a ideia
de que o que o país necessita é uma “faxina”, tal como temos lido todos os dias
na grande imprensa nas últimas semanas, é uma ideia completamente equivocada
por dois motivos: porque é evidente que sem corrigir alguns processos na
organização do estado e do sistema político, a corrupção voltará a estar
presente nestes mesmos lugares; segundo porque a seletividade desta “faxina”
pautada por alguns órgãos da grande imprensa irá desestruturar o governo e sua
base de sustentação sem gerar um governo ou um estado menos corrupto.
Leonardo Avritzer
O grupo de intelectuais que se reúne em
torno do CRIP (Centro de Referência de Interesse Público, da UFMG) tem uma
preocupação de longo prazo com a corrupção e seu impacto no sistema político
brasileiro. Em nossas pesquisas, identificamos que a população brasileira
considera a corrupção um grave problema, dos mais graves enfrentados pelo país.
Mas a ideia de que a corrupção no
Brasil é causada pela presença de um ou de outro mau político ou administrador
no governo e que a sua retirada ou a retirada de todos eles deixaria o país
livre da corrupção, constitui uma ideia completamente equivocada.
Sendo assim, a ideia de que o que o
país necessita é uma “faxina”, tal como temos lido todos os dias na grande
imprensa nas últimas semanas, é uma ideia completamente equivocada por dois
motivos: porque é evidente que sem corrigir alguns processos na organização do
estado e do sistema político, a corrupção voltará a estar presente nestes
mesmos lugares; segundo porque a seletividade desta “faxina” pautada por alguns
órgãos da grande imprensa irá desestruturar o governo e sua base de sustentação
sem gerar um governo ou um estado menos corrupto.
A corrupção no Brasil tem duas causas
fundamentais e sem identificá-las não é possível combatê-la. A primeira destas
causas é o sistema de financiamento de campanhas políticas. O Brasil tem um
sistema de campanha absolutamente inadequado, no qual os recursos públicos
alocados aos partidos são absolutamente insuficientes.
O problema do financiamento do sistema
político acaba sendo resolvido nas negociações para a sustentação do governo no
Congresso. As coalizões de governo são fundamentais para assegurar a maioria do
Executivo no Congresso, já que, desde a eleição de 1989, o partido do
presidente não alcança mais do que 20% dos votos para o congresso.
Mas o problema é que estas coalizões se
tornaram um sistema de troca no qual a indicação de políticos da base
governista para cargos no executivo federal torna-se uma forma de arrecadação
de recursos de campanha para os partidos. Ao mesmo tempo, as emendas de
bancada, especialmente as coletivas, são frequentemente pensadas como forma de
arrecadar recursos para os partidos.
Essa é uma das origens importantes dos
escândalos recentes, que, diferentemente do que lemos na grande imprensa,
afetam todos os partidos que fazem parte das coalizões de governo desde 1994.
Portanto, sem rever profundamente o
sistema de financiamento dos partidos não é possível extinguir este processo.
Ao mesmo tempo, é urgente rever o esquema de emendas parlamentares que se
tornou um tremendo desperdício de recursos públicos.
Seria mais interessante que este
processo de emendas tivesse origem na sociedade civil e estivesse a cargo, por
exemplo, da comissão de legislação participativa do Congresso, para que
tivéssemos a certeza que estas emendas atendem, de fato, aos interesses da
sociedade mais ampla.
Há um segundo elemento que é importante
ter em mente que é o sistema de controle da corrupção no Brasil e sua relação
com o poder Judiciário. O Brasil passou a ter depois de 1988 um sistema relativamente
bem estruturado de controle da corrupção.
Essa estruturação iniciou-se com a nova
lei orgânica dos tribunais de conta de 1992, que deu a estes prerrogativas
novas, tais como a paralisação de obras. O Brasil também criou a CGU em 2001 e,
a partir de 2003 o governo federal iniciou as chamadas “operações da Polícia
Federal” contra a corrupção.
