia seguinte ou o DIU são abortivos. Aqueles que defendem a legalização da prática, no entanto, separam a vida do embrião (12 semanas) da vida daquilo que a medicina chama de “feto”, ou seja, um ser humano em formação após o início da constituição do sistema nervoso central e do cérebro.
Porém, há outra hierarquia em jogo. Por que imaginar que uma vida em estágio inicial é “mais vida” – superior à da mulher que se descobre, de repente, com uma vida em formação dentro de seu corpo, totalmente dependente de seu corpo e de sua vida? Por que alguns países a consideram como cidadã plena e outros não? Por que se defende que uma mulher tenha que levar a gestação até o fim e ter toda a preocupação que é criar um filho se ela não pode, não quer, não tem condições? E lembremos, as mulheres de classe média terão acesso a uma interrupção relativamente segura, mas e as mulheres pobres?
Não contam? Não são “vidas” a se preservar, já que é entre elas que o aborto inseguro gera mais consequências graves de saúde pública, inclusive a morte? E os outros filhos que elas já têm para cuidar, não são também uma questão de “vida”? Me parece haver aqui uma grande preconceito social no Brasil – pobre não conta como “gente”, como vida humana?
Toda opção pelo aborto é uma dura e triste decisão; não é, quase nunca, algo “comum” e feito sem pensar. Muitas vezes é feito no momento do desespero. E os dados apontam que quanto mais se amplia a rede de saúde pública e acesso a educação, há certamente menos abortos. É preciso ampliar ainda mais os bons serviços de saúde e educação públicas, mas é também urgente que se amplie o acesso ao aborto seguro, inclusive para garantir que essas mães possam criar os filhos que já têm vida.


Heloísa Buarque da Almeida - Professora no Departamento de Antropologia da USP e pesquisadora colaboradora do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - 23.04.2012








O direito à vida e o direito penal



Cabe à sociedade brasileira decidir entre proteger dogmas ou vidas. Entre manter os olhos vendados para a realidade, esta sim imoral, das clínicas clandestinas e cracolândias, ou levantar o tapete da hipocrisia, entender seus problemas e desenvolver ações concretas nas áreas de saúde, controle de natalidade, educação, geração de emprego e regulamentação administrativa.

Theo Dias

Um reiterado equívoco presente nos debates sobre drogas e aborto -de fetos anencéfalos ou não- é a idéia de que o dever estatal de proteção da vida e da saúde se concretiza necessariamente pelo direito penal. Qualquer diagnóstico sério da situação brasileira conduz à constatação contrária, de que o direito penal constitui hoje um álibi para justificar a omissão governamental perante tais problemas. Sem considerar os efeitos colaterais da ação do sistema penal, que constitui fator adicional de risco (prisões lotadas, violência urbana, corrupção).
O alto índice de mortalidade relacionada a abortos realizados sem assistência médica por gestantes de baixa renda inexiste no mundo oficial. A ameaça simbólica de sanção, quase nunca concretizada, não previne abortos, mas serve de conforto para almas e consciências hipocritamente preocupadas com o direito à vida.
Para pôr o debate nos trilhos é preciso lembrar que há pouca controvérsia na avaliação de que aborto e drogas constituem fatos sociais problemáticos e merecedores de regulamentação. O que divide dramaticamente as opiniões é se essa regulamentação deve ser penal ou se há outras vias mais adequadas.
Em 1993, o Tribunal Constitucional alemão declarou o dever constitucional do Estado de zelar pelo direito à vida do nascituro, com todos os recursos disponíveis, inclusive o direito penal. Mas, no exercício de ponderação com outros interesses também tutelados pela Constituição, o tribunal previu isenção de pena para abortos realizados em clínicas públicas no primeiro trimestre da gestação. A condição é que a gestante se submeta a consultas médica e psicológica, para discutir o caso e ser informada da disponibilidade de auxílio estatal na hipótese de optar pela continuação da gravidez. O problema adquire assim maior visibilidade e o Estado amplia o poder de influência sobre decisões individuais.
Não é sensato supor que alguém decida praticar aborto ou consumir cocaína pela mera ausência de proibição legal.
Mas é incontestável que os custos sociais dos problemas diminuem conforme eles saem da obscuridade e se tornam foco de reflexão coletiva. Avanços na regulação do consumo e do comércio de remédios, álcool e tabaco, ou seja, das drogas legais, são evidências nesse sentido.
Na Europa, a orientação bélica de combate às drogas perde espaço para abordagens que privilegiam medidas educativas e sanitárias de prevenção de consumo e redução de danos. Várias cidades adotam as "narcossalas", locais públicos, de acesso controlado, onde o consumo se dá de forma higiênica e com supervisão médica.
A conservadora Suíça foi mais além e desenvolveu um programa de prescrição controlada de heroína para pessoas com alta dependência, que não obtiveram êxito com outras opções de tratamento. Para estes, o acesso legal à droga é o primeiro caminho para a quebra do ciclo "vício-crime-prisão".
Os novos rumos não causaram aumento no consumo, mas reduziram as mortes por doenças infecciosas e a criminalidade entre dependentes. Os números contradizem críticos que vêem na medida uma capitulação estatal: em 1991, 36% dos homens e 40% das mulheres infectados pelo HIV eram usuários de drogas injetáveis. Em 1999, a cifra baixou para 17% e 14%, respectivamente. Mortes por overdose caíram de 405, em 1991, para 181 em 1999. Considerando a redução de gastos com saúde, prisão e investigação criminal, o programa tem sido lucrativo para o Estado.
O mito da abstinência total, de uma sociedade sem drogas por força da ameaça penal cede espaço a uma orientação pragmática dirigida à inserção social de usuários viciados. Mas a filosofia de redução de danos não se restringe a casos extremos de dependência; engloba também ações para promover o consumo responsável por aquela grande maioria de usuários que utiliza substâncias psicoativas como forma, mais ou menos habitual, de lazer.
Na mesma linha está a experiência holandesa de regulamentação da prostituição. Detrás das "liberais" vitrines de Amsterdã, que fascinam e escandalizam turistas, esconde-se uma eficiente estratégia de controle social, possível somente em razão da legalização. Profissionais do sexo e clientes desfrutam de ambientes seguros, submetidos a rígidas normas sanitárias e, não menos importante, livres de achaques policiais.
Cabe à sociedade brasileira decidir entre proteger dogmas ou vidas. Entre manter os olhos vendados para a realidade, esta sim imoral, das clínicas clandestinas e cracolândias, ou levantar o tapete da hipocrisia, entender seus problemas e desenvolver ações concretas nas áreas de saúde, controle de natalidade, educação, geração de emprego e regulamentação administrativa. É, sem dúvida, um caminho mais trabalhoso do que a mera retórica policial.




Theo Dias – Advogado criminal e professor da FGV – 20.01.2005