O
Brasil continua a fracassar, apesar dos claros avanços nas últimas duas
décadas. Mas ainda é possível erguer um sistema público universal e de
qualidade.
Cynara Menezes
Embora os avanços sejam inegáveis nas últimas duas
décadas, a educação brasileira continua a exibir indicadores pavorosos. Um
levantamento do Unicef divulgado na quarta-feira 30 revela um dos graves
problemas: um quinto dos jovens entre15 e17 anos está fora da escola. Entre
quem tem de 6 a 14 anos, o porcentual é de apenas 3%.
Os maiores problemas estão no setor público, ainda
que o ensino privado muitas vezes não passe de uma miragem: paga-se caro por
uma educação medíocre, abaixo da média da maioria das nações, mesmo aquelas de
renda semelhante à do Brasil. Quase quatro décadas de abandono do ensino
público criaram nos cidadãos uma ojeriza ao sistema.
Uma pesquisa feita neste ano pelo instituto
DataPopular, especializado nos hábitos de consumo das classes C, D e E, revela
que 89% da chamada "nova classe média" considera a educação a melhor
estratégia para a ascensão social. Para 66%, a prioridade é a educação dos filhos.
Para 57% deles, a escola pública tem piorado em termos de qualidade.
Os números oficiais do Ministério da Educação
confirmam a rejeição crescente ao ensino público captada na pesquisa. Nos
últimos três anos, a rede pública perdeu 2,6 milhões de matrículas, enquanto a
privada ganhou l,2 milhão. De 2007 a 2010, os estabelecimentos particulares de
ensino cresceram 18% e o sistema público encolheu 6% no mesmo período, do
ensino fundamental ao ensino médio.
A sensação, para a maior parte das famílias, é de que
seria impossível recuperar as escolas financiadas pelo Estado e instituir, a
exemplo da maioria esmagadora dos outros países, um sistema público abrangente,
predominante e de qualidade como já existiu antes da ditadura. Na São Paulo dos
anos 1940, por exemplo, o ensino privado era a alternativa de quem, por
qualquer motivo, não conseguia uma vaga em uma escola estatal, então
consideradas de melhor qualidade. Preferem pagar o mais alto imposto cobrado no
País (colocar um filho em um estabelecimento considerado de bom nível em uma
cidade como São Paulo não sai por menos de 1,5 mil reais por mês).
Em troca, acham justa a perpetuação de outra
desigualdade: geralmente, são os alunos da rede privada que abocanham as
melhores vagas nas universidades gratuitas. Os que passam pelo ensino público,
se e quando chegam lá, veem-se obrigados a frequentar faculdades pagas e em boa
medida de qualidade duvidosa, para dizer o mínimo. Embora divirjam sobre
modelos e fontes de financiamento, especialistas consultados por CartaCapital
acreditam ser ainda possível mudar completamente a estrutura do ensino básico e
consideram que o preconceito em relação à escola pública não reflete a realidade
completa dos fatos.
Se é verdade que os alunos da rede privada obtêm um
aprendizado 66,7% em média superior aos estudantes das públicas, também é certo
ser imprudente generalizar. Existem muitas escolas públicas com desempenho
melhor que as particulares, a depender do bairro, município ou estado da
Federação. Não à toa, o preconceito em relação à rede pública é mais visível
nas regiões metropolitanas do que nas cidades menores, onde é comum o filho do
prefeito conviver com o filho do faxineiro na mesma escola.
Até por isso, onde há maior rejeição ao ensino
público é justamente onde ele tem as piores notas no Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica (Ideb), que desde 2007 distribui notas de 0 a10 às escolas
do País: nas periferias das grandes cidades e em rincões do Norte e Nordeste.
Ainda assim, o dado é relativo. Enquanto Alagoas e Maranhão são considerados um
desastre, com péssimos indicadores, há dois estados nordestinos hoje em
condições de exportar modelos para outros.
O Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic),
do Ceará, considerado a melhor experiência do Brasil em termos de
alfabetização, começou a ser replicado na Bahia, que no último Ideb teve 396 de
seus 417 municípios com média abaixo da nacional. E o programa de educação
integral para jovens de Pernambuco foi copiado por São Paulo. Em agosto, o
secretário de Educação paulista, Herman Voorwald, acompanhado de uma comitiva
de empresários, foi conhecer pessoalmente a experiência pernambucana.
Também é necessário distinguir o ensino
fundamental, da la à 8a série, do ensino médio, como se vê pelos dados do Unicef.
A discrepância é maior entre as avaliações da escola pública em relação à
particular no ensino médio: os alunos da rede privada que fizer amo Exame
Nacional de Ensino Médio (Enem) no ano passado tiveram médias 19% maiores que
aqueles da rede pública nas provas objetivas, mas a distância diminuiu de 2009
para 2010. Ainda assim, nas públicas há uma elite com desempenho próximo ao das
particulares.
Para se ter uma ideia de como as experiências no
setor público variam, São Paulo fraqueja no ensino médio, mas foi o estado de
melhor desempenho no último Ideb, divulgado em julho passado: 95% das 645
cidades paulistas tiveram notas maiores que 4,6, a média do País, com destaque
para o município de Cajuru, que registrou o maior índice, com nota 8,6,
comparável aos países desenvolvidos. A melhor escola pública brasileira de 1 a
4 série fica em Cajuru, com 23 mil habitantes e localizada a 305 quilômetros da
capital: a Aparecida Elias Draibe. Já Minas Gerais, que teve o maior número de
cidades acima da média, possui também a pior escola pública: a Jovem
Protagonista, de Belo Horizonte.
"O que as pessoas não levam em consideração é
que às vezes uma escola particular precária é pior do que uma escola pública.
Nas grandes cidades, acabou virando um símbolo de status colocar os filhos na
escola privada", pondera Maria Alice Setubal, presidente do Centro de
Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), entidade
da sociedade civil dedicada à educação no País desde 1987.
Maria Alice, responsável pelo projeto educacional
de Marina Silva em 2010, recusa-se a definir a educação pública brasileira como
um desastre: "Há escolas boas e ruins, o sistema público não é ruim como
um todo, ou seja, a média ainda é baixa, mas existem escolas boas. O que não
temos incorporado é a ideia de que todos têm o direito a uma educação de
qualidade, pobres e ricos. Com isso, a desigualdade ainda é enorme".
Segundo ela, falta vontade política de priorizar a educação.
"Infelizmente, em nosso país, a percepção de que educação é algo
importante é recente."
Para o senador Cristovam Buarque (PDT-DF), que
construiu sua carreira política associada ao tema, há uma razão para a piora do
ensino estatal."A escola pública era boa enquanto era para os poucos
filhos da elite. Quando a classe rural migrou para as grandes cidades, a elite
abandonou a escola pública e o governo então passou a transferir mais recursos
às universidades, também ocupadas pela elite."Buarque não crê, porém, que
o sucateamento do sistema gerido pelo Estado tenha sido uma opção deliberada da
ditadura em favor dos empresários do setor: "Acho que a questão é mais
social do que política, os militares não eram tão organizados assim".
O senador acaba de lançar um novo livro no qual
defende a federalização total do sistema público até 2030. Segundo a proposta,
o repasse do comando à União daria-se ao ritmo de250 cidades por ano, a partir
dos municípios com os melhores resultados educacionais ao longo da história.
"Das 300 melhores escolas do País de 1 a 4 série, a maioria é federal.
Depois é que vêm as particulares. O salário é melhor, as instituições são
melhores", argumenta o senador, para quem o preconceito com a escola
pública existe pelo simples fato de ela "ainda ser ruim" de um modo
geral.
O pedetista conta a história da empregada de seu
irmão, no Recife, que pediu aumento antes da hora. "Ele perguntou: "Para
quê?" E ela respondeu: "Porque a diretora disse que meu filho é muito
bom para a escola pública". No dia que a escola pública for de fato boa,
esse preconceito pode até durar mais algum tempo, mas logo acaba.