Todas estas iniciativas são
extremamente importantes e têm sido exitosas, em particular as operações da
polícia federal. Sabe-se mais sobre a corrupção hoje e mais casos de corrupção
foram descobertos recentemente do que em governos anteriores.
No entanto, este fenômeno pode dar
margem a interpretações erradas, como a idéia frequentemente veiculada pela
grande imprensa de que jamais houve tanta corrupção no Brasil.
Ainda que seja difícil dizer com algum
embasamento científico se tal fato é verdadeiro, já que a corrupção é um ato
secreto feito por indivíduos que não estão dispostos a divulgar os seus feitos,
o mais provável é que estamos descobrindo casos de corrupção existentes há
muito tempo e não novos casos. Pesquisas do CRIP em 2008 e 2009 mostram que
essa é a visão da opinião pública brasileira a respeito da corrupção.
Então o problema talvez esteja menos
ligado àquilo que se tem sido chamado de “faxina”, mas a outro problema que é a
impunidade, especialmente quando os casos mais importantes chegam ao poder
Judiciário.
Se partirmos do pressuposto de que está
em curso uma atuação dos órgãos de controle da corrupção no sentido da coibição
do fenômeno através de um conjunto de atividades dos TCU’s, da CGU e da Polícia
Federal, a pergunta correta que se deve fazer é por que o risco de ser corrupto
no Brasil não aumentou.
A resposta se assenta na lentidão do
poder Judiciário. Como sabemos, o Judiciário brasileiro possui quatro
instâncias e opera com a presunção da inocência, interpretada de forma
positivista e ultrapassada. Assim, a certeza da culpabilidade só pode ser feita
no flagrante, o que ocorre muito raramente em crimes de corrupção ou do
colarinho branco.
Eles não são visíveis da mesma forma
que um roubo no qual há o flagrante. Assim, a nossa presunção da inocência
baseada no positivismo do século XIX acaba associada a uma concepção absurda de
transitado em julgado que garante a tranquilidade dos corruptos e dos
corruptores (categoria, aliás, inexistente no vocabulário da grande imprensa no
país).
O problema do nosso transitado em
julgado é que as condenações de primeira e segunda instâncias – e
frequentemente as de terceira instância – são absolutamente inócuas. Somente
com uma mudança deste rito será possível aumentar o custo da corrupção e,
assim, diminuir a sua incidência.
Chegamos, portanto, ao nó do nosso
problema. Não só a questão da corrupção não está ligada àquilo que está sendo
denominada de “faxina”, como essa faxina será absolutamente inócua a não ser na
sua capacidade de desorganizar o governo.
É necessário começar a discutir
seriamente no Brasil duas questões: reforma política – em especial, reforma no
financiamento de campanha – e reforma no sistema de punição dos delitos – em
particular dos delitos políticos.
O futuro do combate à corrupção no
Brasil se assenta no destino de duas reformas ainda não plenamente implantadas
no Brasil, a ficha limpa e a emenda Peluzzo. Ambas as iniciativas têm capacidade
de fazer o que a “faxina” não tem: aumentar o custo de ser corrupto no Brasil
criando riscos reais para as carreiras políticas e para o patrimônio dos
políticos.
Se nos contentarmos com a “faxina”
seletiva proposta pela grande imprensa, corremos o risco de simplesmente
mudarmos as pessoas de lugar sem nenhuma consequência real.
Aliás, uma pergunta que cabe a fazer à
grande imprensa e que não quer se calar: por que é que nenhum dos órgãos da
grande imprensa brasileira publica matérias sobre os casos que derrubaram os
quatro ministros do governo Dilma no dia seguinte após a sua demissão? Será por
que os objetivos ocultos da “faxina” já foram alcançados?
Leonardo
Avritzer – Professor de Ciência Política da
UFMG – 03.09.2011
IN “Carta Capital” – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/combate-a-corrupcao-e-programa-de-governo/