quando tudo se torna "política" nada mais o é. Quando tudo é "política", torna-se impossível diferenciar a atividade de um juiz da atividade de um deputado ou de um ministro e passamos a cobrar deles posturas e padrões de ação que não correspondem à sua posição no concerto dos Poderes.
Marcos Nobre e José Rodrigo Rodriguez
Dias depois da decisão do STF que reconheceu a união estável entre
pessoas do mesmo sexo, militantes de movimentos de defesa dos direitos de
homossexuais realizaram um abraço simbólico no prédio do tribunal em apoio à
medida. Nessa manifestação, a senadora Marinor Brito (PSOL-PA) deu a seguinte
declaração: "O movimento dá uma resposta muito positiva e um
reconhecimento do papel que o Supremo cumpre neste momento e já que o Congresso
Nacional não se manifestou até hoje. Não queremos a judicialização da política.
Queremos que o Congresso assuma o seu papel de protagonista na alteração e na
construção das leis".
Comentando a mesma decisão, o advogado Ives Gandra Martins, localizado
em posição oposta à da senadora do PSOL no espectro político, disse o seguinte:
"Sempre fui contra o ativismo judiciário. O que a Constituição escreveu é
o que tem de prevalecer. É evidente que não estou de acordo com os fundamentos
da decisão. Entendo que o STF não pode se transformar num constituinte".
Em ambos os casos, seja para apoiar ou para criticar a decisão, seja à
esquerda ou à
direita, seja utilizando a ideia de "judicialização da política", seja a de "ativismo judicial", o raciocínio subjacente é o mesmo: um Poder (o Judiciário) está invadindo indevidamente o domínio de outro Poder (o Legislativo). O que mostra, de saída, que essas duas ideias são, na verdade, complementares. Seria como que um mesmo processo, visto ora da perspectiva da política "invadida" pela lógica judicial, ora da perspectiva do próprio "invasor".
direita, seja utilizando a ideia de "judicialização da política", seja a de "ativismo judicial", o raciocínio subjacente é o mesmo: um Poder (o Judiciário) está invadindo indevidamente o domínio de outro Poder (o Legislativo). O que mostra, de saída, que essas duas ideias são, na verdade, complementares. Seria como que um mesmo processo, visto ora da perspectiva da política "invadida" pela lógica judicial, ora da perspectiva do próprio "invasor".
"Quando tudo é 'política', torna-se impossível diferenciar a
atividade de um juiz da atividade de um deputado ou de um ministro"
Mas, apesar de apontarem essencialmente para o mesmo fenômeno, a expressão
"judicialização da política" é a mais comum. Está por toda parte e
tem múltiplas utilidades no debate público, sendo todas elas sempre de censura
e de condenação. Serve para criticar o Poder Legislativo, que não estaria
"fazendo a sua parte". Serve para criticar o Poder Judiciário, que
estaria invadindo a competência do Poder Legislativo sem ter legitimidade para
isso (já que juízes não são "eleitos", diz ainda o raciocínio). Serve
também para denunciar uma situação de despolitização geral da sociedade,
capitaneada pelo "inchaço" do Executivo, o que obrigaria cidadãs e
cidadãos a recorrer ao Judiciário como ato recurso de última instância de
proteção política. Em todos esses diferentes raciocínios, o pressuposto é o de
que as instituições não estariam funcionando "normalmente", não
estariam funcionando "como deveriam".
Esses diferentes usos de "judicialização da política"
pressupõem que a atuação do Judiciário seria um sintoma de que a democracia não
está em seu "funcionamento normal". No fundo, é raciocínio que tem
por base três teses implícitas de como "deve funcionar" uma
democracia.
Primeira: os Poderes são três e devem ter fronteiras claras e rígidas
entre eles, estabelecidas de antemão. Segunda: o Legislativo deve ser o centro
de toda a produção normativa. Terceira: que a única forma de representação
política legítima é a do mandato eletivo, seja no Legislativo, seja no
Executivo. Nessa sequência de teses, fica claro também que o papel do
Judiciário nesse esquema deve ser apenas o de "aplicar a lei", no
sentido de que a "lei" seria sempre clara, cabendo aos tribunais
unicamente o papel de serem porta-vozes do legislador e às juízas e juízes o
papel de "boca da lei".
E, no entanto, a mera enunciação dessas teses implícitas é suficiente
para mostrar seu total descolamento da realidade. Há muito a representação
política deixou de ter um padrão único. Estão aí diferentes formas de
representação que não seguem o padrão da eleição para o Legislativo e são
aceitas como legítimas. Há conselhos de diversos tipos, há agências
reguladoras, conferências nacionais. Isso também mostra que há já algum tempo o
Legislativo deixou de deter de fato o monopólio da produção normativa - se é
que alguma vez o teve realmente.
