Passados
16 anos da chacina de 19 sem-terra no Pará, dois responsáveis cumprirão pena. E
os outros?
Eric Nepomuceno
Na
tarde de segunda-feira, 7 de maio, o coronel Mário Colares Pantoja, da Polícia
Militar do Pará, foi preso. Tinha passado pela mesma experiência em novembro de
2004. Naquela ocasião, ficou detido numa sala, não cela, de um quartel da
Polícia Militar em Belém. No dia 23 de setembro de 2005, foi solto: uma decisão
do ministro Cezar Peluso, do STF, assegurou a ele o direito de recorrer em
liberdade. Flanou por aí até agora. Condenado a 228 anos, esgotou seus
recursos, depois de 16 anos do seu crime.
Também foi recolhido num
quartel da mesma PM o major aposentado José Maria Pereira de Oliveira,
condenado a pena mais branda: 158 anos. Outra experiência, em todo caso, uniu
para sempre a história dos dois. Aconteceu num fim de tarde de abril de 1996.
Convém lembrar:
Por
volta das seis da tarde da quarta-feira, 17 de abril de 1996, o coronel Pantoja
recostou-se sobre o para-lama de uma camionete D-20 bordô estacionada à beira
de uma estrada do interior do Pará, na altura do quilômetro 96 da rodovia
PA-150, um lugar conhecido como Curva do S, a uns 9 quilômetros de Eldorado do
Carajás e a quase 800 da capital, Belém.
Tinha
49 anos de vida, 28 de Polícia Militar, e estava exausto. Respirava pela boca,
fazendo um ruído de fole. Suas mãos se sacudiam em movimentos desarticulados.
Os dedos estavam brancos, de tanta pressão sobre o cabo de um revólver Taurus
calibre 38, de seis tiros.
Havia
cheiro de pólvora e de pânico no ar, e, espalhados pelos arredores, 19
cadáveres. Pouco depois, dentro do ônibus que os levaria de volta a Marabá, o
coronel virou-se para seus comandados e falou, em voz alta e clara: “Ninguém
sabe nada, ninguém viu nada. Todos calados”.
Durante
as investigações, o coronel desmentiria ter dito isso alguma vez. Ele se
esqueceu de que havia testemunhas.
Os
mortos foram amontoados na caçamba da camionete D-20. Eram 18 cadáveres e um
ferido, Inácio Pereira, de 56 anos. Derrubado por policiais no meio do tumulto
de tiros, gritos, bombas e pancadas, foi pisoteado, chutado um sem-fim de
vezes, e ficou no chão feito morto. Passado o tempo, ouviu como alguém dava a
ordem de botar os corpos na camionete. Um desses corpos era o de seu filho
Raimundo, mas Inácio não sabia. Agarrado pelos braços, foi arrastado e jogado
na pilha de cadáveres na caçamba da camionete. O corpo morto do filho estava
embaixo dele. Em cima, foi atirado outro homem. Inácio continuou num silêncio
de pavor, e ouviu que o homem gemia e dizia coisas sem sentido. A cabeça do
homem pendeu sobre o pescoço de Inácio, que não conseguia entender o que ele sussurrava
entre gemidos. Então alguém aproximou-se com uma lanterna e, à queima-roupa,
disparou duas vezes contra aquele homem. Inácio sentiu como o corpo se sacudia
em espasmos velozes e finalmente serenava. Sentia o sangue do homem gotejar em
seu corpo. Ainda não sabia que, debaixo dele, e se empapando do mesmo sangue,
estava o corpo de seu filho.
Esse
relato, parte do livro O Massacre - Eldorado do Carajás: uma História de
Impunidade, que escrevi e a editora Planeta publicou em 2007, é a reconstrução
- baseada nos autos do processo, em cerca de 54 horas de gravações, em quase 20
mil páginas que integram os dois inquéritos policiais - do que aconteceu
naqueles confins do interior do Pará na tarde de 17 de abril de 1996. Foi uma
matança calculada. Dos 19 mortos, 13 eram dirigentes ou coordenadores do MST.
Dez levaram mais de um tiro. No total, foram 37 ferimentos de bala. Pouco menos
de metade dos mortos também foi atingida por golpes de arma branca, e mostravam
ferimentos extensos e mutilações.
As
fotografias dos corpos, feitas por legistas que trabalharam sem luz no
necrotério em diversos momentos e num salão cheio de policiais militares, ainda
assim não deixam dúvidas quanto à violência.