De fato, das oito primeiras escolas no ranking do
Ideb, apenas uma não é federal: a estadual Oscar Batista, no município de
Cambuci(RJ), terceira colocada. O Colégio Pedro II, tradicional na capital
fluminense, ocupou a segunda posição no ranking. Entre os dez primeiros, seis
são escolas militares: de Santa Maria (RS), Salvador (BA), Campo Grande (MS), Fortaleza
(CE) e Curitiba (PR) e a do Corpo de Bombeiros do Ceará (também em Fortaleza),
nesta ordem. A escola de aplicação Professor Chaves, situada em Nazaré da Mata,
no interior de Pernambuco, ficou em 10°1ugar.
Buarque, porém, parece falar sozinho a favor da
federalização do ensino. Os demais especialistas preferem apostar em uma maior
interação entre as esferas federal, estadual e municipal. O sucesso do programa
cearense de alfabetização, por exemplo, só foi conseguido graças à interlocução
entre o estado e as prefeituras dos municípios, dos mais diferentes partidos.
Um aspecto considerado fundamental para que a
escola pública melhore é que os bons programas não sejam abandonados quando
mudam os governos.
Outra unanimidade é a necessidade de melhora no salário
dos professores e sua formação continuada, para ajustá-los, às questões
contemporâneas. Apesar de o piso nacional dos professores ter sido fixado em
1.527 reais, 16 estados não o cumprem, sob a alegação de falta de recursos. Ao
mesmo tempo, não conseguem provar ao ministério a falta de dinheiro para
pagá-los, que lhes permitiria receber uma complementação federal. O ideal seria
que o professor recebesse um salário que lhe proporcionasse trabalhar em uma só
escola as 40 horas semanais, comum terço do horário dedicado à preparação das
aulas e à própria formação.
O treinamento continuado dos professores, outro
item importante, é prejudicado pela não liberação do docente para os cursos
oferecidos. Na escola pública ideal não existe o professor apelidado de
"fichinha" por andar com uma ficha a tiracolo com todas as
informações que julgava imprescindíveis à sua aula e no primeiro dia já chegava
com o planejamento para o ano inteiro. "Hoje, um bom professor é aquele
que, antes de planejar o ano letivo, primeiro conhece seus alunos", afirma
Pilar Lacerda, secretária de Educação Básica do Ministério da Educação.
"Muitos dos erros que ainda ocorrem são resultado desse planejamento às
escuras."
Um estudo divulgado em setembro pela Unesco sobre o
perfil do docente no País mostra que houve uma série de avanços nos últimos
anos nas políticas públicas para a formação continuada dos professores. Algumas
das críticas dizem respeito à falta de clareza na interação entre as esferas
federal, estadual e municipal. Elogia-se, porém, a movimentação, em estados e
municípios, para a criação de um plano de carreira para o professor, de extrema
importância para valorizar socialmente a profissão e torná-la mais atrativa.
Uma pesquisa recente da revista Forbes aponta o professor como uma das dez
profissões mais felizes nos Estados Unidos. Não se pode dizer o mesmo dos
docentes brasileiros.
O ministro da Educação, Fernando Haddad, promete
ampliar os gastos em educação pública para entre 7% e 10% do PIB no ano que
vem. A educação integral também estaria garantida em 60 mil escolas até 2014. É
uma meta ambiciosa, talvez até demais. Os investimentos atuais são de cerca de
5% do PIB. Ao mesmo tempo, o Brasil tem um gasto com o ensino privado na média
dos números mundiais. Em2009, o porcentual foi de 1,3%. O índice foi semelhante
ao da Rússia, maior do que o da Alemanha (0,7%) e metade daquele dos EUA
(2,6%). Alcançar a meta de Haddad já seria difícil se o País mantivesse o
crescimento acima de 5% dos últimos anos, imagine com a perspectiva de expansão reduzida para a casa dos 3% por conta do
aprofundamento da crise financeira internacional.