Em relação ao Judiciário, o pressuposto é ainda mais problemático. A
visão da atividade judicial como uma simples dedução de uma lei que não poderia
ser interpretada de outra maneira se choca com o fato elementar de que toda
nova sentença é, na verdade, criadora de normas. É uma criação de normas
segundo regras, segundo princípios interpretativos disponíveis, com certeza.
Uma criação de normas regulada pelo código específico do direito, que, em
última instância, deriva sua lógica e sua legitimidade da Constituição. Mas não
deixa por isso de representar a criação de novas normas.
O mero reconhecimento dessa realidade de fato mostra que toda pretensão
de fixar de antemão as fronteiras e limites de cada um dos Poderes (mesmo que
eles sejam apenas três) leva a uma posição que não consegue entender o que está
se passando. Mas há ainda uma consequência mais grave: trata-se de uma das
maneiras mais eficazes de impedir a mudança social. Trata-se de um verdadeiro
bloqueio ao livre exercício da imaginação institucional pela sociedade. E, em
última instância, leva a uma posição conservadora, que costuma falar sempre em
nome do direito posto e não do direito que está por vir.
Afinal, quando ouvimos acusações generalizadas ao Poder Judiciário por
"se meter onde não foi chamado" e "avançar sobre uma agenda que
deveria ser do Parlamento", não estaríamos assumindo uma posição
conservadora? Não estaríamos nos colocando na posição daqueles que querem
impedir por decreto a mudança institucional para congelar o desenho de nossas
instituições? E isso vale igualmente para o oposto complementar da
"judicialização da política", o chamado "ativismo
judicial".
Com esses questionamentos, também não queremos dizer que tudo estaria
"funcionando muito bem", à maneira do cientista que apenas
"observa e explica" fenômenos sociais e políticos. É claro que a
atuação do Poder Judiciário na maioria dos casos não vem acompanhada da devida
justificação diante da esfera pública. Quem já teve a oportunidade de ler o
resultado de um julgamento do STF pôde perceber como esse documento é tão
confuso e complexo que muitas vezes torna impossível identificar com clareza as
razões da decisão.
Mas, seja como for, o resultado final costuma ser claro: as cortes são
capazes de decidir os problemas que examinam. No entanto, a argumentação que fundamenta
as decisões costuma ser ou altamente confusa ou meramente telegráfica. É comum
encontrar decisões colegiadas praticamente ser argumentação ou com tantos
fundamentos quanto os juízes que atuam nelas. Afinal, a corte não se reúne para
redigir um voto vencedor com começo, meio e fim. Decide por mera maioria de
votos.
Por isso mesmo, a decisão final costuma ganhar as feições de um
labirinto mitológico do qual ninguém consegue sair com destreza, nem os
juristas de profissão. Os votos dos ministros se sucedem de maneira confusa,
entremeados pela transcrição dos debates e pedidos de vista, sem que haja um
apanhado final em que os argumentos que sustentam o resultado sejam organizados
e hierarquizados. É suficiente baixar do site do STF a decisão de qualquer caso
importante para ver como isso se dá.
No entanto, nada disso justifica submeter o Judiciário ou qualquer um
dos Poderes a amarras predeterminadas, pensadas para bloquear a mudança social.
Podemos lutar para que os Poderes justifiquem suas razões de agir, para que
fundamentem melhor suas decisões. Mas essa luta pela justificação não deve ser
confundida com a defesa de um padrão naturalizado de separação de Poderes, por
exemplo.
Essa confusão entre, de um lado, um padrão predeterminado e abstrato e,
de outro lado, um funcionamento concreto do Judiciário de difícil compreensão
tem sido usada sub-repticiamente para criticar e tentar congelar movimentos de
mudança que vêm desse poder. Utiliza uma barreira normativa imaginária, criada
por teorias fixadas no século XIX, para bloquear arranjos institucionais em
formação, próprios de uma democracia ainda muito recente e cheia de brechas e
de possibilidades de intervenção, como é o caso da democracia brasileira.
As decisões dos organismos de poder, a maneira pela qual as instituições
funcionam, têm consequências claras sobre a distribuição de poder entre os
cidadãos e outros entes sociais. Quando, por exemplo, o Judiciário começou a
exigir que determinados procedimentos médicos fossem praticados pelos planos de
saúde e certas drogas fossem adquiridas pela administração pública, o poder
privado e o poder público foram questionados.
De um lado, o Judiciário afirmou que os planos de saúde não eram livres
para formar seus preços sem levar em conta determinadas doenças e, de outro,
que a administração não poderia criar unilateralmente uma lista de drogas a ser
adquiridas e distribuídas para a sociedade. Nesses dois casos, ao modificar os
termos contratuais e tocar na forma de agir do poder público, o Judiciário
mudou a balança de poder entre os entes sociais e estatais envolvidos e forçou
a criação de outros procedimentos e regras para a sua ação e interação mútua.
