Conflitos como os vividos neste mês de
janeiro em São Paulo demandam daqueles que se sentem ofendidos por tamanha
violência uma atitude corajosa de ruptura com o modelo conciliatório da transição
“lenta, gradual e segura”, sob o qual construímos o nosso Estado de Direito.
Edson Teles
Democracia com violência de Estado e especulação imobiliária: duas
questões cruciais que nos chamam a atenção nos recentes episódios de ação da
Polícia Militar do Estado de São Paulo, para “restabelecer a ordem e a
legalidade”, os quais se configuraram como violentos e sem eficácia do ponto de
vista do interesse público.
A chamada Cracolândia (nome aparentemente cunhado pela grande mídia que,
de certo modo significante, remete a um lugar de diversões, a estilo do nome do
parque Disneylândia) e o bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, têm algo
em comum além do fato de terem sido o palco das recentes violações de direitos
sofridas por parte de uma parcela da população que parece não ter “direito a
ter direitos” (nas palavras críticas de Hannah Arendt). Ambos os locais possuem
em comum o fato de serem áreas de forte especulação imobiliária.
Os usuários de crack do centro de São Paulo encontram-se na região que o
governo definiu para a execução do projeto “Nova Luz”, em referência ao
discurso que assinala esta área como decadente, repleta de marginais,
abandonada, suja… Neste projeto higienista, a Prefeitura pretende vender ao
sistema privado o direito de desapropriar e estabelecer as prioridades da nova
ocupação do bairro de acordo com interesses particulares, em detrimento do bem
público. A área classificada pelos governos como abandonada sedia um dos
maiores centros brasileiros de comércio de equipamentos eletrônicos e de
informática. Quem já foi à Santa Efigênia, ou mesmo à rua 25 de março,
constata, ao contrário, a decadência da presença do poder público, com ausência
de serviços essenciais, inclusive os de saúde pública, como a limpeza das ruas.
A ação repressiva da PM somente espalhou os chamados craqueiros para outros
locais da região central, passando longe de ser solução, mas abrindo a
possibilidade de formalizar o “progresso” imobiliário e comercial da região.
No bairro Pinheirinho, o conhecido especulador financeiro Naji Nahas
detém, por meio de uma empresa falida, de sua propriedade, a área de moradia de
quase 1.600 famílias. Pertencente a um casal de alemães mortos em 1969, não se
sabe ao certo como o terreno, de posse do Estado por falta de herdeiros legais,
acabou como propriedade de Nahas.
Sabemos que o Estado, via decisão de uma juíza de São José dos Campos,
confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, determinou o despejo deste
enorme contingente de pessoas, sem lhes garantir o direito à moradia,
autorizando jogá-las na incerteza da ausência de um teto, inclusive com o uso
de cassetetes, balas de borracha e gás de pimenta. Autorizado pelas leis, o
governo optou pela violência em lugar de discutir uma alternativa de moradia ou
mesmo de permanência no local.
Em várias ocasiões, na história da humanidade, pudemos ver a cena de
pessoas amontoadas, crianças, idosos, doentes, sem seus pertences. Normalmente,
fruto de algum tsunami ou catástrofe natural, ou mesmo de uma guerra. Em
Pinheirinho, vimos a mesma cena, contudo, provocada pelo Judiciário e pelo
governo do Estado, com o apoio do aparato repressivo da Polícia Militar. É
chocante.
De fato, o poder público, aliado ao interesse privado da especulação, coloca-se
favorável a uma ideia da expansão imobiliária como sinal de desenvolvimento. É
histórico, em qualquer área urbana, que tais “reformas” levam a uma valorização
financeira do metro quadrado, lançando a população pobre para além dos limites
das atuais condições já precárias de moradia. Para que o projeto especulativo
se concretize nestas áreas é necessário limpá-las da presença dos pobres. Leiam
o comentário postado na página da Secretaria de Segurança Pública do Estado de
São Paulo:
“Após a limpeza, já era possível
circular tanto a pé como de carro pelas alamedas Cleveland, Dino Bueno e Glete
e a rua Helvétia, que ficam no entorno da praça Júlio Prestes. Locais que eram
usados como esconderijos e moradia dos usuários de drogas foram desocupados e
estabelecimentos comerciais funcionavam normalmente.” (03.01.2012)
Experimentamos, nestes casos, uma clara demonstração de um projeto
autoritário para as relações entre o poder público (podemos ler, inclusive, o
Estado de Direito) e a população. Apesar de a Constituição brasileira tratar o
direito à moradia como absoluto e o direito à propriedade como relativo à sua
função social, o Estado, por meio de seus diversos poderes, em caso de
conflito, tem atuado em favor do “desenvolvimento”. Para tanto, tem feito uso
sistemático, especialmente em São Paulo, de uma Polícia Militar cada vez mais
violenta (nunca esta instituição matou tanto na última década quanto no ano de
2011!) e repressiva (espanca estudantes da USP dentro do campus). Sua
organização e disciplina, subordinadas ao comando do Exército, são regidas
pelas mesmas regras impostas pela Constituição outorgada pela ditadura em 1969.
Com a mudança do regime de exceção para a democracia, não houve a revisão ou
reforma das instituições ligadas à segurança nacional e pública, mantendo
nestes setores uma ideologia agressiva com a população não proprietária e
garantindo a impunidade para as violências praticadas por seus agentes.
Tal situação evidencia o modelo que os setores patrimonialistas e da
elite brasileira, com a anuência da classe média e o silêncio amedrontado de
uma parcela da esquerda que perdeu seus compromissos de classe, escolheram para
uma democracia limitada, muitas vezes de fachada com um verniz reluzente,
outras vezes com características autoritárias.
Vivemos um momento grave de nossa vida social em que precisamos refletir
sobre qual democracia queremos e, mais do que isto, agir com radicalidade para
denunciar um modo autoritário e manipulador de se fazer política. Conflitos
como os vividos neste mês de janeiro em São Paulo demandam daqueles que se
sentem ofendidos por tamanha violência uma atitude corajosa de ruptura com o
modelo conciliatório da transição “lenta, gradual e segura”, sob o qual
construímos o nosso Estado de Direito.
Edson Teles – Professor de Filosofia Política na Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp) – 02.02.2012
Publicado originalmente no Blog da Boitempo
IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5441