José
Ribamar Alves de Souza, de 22 anos, por exemplo. O tiro que esfacelou seu
crânio foi disparado de cima para baixo e de trás para diante. O que acertou
seu abdômen foi da direita para a esquerda, também de cima para baixo. Ou seja,
ele estava no chão quando foi atingido.
Antônio
Alves da Cruz levou dois tiros, mas morreu de outra causa: uma lâmina provocou
uma forte hemorragia interna, “com explosão do coração e do pulmão esquerdo”,
no macabro linguajar do laudo pericial.
Oziel
Alves Pereira, 17 anos, levou quatro tiros. Um atravessou sua cabeça, de trás
para diante. Uma testemunha conta que o major Oliveira disparou dois tiros com
um revólver calibre 38, quando Oziel já estava caído, depois de ter levado um
tiro na nuca.
João
Carneiro da Silva não morreu de tiro, morreu com o crânio esmagado. Sua mão
esquerda quase foi decepada. Um soldado atacou-o com um pedaço de pau
pontiagudo, atingindo-o diversas vezes na cabeça. Finalmente, cravou a ponta do
pau na sua testa.
Esse
foi o resultado da ação de 155 homens de dois grupos da Polícia Militar do
Pará. Parte veio de Marabá: 85 homens, comandados pelo coronel. Outra parte
veio de Parauapebas, comandada pelo major. Pantoja foi o chefe máximo da
operação. Partiu dele a ordem dada a Oliveira: só começar a disparar depois de
ouvir a tropa de Marabá atirando.
Agora
ambos estão presos. Mas e os outros responsáveis? Há pelo menos cinco perguntas
que, ao permanecer sem resposta, comprovam a impunidade que impera neste país
de absurdos:
1)
Quem deu a ordem de desimpedir a estrada, ou seja, dissolver a manifestação de
umas 2.500 pessoas - mulheres, jovens, velhos, homens, crianças - mobilizadas
pelo MST foi o governador Almir Gabriel. Seu secretário de Segurança chamava-se
Paulo Sette Câmara. O comandante-geral da PM do Pará era o coronel Fabiano
Lopes. Por que nem o governador, nem o secretário, nem o comandante da PM foram
ouvidos no processo?
2)
A PM do Pará, e não se trata de uma exceção no cenário brasileiro, tem fama de
mal paga, mal preparada, corrupta e de atuar, em suas inúmeras horas de folga,
como uma espécie de guarda pretoriana dos grandes usurpadores de terra. Será
que ninguém sabia disso? Será que não continua sendo assim?
3)
Em abril de 2000, o primeiro julgamento foi anulado pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Pará, graças às irregularidades cometidas sob os olhos do juiz Ronaldo
do Valle. Na hora de marcar o segundo julgamento, 17 dos então 18 juízes das
varas criminais da comarca de Belém declararam que não aceitariam presidi-lo. A
exceção foi a juíza Eva do Amaral Coelho, que explicou: “Não tenho medo do
MST”. Acabou afastada, depois de recursos apresentados pela acusação - os
advogados dos sem-terra -, que argumentava falta de isenção. Foi finalmente
nomeado o juiz Roberto Moura, que conseguiu algo inédito: numa única sessão,
julgou 128 acusados. A acusação teve exatos 90 segundos para apresentar provas
contra cada um deles. Dois, e apenas dois acusados, foram condenados: o coronel
Pantoja e o major Oliveira. Será isso normal?
4)
Por que ninguém buscou a razão de os ônibus da empresa Transbrasiliana, que
transportaram a tropa de Parauapebas e a de Marabá até Eldorado, onde aconteceu
a matança, terem sido pagos, em dinheiro, pela Vale do Rio Doce, na época uma
empresa estatal? O gerente da Transbrasiliana que recebeu a ordem - e o
dinheiro - se chama Gumercindo de Castro. O funcionário da Vale que contratou
os serviços se chama James. Como explicar que uma empresa estatal contrate uma
empresa particular para transportar tropas da PM que iriam desfazer uma
manifestação pública?
5)
Por que será que, até hoje, todos os fios soltos dessa meada, conhecidos e
visíveis, não foram puxados? O coronel Pantoja obedeceu a ordens do governador
Almir Gabriel. Pois bem: e o governador, os governadores, obedeceu, obedecem a
quem? Afinal, quem dá as cartas e as ordens neste país de impunidades
permanentes?
Eric Nepomuceno – Escritor, autor, entre outros livros, de “O
Massacre” (Planeta, 2007) – 13.04.2012
IN “O Estado de São Paulo” – http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,eldorado-de-impunidade,872167,0.htm