o bom governo é aquele
capaz de reconhecer a existência de um potencial autoritário nas sociedades de
democracia liberal e a necessidade de não se deixar aprisionar por tal
potencial.
Vladimir Safatle
Na década de 50, o filósofo alemão Theodor Adorno
(1903-1969) uniu-se a um grupo de psicólogos sociais norte-americanos para
desenvolver um estudo pioneiro sobre o potencial autoritário inerente a
sociedades de democracia liberal, como os Estados Unidos.
O resultado foi, entre outras coisas, um conjunto
de testes que permitiam produzir uma escala (conhecida como Escala F, de
"fascismo") que visava medir as tendências autoritárias da
personalidade individual.
Por mais que certas questões de método possam
atualmente ser revistas, o projeto do qual Adorno fazia parte tinha o mérito de
mostrar como vários traços do indivíduo liberal tinham profundo potencial autoritário.
O que explicava porque tais sociedades entravam
periodicamente em ondas de histeria coletiva xenófoba, securitária e em
perseguições contra minorias.
O que Adorno percebeu na sociedade norte-americana
vale também para o Brasil. Na semana passada, esta Folha divulgou pesquisa
mostrando como a grande maioria dos entrevistados apoia ações truculentas como
a internação forçada para dependentes de drogas e intervenções policiais
espetaculares como as que vimos na cracolândia.
Se houvesse pesquisa sobre o acolhimento de
imigrantes haitianos e sobre a posição da população em relação à ditadura
militar, certamente veríamos alguns resultados vergonhosos.
Tais pesquisas demonstram como a idealização da
força é uma fantasia fundamental que parece guiar populações marcadas por uma
cultura contínua do medo.
É preferível acreditar que há uma força capaz de
"colocar tudo em ordem", mesmo que por meio da violência cega, do que
admitir que a vida social não comporta paraísos de condomínio fechado.
Sobre qual atitude tomar diante de tais dados,
talvez valha a pena lembrar de uma posição do antigo presidente francês
François Mitterrand (1916-1996).
Quando foi eleito pela primeira vez, em 1981,
Mitterrand prometera abolir a pena de morte na França. Todas as pesquisas de
opinião demonstravam, no entanto, que a grande maioria dos franceses era
contrária à abolição.
Mitterrand ignorou as pesquisas. Como se dissesse
que, muitas vezes, o governo deve levar a sociedade a ir lá aonde ela não quer
ir, lá aonde ela ainda não é capaz de ir. Hoje, a pena de morte é rejeitada
pela maioria absoluta da população francesa.
Tal exemplo demonstra como o bom governo é aquele
capaz de reconhecer a existência de um potencial autoritário nas sociedades de
democracia liberal e a necessidade de não se deixar aprisionar por tal
potencial.
Vladimir Safatle – professor livre-docente
do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo) – 31.01.2011
In “Folha de São Paulo” –
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/23105-escala-f.shtml