Quem se vai lembrar dos direitos daqueles
que não têm se beneficiado do progresso realizado em matéria de acesso à água e
ao saneamento e que ainda morrem porque a água que bebem não é segura?
Catarina de Albuquerque
Os olhos do mundo estão postos no Rio de Janeiro. E
as nossas esperanças também. Vinte anos após a histórica Conferência sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, a comunidade internacional volta a reunir-se.
Políticos, negociadores e diplomatas irão encontrar-se para rever e (esperemos)
fortalecer os seus compromissos políticos em favor do desenvolvimento
sustentável tendo em conta os novos desafios do século XXI.
As decisões que forem tomadas irão afetar cada uma
das 7 bilhões de pessoas na Terra: para o bem ou para o mal. Mas
será que no
Rio de Janeiro os negociadores vão se lembrar do pai cigano que
encontrei na Eslovênia, cuja filha abandonou a escola por cheirar mal,
simplesmente porque a família não tinha água em casa? Vão se lembrar da menina
que conheci no Senegal, que me disse que não podia ir à escola quando estava
menstruada porque lá não havia banheiro para meninas? Vão se lembrar da senhora
que conheci no Uruguai que me explicou ser obrigada a esvaziar o conteúdo da
sua fossa séptica com as próprias mãos por não ter dinheiro para contratar
profissionais que o fazem de forma mecanizada?
Eu vou. E também me lembro constantemente que todos
os dias 1,1 bilhão de pessoas são obrigadas a defecar a céu aberto, sem
privacidade nem dignidade, e que, a cada 20 segundos, uma criança morre devido
a doenças relacionadas com a má qualidade da água e falta de saneamento.
Há 20 anos, a famosa Agenda 21 contemplava como um
dos objetivos para a eliminação da pobreza proporcionar água e saneamento aos
mais pobres. Desde então houve importantes desenvolvimentos nessa matéria e são
vários os documentos políticos internacionais referindo-se à água e ao
saneamento como um objetivo central para o desenvolvimento humano. Os Objetivos
de Desenvolvimento do Milênio (ODM) têm a ambição de reduzir à metade o número
de pessoas sem acesso à agua e saneamento.
No entanto, apesar do progresso realizado nessa
matéria, sabemos que o mesmo não tem beneficiado aqueles que devem ser a nossa
prioridade: os mais pobres e os excluídos. Nas visitas que realizo mundo afora,
enquanto Relatora Especial da Organização das Nações Unidas (ONU), tenho
infelizmente constatado que apesar de terem acesso à água ou saneamento, várias
pessoas não podem utilizar esses serviços porque são muito caros, estão longe
demais ou não são seguros. Lembro-me claramente de um grupo de mulheres
africanas dizendo-me “As contas da água nos estão matando”! Ou de imigrantes
mexicanas na Califórnia explicando-me que a água de seus poços contaminados as
estava literalmente destruindo aos poucos. Estas situações devem mudar
urgentemente!
Em 2010, a Assembleia Geral da ONU reconheceu a
água e o saneamento como direito humano. Isso quer dizer que existe a vontade
política de ir mais longe. Existe a consciência de que temos o dever de
garantir água e saneamento para todos, dar prioridade aos mais pobres e
marginalizados e ainda que esses serviços sejam seguros, tenham um preço
acessível e se encontrem próximos (ou dentro) das casas das pessoas a quem
queremos atender.
A Conferência do Rio+20 tem a chance histórica de
se tornar relevante para todas as pessoas, em especial para aquelas pessoas a
quem me referi e que não têm se beneficiado do progresso realizado nas últimas
décadas em matéria de acesso à água e ao saneamento e que ainda morrem todos os
dias simplesmente porque a água que bebem não é segura.
Como é que Rio+20 pode conseguir alcançar esse
objetivo? Tendo presentes no Brasil e no Rio de Janeiro as vozes das pessoas
que são sistematicamente esquecidas ou mesmo ignoradas nas conferências
internacionais. Colocando os direitos humanos e seus princípios na coluna
vertebral da declaração final da Conferência. Lembrando as histórias que aqui
referi. Não renegociando nem pondo em causa aquilo que foi decidido há dois
anos pela ONU: a água e o saneamento são direitos humanos, e todos – incluindo
os mais desfavorecidos – devem se beneficiar deles. Ponto final.
Por que isso me parece muito importante? Porque os
direitos humanos são o passaporte e garantia para que as políticas sejam
desenhadas e implementadas de forma a darem prioridade aos mais excluídos. No
caso da água e saneamento, os direitos humanos exigem ainda que o acesso aos
mesmos seja para todos, que os serviços sejam de qualidade e seguros, e que
tenham um preço acessível. Não se esqueçam desses direitos e dessas pessoas. Eu
não os esqueço.
Catarina de Albuquerque – Primeira relatora especial da ONU para a água
potável e saneamento, tendo sido nomeada pelo Conselho de Direitos Humanos em
2008. Foi agraciada com a Ordem de Mérito pelo presidente da República de
Portugal e recebeu a medalha de ouro de Direitos Humanos da Assembleia da
República portuguesa – 12.06.2012