Movimento
internacional recupera irreverência que se perdeu a partir dos anos 1990,
quando o feminismo se institucionalizou.
Carla Rodrigues
Não
importa quem você é, onde trabalha, como se identifica ou o que veste. Ninguém
tem o direito de tocar seu corpo sem seu consentimento. É o que reivindica a
Marcha das Vadias, movimento internacional iniciado no Canadá depois de um
policial de Toronto pedir às mulheres que não se vestissem como vadias para não
serem estupradas. Desde o primeiro protesto, em abril de 2011, o que se vê em
Nova York, Boston, Berlim, São Paulo e Rio é a revitalização da pauta
feminista, historicamente mobilizada contra a violência. É verdade que as
vadias estão nas ruas para pedir mais do mesmo: fim da discriminação contra as
mulheres, da violência sexual e da violência doméstica, do tratamento das
vítimas como culpadas pela percepção de que os crimes são "naturais"
diante do comportamento - ou da altura das saias - daquelas que supostamente
provocam os estupradores.
As
imagens das marchas mostram jovens com corpos pintados e cartazes que
transformaram em slogans divertidos uma agenda política que tem avançado lentamente.
Se a pauta é antiga, onde estaria a revitalização?
A
Marcha das Vadias recupera uma irreverência que se perdeu a partir dos anos
1990, quando o feminismo se institucionalizou, e tem o mérito de atrair a
juventude, que achava que feminista era sua avó. Entra em cena o direito à
diversidade sexual, tema com o qual a juventude pós-gênero tem grande
afinidade. Entre as "vadias", há homens, travestis, transexuais,
transgênero, lésbicas e gays.
O
sutiã perdeu seu destaque e agora trata-se de ir à rua sem ele, pintando no
corpo o direito ao próprio corpo, outro item da agenda feminista que recuperou
seu fôlego depois de amaldiçoado na luta pela descriminalização do aborto. Nas
marchas do Rio e de São Paulo, cartazes protestavam contra a MP 557, que pretende
criar um cadastro nacional de informações sobre grávidas para impor mecanismos
de vigilância sobre as mulheres em nome do direito do nascituro.
Tomar
para si o uso do termo "vadias" tem sido uma irreverente estratégia
de deboche do preconceito. Parte da exigência de que os direitos das mulheres
não podem ser violentados em nenhuma hipótese, seja lá quem ou como for a
vítima. Pauta urgente para o Brasil, onde domésticas, moradores de rua,
prostitutas e homossexuais, estes dois últimos fortemente representados na
marcha do Rio, são agredidos duplamente. A primeira vez, pelo agressor. A
segunda, pelas justificativas para a agressão. Passa a ser tarefa da mulher não
ser estuprada, enquanto deveria ser responsabilidade do homem não cometer o
crime. Segue a mesma lógica da contracepção: cabe à mulher evitar a gravidez,
porque se supõe ao homem o privilégio do sexo sem limite, traço inexorável de
masculinidade. Daí a relevância da presença de homens solidários à causa, com
palavras de ordem como "Homem que é homem não bate".
Há em
torno das manifestações controvérsia sobre a apropriação do termo vadias para
se autodesignar, subvertendo o uso de "vadias" como agressivo e
preconceituoso. Paródia que pretende debochar dos discursos morais que o
sustentam, a marcha é rejeitada por quem não considera possível ressignificar o
termo. Vadia é também vagabunda, prostituta, mulher "fácil",
significações que levaram o policial canadense a afirmar que mulher não pode se
vestir como prostituta se não quiser ser estuprada (nem isso se sustenta,
porque prostitutas não pretendem atrair estupradores, mas clientes). Nas
manifestações houve lugar para a indignação com a teoria de que prostituta pode
ser estuprada, em vigor em recentes decisões judiciais.
A
discussão traz de volta o debate em torno da liberdade sexual. De um lado, há
quem condene a pornografia como mais uma forma de submissão e de exploração
comercial do corpo das mulheres. Do outro, quem considera esse discurso tão
normativo sobre a sexualidade quanto qualquer outro. Por esse argumento, com o
qual concordo, não haveria diferença entre condenar a pornografia ou a
homossexualidade, porque a condenação se fundamentaria num ideal normativo.
Em que
pesem todos os argumentos, uma coisa é preciso reconhecer: é inteligente a estratégia
de rir de si mesma e dos preconceitos ridículos dos quais as mulheres ainda são
alvo. Humor e irreverência são as melhores formas de protesto e podem servir,
também, para recuperar a palavra "feminista" do estigma que a
condenou a ser quase um xingamento. A Marcha das Vadias indica não ser preciso
se levar tão a sério para ser feminista - um dos muitos sintomas da
institucionalização - e que vale se divertir um pouco com a tal da condição
feminina. Ao mesmo tempo que debocha do preconceito contra as
"vadias", ajuda a desconstruir também o peso do termo
"feminista", com a força de um grande, alto e ensurdecedor basta à
violência.
Carla Rodrigues – Jornalista, professora da UFF, da PUC-Rio – 03.06.2012
IN “O Estado de São Paulo”, “Aliás” – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-deboche-das-vadias,881691,0.htm