A maioria das histórias edificantes do sistema
público tem como personagem central um diretor empenhado. No Distrito Federal,
destaca-se, por exemplo, o Centro de Ensino Fundamental de Arapoanga, um dos
bairros mais violentos da capital do País, porta de entrada para o tráfico de
crack.
Nos últimos dez anos, o diretor Jordenes Ferreira
da Silva conseguiu transformar a escola em oásis em um entorno de pobreza e
desolação. O segredo? Em primeiro lugar, aproximar a comunidade da escola -
outra condição fundamental para que a educação pública dê certo. Os moradores
em mutirão reformaram o prédio, causando nos estudantes a sensação de que era
preciso cuidar do lugar que seus pais consertaram. Para elevar a autoestima dos
alunos, Silva mandou instalar espelhos nos corredores. "O adolescente vive
em busca de uma imagem. Ao se ver no espelho, não critica o outro",
teoriza o educador.
Convencido do próprio slogan que "o bairro
pode ser cinza, mas a escola tem de brilhar", o diretor conseguiu de uma empresa,
com apoio da Embaixada do Japão, uma lousa inteligente, e do MEC, 30
computadores para criar sua sala especial. A rede Wi-Fi é aberta a toda a
comunidade, inclusive durante os fins de semana. Os professores ganham acima do
piso: 3,9 mil reais. Silva criou ainda um evento literário, o Café com Letras.
Uma vez por mês, a biblioteca móvel vem à escola emprestar livros. "Quem
poderia imaginar que numa comunidade onde as pessoas andam armadas se
emprestariam livros?", pergunta o diretor, orgulhoso.
Nas paredes, pôsteres com os melhores estudantes de
cada turma são exibidos a cada semestre. Nas salas, silêncio e atenção. Nos
corredores, quatro ex-alunos passam apenas para cumprimentar os professores. Um
pretende ser engenheiro, o outro, advogado. "Ainda teremos um governador
que estudou nesta escola. E ele será justo e bom, porque conhecerá as
dificuldades", profetiza Silva.
A boa escola pública emociona e planta na cabeça a
dúvida: se a classe média voltasse a usar o sistema público, não poderia ajudar
a melhorá-lo?"Sim", defende Pilar Lacerda. "Está provado que
quem tem maior escolaridade interfere mais na escola do filho do que quem não
tem. Além disso, pode parecer utópico, mas a escola pública deveria ser um espaço
de convivência entre os diferentes. Infelizmente, no Brasil, virou espaço
reservado aos pobres.
A escola ideal
Para que a educação pública no Brasil melhore é
preciso:
˳
Aumentar os gastos com educação para entre 7% e 10%
do Produto Interno Bruto (PIB). Atualmente, é menor que 5%. O governo federal
prometeu, a ampliação para 2012;
˳
Mudar currículo, metodologia e equipamentos.
Especialistas falam da importância da informática em sala de aula e aplaudem a
utilização dos tablets, mas dizem que não adiantam nada se o currículo e o
método de ensino defasados não forem atualizados;
˳
Criar um plano de carreira e dar formação
continuada para o professor. Os salários devem ser competitivos para atrair bons
profissionais, valorizá-los e motivá-los. Além disso, é preciso investir na
atualização constante do professor;
˳
Os diretores, peça fundamental na mudança, também
seriam concursados e não nomeados por indicação política. Devem estar mais
envolvidos pedagogicamente com a escola do que administrativamente, com a
burocracia, como é hoje;
˳
Mesmo quem não é a favor da federalização do ensino
defende que haja uma articulação maior entre as esferas federal estadual e
municipal para que os programas não sejam descontinuados quando muda o
governante
˳
Horário
integral As escolas do País (tanto públicas quanto privadas) passariam a
funcionar durante pelo menos seis horas por dia, das 8 às14h ou das 9 às15h;
˳
Escola com portas abertas à comunidade, com
atividades que possibilitem o funcionamento inclusive nos finais de semana,
aproximando a família da escola.
Cynara
Meneses –
07.12.2011
IN “Carta Capital”, n.
675 – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/de-zero-a-dez/