Num mundo em que a maioria sofre de uma tremenda fragilidade
narcisista, ou seja, da sensação de ser invisível e desnecessário, os Jorges só
podem proliferar, pois eles garantem muito mais do que pão: eles garantem um
sentido e uma função no mundo para todos.
Contardo Calligaris
Na
quarta-feira retrasada, em Garanhuns (PE), a polícia prendeu Jorge Beltrão
Negromonte da Silveira, 51, sua mulher, Isabel Cristina Torreão Pires da
Silveira, também 51, e Bruna Cristina Oliveira da Silva, 25, que vivia com o
casal e era a amante de Jorge.
Os três são acusados de ter matado no mínimo três jovens mulheres:
duas nos últimos meses, em Garanhuns, e outra, em 2008, em Olinda. Eles
confessaram ter comido pele, vísceras e carne das vítimas. Isabel declarou ter
usado esses ingredientes na preparação de empadas que ela vendia cidade afora.
Os restos das vítimas recentes foram encontrados no quintal da casa do trio.
Jorge, formado em educação física e com uma segunda faculdade ao
menos começada, deixou um manuscrito de 34 minicapítulos e cinco desenhos
registrado em cartório (como se temesse pelos direitos autorais). Também existe
um filme, que Jorge e Isabel produziram e no qual eles atuaram, anos atrás.
Bruna, ao que parece, escreveu um diário, que acaba de ser encontrado.
Passei a tarde de domingo lendo o manuscrito de Jorge; o memorial
se interrompe pouco depois da primeira vítima, Jéssica (a qual, antes de ser
morta, pariu uma menina, que passou a viver com o trio e de quem Jorge afirma
ser o pai).
No memorial, Jorge também relata o diagnóstico de esquizofrenia
paranoide, as tentativas de medicação e a passagem por diversos serviços de
saúde mental.
Numa entrevista televisiva (http://migre.me/8GY8q), Jorge
conta que as vítimas precisavam ser purificadas, e purificar as almas era a
"missão" do trio. As mulheres, atraídas por propostas de trabalho,
eram levadas, na conversa, a falar "coisas boas", de maneira a
poderem morrer "perdoadas".
Comer a carne era parte do ritual de purificação; talvez os
assassinos incorporassem assim a nova "pureza" de suas vítimas
-afinal, segundo muitos antropólogos, o canibal assimila as qualidades da
pessoa de quem ele se alimenta. De fato, depois do primeiro assassinato, Bruna
passou a ser chamada de Jéssica, nome da primeira vítima.
Seja como for, o crime do trio inspirou um horror descomunal.
Populares de Garanhuns, não podendo linchar os três, lincharam a casa, que foi
saqueada e queimada por duas vezes.
De fato, o autocanibalismo é frequente (as pessoas comem suas
unhas e peles sem problema), mas o canibalismo é muito raro. Aparece na ficção
(Hannibal Lecter) e em alguns casos em que está ligado a fantasias sexuais
extremas (vide o caso de Jeffrey Dahmer e o caso de Armin Meiwes, que, na
Alemanha, em 2003, encontrou Bernd Brandes, o qual queria ser devorado e
participou da comilança de seu próprio corpo até morrer). Desse canibalismo
sexual sobra em nós a vontade de morder o ser amado -além do duplo sentido
lusitano de "comer".
Fora isso, o canibal é sobretudo uma construção cultural, que
serve para apontar a selvageria no primitivo e no outro em geral (sobre isso,
ler o excelente "An Intellectual History of Cannibalism", de Catalin
Avramescu, Princeton).
Agora, o canibalismo, para Jorge, não foi um transporte sensual ou
sexual, mas o jeito louco de se dar uma identidade e um sentido. Os cristãos
sustentam sua força espiritual incorporando simbolicamente o corpo de Cristo na
comunhão; Jorge tentou se tornar alguém no mundo devorando realmente suas
vítimas purificadas. Ele conseguiu: tornou-se a mão vingadora do arcanjo, com a
"clara" missão de purificar o mundo.
Alguém me perguntou: como três pessoas podem compartilhar a mesma
loucura?
A psiquiatria francesa do século 19 nomeou a "Folie à
deux" (loucura a dois), que o DSM (manual de diagnóstico de transtornos
mentais) hoje chama de Transtorno Psicótico Compartilhado. Às vezes, dois ou
mais psicóticos podem influenciar reciprocamente a elaboração de seus temas
delirantes. Mais frequentemente, a loucura é imposta a outros (não psicóticos)
por um personagem dominante (Jorge, no caso), cujo delírio seduz e conquista.
Como assim, seduz?
Num mundo em que a maioria sofre de uma tremenda fragilidade
narcisista, ou seja, da sensação de ser invisível e desnecessário, os Jorges só
podem proliferar, pois eles garantem muito mais do que pão: eles garantem um
sentido e uma função no mundo para todos.
Os canibais do agreste são três loucos. A partir de que número
eles seriam uma seita? E uma religião?