Há quem afirme que o Judiciário não deveria se intrometer na liberdade
de contratar e nas atribuições da administração pública, por princípio e por
definição. Há quem afirme até que, ao fazer isso, esse poder põe em risco o
funcionamento da economia e da democracia. Preferimos ver esse suposto
"mau comportamento" dos juízes como sinal de mudança institucional,
como uma oportunidade de redefinir as fronteiras entre os Poderes e exercitar a
imaginação institucional para aperfeiçoar a democracia e tornar a economia
menos selvagem.
Como se vê nesses exemplos, em um Estado Democrático de Direito é na
esfera política - e não diretamente na "tradição" ou no âmbito do
mercado - que se definem, em última instância, as feições das diversas posições
de poder, o desenho das instituições. E a política, como se percebe, está por
toda parte, não apenas no Parlamento. Pois se há uma "política" sendo
praticada nos partidos e no Parlamento, há também uma "política"
ocorrendo no Poder Judiciário, no Poder Executivo, nos conselhos, agências
reguladoras e outros mecanismos deliberativos.
Como diferenciar essas diversas formas de "política" para que
toda a dinâmica institucional não se confunda com o mero jogo de interesses?
Pois quando tudo se torna "política" nada mais o é. Quando tudo é
"política", torna-se impossível diferenciar a atividade de um juiz da
atividade de um deputado ou de um ministro e passamos a cobrar deles posturas e
padrões de ação que não correspondem à sua posição no concerto dos Poderes.
Para evitar esse desfecho, é necessário levar em consideração, no caso
do Judiciário, aquilo que lhe é específico, aquilo que estrutura o que é a
"política" nesse âmbito institucional específico: o "código do
direito". Sem se esquecer de que o próprio significado do que é
considerado mais amplamente como "direito" é mutável no tempo e
abrange muito mais do que a simples institucionalização realizada pelo Poder
Judiciário. E é exatamente isso que não está sendo levado em conta por quem
utiliza expressões como "judicialização da política" ou "ativismo
judicial".
Nesse contexto em que os diversos âmbitos da política são pensados em
suas especificidades, é preciso, por exemplo, revisitar a própria ideia de
separação de Poderes e repensar seus termos. Os Poderes precisam mesmo ser
três? Sua relação entre si precisa ser aquela fixada pela teoria jurídica
dominante no século XIX? Ou será possível retomar em novos sentidos a ideia
original de Montesquieu, que não fala em três poderes, mas na ideia de frios e
contrapesos?
Nessa ordem de razões, o que não se admite é que haja um poder que
decida unilateralmente, ou seja, cujas decisões não passem por uma instância
revisora. Não há espaço para decisões sem justificativa, tomadas por mero
capricho ou pela simples força das circunstâncias. Mas há espaço para mais "poderes",
para outras maneiras de desenhar o Estado de Direito e, portanto, de distribuir
o poder entre os diversos entes sociais.
Há sempre uma parcela de desigualdade, de sofrimento humano que fica
fora do desenho institucional e procura forçar sua entrada por intermédio dos
canais institucionais, pela desobediência civil ou mesmo por meios violentos. E
quanto mais cristalizadas forem as instituições, quanto menos elas forem
capazes de ouvir o sofrimento social, maior a possibilidade de que a violência
tome conta da sociedade com o fim de romper o tecido institucional.
Um pensamento institucional crítica e radicalmente democrático precisa
assumir esses dois pontos de vista ao mesmo tempo. Precisa ver as instituições
por dentro, a partir da sua racionalidade atual, e precisa olhar para elas de
fora para descobrir seus limites e refletir sobre novas possibilidades, novos
desenhos institucionais capazes de dar conta do que hoje está excluído.
Nem sempre o desfecho dessa dinâmica será pacífico, como a história tem
demonstrado. Por exemplo, foi preciso correr muito sangue nas ruas para que os
diversos mecanismos de proteção social fossem criados e novos desenhos
institucionais promovessem a mudança do estado mínimo para um estado social. E
isso envolveu mudanças decisivas na própria concepção do código do direito, das
suas formas institucionais, da definição social do que seja o
"jurídico".
Seja como for, nesse campo, o da imaginação institucional, está sendo
decidido o destino de nossa democracia. O pior que se pode fazer para bloquear
a discussão ampla e aberta desse destino é pretender impor de antemão que
configurações as instituições devem ter. Ideias como "judicialização da
política" ou "ativismo judicial" apenas bloqueiam a compreensão
do momento presente e paralisam as discussões democráticas que temos de
encarar.
José Rodrigo Rodriguez – Pesquisador
do Cebrap e editor da Revista Direito GV; Marcos Nobre – Professor do
Departamento de Filosofia da Unicamp e pesquisador do Cebrap – 25.11.2011
Versão condensada de "A Judicialização da Política: Déficits
Explicativos e Bloqueios Normativistas", texto apresentado na 35ª Anpocs,
Caxambu (MG), no fórum Dilemas da Modernidade Periférica, e que aparecerá na
revista "Novos Estudos Cebrap", número 91
IN “Valor Econômico” – http://www.valor.com.br/cultura/1109720/politica-por-todos-os-lados