Contardo Calligaris –
psicanalista e escritor – 19.04.2012
IN “Folha de
São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/37931-canibais-no-agreste.shtml
Delírio
e mau caráter
Cada um é moralmente responsável pela qualidade da religião que
escolhe ou do delírio que ele elabora.
Contardo Calligaris
1) CONTINUO
pensando em Jorge Beltrão Negromonte da Silveira, o canibal do agreste. Ele tem
uma visão do mundo que justifica sua vida e seus atos.
Com suas duas companheiras, ele era encarregado de uma missão
divina: devia encontrar mulheres perdidas e purificá-las. Essa purificação
passava pelo assassinato e pela ingestão da carne das escolhidas. A visão e a
missão de Jorge eram delirantes, mas o que é um delírio?
O senso comum e a psicopatologia concordam: delírio é uma
convicção inquestionável, incorrigível e muito pouco plausível. Além disso, um
delírio não é apenas um exercício de fantasia, ele preenche a função (crucial)
de dar sentido à existência do indivíduo que delira.
São poucas as pessoas saudáveis a ponto de conseguir viver sem se
atormentar com a necessidade de resolver, como se diz, o enigma da vida. Ou
seja, são poucas as pessoas para quem a experiência concreta se justifica por
si só, pela alegria de viver. A maioria precisa recorrer a crenças que digam
por que e para o que estamos aqui.
Ora, as crenças que explicam nossa razão de estar no mundo são
todas inverossímeis. Claro, a "missão" canibalesca de Jorge nos
parece mais estranha do que a crença de um cristão, mas isso pouco tem a ver
com a verossimilhança. Como dizer o que é mais provável, que o filho de Deus
tenha sido crucificado para nos redimir ou que Deus nos encoraje a redimir os
pecadores filtrando-os pela nossa digestão? No fundo, a grande diferença é que
as ideias de Jorge são só dele e de suas duas cúmplices, enquanto as ideias de
um cristão são compartilhadas por 2 bilhões de pessoas. Por mais que seja pouco
plausível, uma crença cessa de ser delírio quando ela se socializa.
A definição de delírio (no "Manual Diagnóstico e Estatístico
de Transtornos Mentais", DSM-IV) diz que uma pessoa não pode ser
diagnosticada como delirante se sua crença é "normalmente aceita por
outros membros da cultura ou da subcultura dessa pessoa" -"um artigo
de fé religiosa" não pode ser um delírio.
Síntese paradoxal: uma religião individual é um delírio, e um
delírio coletivo deixa de ser delírio e se torna uma religião.
É um pouco frustrante dispor só de critérios quantitativos para
decidir o que é delirante. Mas talvez a capacidade de compartilhar uma crença
com outros já seja o sinal de uma certa "normalidade".
2) Jorge e suas companheiras são loucos e delirantes. Será que a
loucura e o delírio dispensam qualquer juízo moral? Será que, moralmente, todo
delírio se vale?
Não estou convencido disso. Entendo que a urgência de dar sentido
à vida leve alguém a escolher uma religião ou, se ele não conseguir, a elaborar
um delírio próprio. Mas cada um é responsável pela qualidade da religião que
escolhe ou do delírio que ele elabora.
Comparemos religiões. Posso acreditar que Deus me reconhecerá como
seu filho à condição que eu leve uma vida ilibada e, a cada noite, eu me
açoite, no silêncio do meu quarto. Ou, então, posso acreditar que ele me
reconhecerá como filho à condição que eu desmascare, prenda e execute os
pecadores, mundo afora.
Comparemos delírios. Posso acreditar que Deus quer que eu mude de
sexo. Ou posso acreditar que Deus me encarregou de andar com pinças e bisturi
no bolso, para mudar o sexo dos outros.
Conclusão: uma religião ou um delírio segundo os quais os outros
deveriam pagar para que MEU mundo faça sentido são, no mínimo, provas de mau
caráter.
3) Dúvida diagnóstica. Os canibais do agreste chamaram a atenção
da polícia quando usaram o cartão de crédito de uma das vítimas. Isso era
também parte do "ritual de purificação"?
Consideremos ainda uma frase do memorial de Jorge, descrevendo o
fim da primeira das três vítimas: "Eu, Bel e Jéssica nos alimentamos com a
carne do mal, como se fosse um ritual de purificação, e o resto eu enterro no
nosso quintal, cada parte em um lugar diferente".
Em tese, um delírio diria que aquilo ERA, sem sombra de dúvida, o
ritual de purificação -nada de "como se fosse".
Se o tribunal me consultasse como perito, talvez eu alegasse o
estelionato e essa frase para afirmar que Jorge não é um louco, mas um
perverso, que manipulou duas abobadas e deixou alguns escritos, tudo com a
intenção de urdir crimes sinistros e de ser reconhecido (e assim
"desculpado") como louco.
Contardo Calligaris –
psicanalista e escritor – 26.04.2012
IN “Folha de
São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/39274-delirio-e-mau-carater.shtml