sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Controle civil das prisões militares


No Brasil vivemos num sistema de relações civis-militares cinzento. Os militares têm sistemas separados para tudo: salários, pensões, assistência médica e punições disciplinares, até prisão em instituições militares. Tudo isso tem raízes históricas em tempos de guerra. Não deviam aplicar-se a tempos de paz.

Alexandre Barros
"Tendo feito todo o esforço para guiar os superiores civis na direção que ele acha certa, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (Joint Chiefs of Staff) deve aceitar as decisões do secretário da Força, do secretário de Defesa e do presidente como finais e, daí para adiante, apoiá-lo perante o Congresso. A alternativa é a renúncia (demissão voluntária)"
General Maxwell Taylor, ex-chefe do Estado-Maiordas Forças Armadas dos Estados Unidos


No Brasil, vivemos de escaramuças entre civis e militares. Ou é a Comissão da Verdade, ou o revanchismo e, agora, o tema do controle das prisões militares por autoridades civis. Militares, como outros cidadãos quaisquer, nas democracias devem ser controlados pelo poder civil.

Foi o presidente Truman que decidiu jogar as bombas atômicas no Japão. Aos militares coube coordenar sua produção e dizer ao presidente que a arma estava disponível. Mas a responsabilidade de lançá-la e explodi-la foi do presidente. Assim foi feito porque assim é que tem de ser feito numa democracia.

No Brasil vivemos num sistema de relações civis-militares cinzento. Os militares têm sistemas separados para tudo: salários, pensões, assistência médica e punições disciplinares, até prisão em instituições militares. Tudo isso tem raízes históricas em tempos de guerra. Não deviam aplicar-se a tempos de paz.

Os salários são diferentes porque nos tempos em que na Europa só se guerreava na primavera e no verão os soldados mercenários ficavam desempregados durante o resto do ano. Alguns governantes resolveram que eles precisavam ficar fora dos limites das cidades fortificadas porque senão acabavam fazendo arruaças. A maneira funcional de evitar que os soldados sem trabalho atacassem os governantes foi comprar sua docilidade com pagamentos, mesmo quando eles não estavam guerreando.

Dentistas só eram temidos quanto tinham os seus boticões nas mãos e os clientes, sentados na cadeira. Fora isso, eram inofensivos. Os militares, porque armados, eram temidos sempre. E por isso ganharam regalias.

Alguns governantes conseguiram romper essa couraça de privilégios oriundos de situações específicas de guerra e o mais eficiente exemplo foi também o menos edificante. Adolf Hitler conseguiu dominar os militares alemães, que tinham sido a base de formação e de sustentação do Estado prussiano, por meio da formação de forças paralelas aos militares, só que armadas. Primeiros foram as SA e depois as SS. A submissão dos militares, portanto, ocorreu, entre outros motivos, porque Hitler criou forças armadas paralelas que podiam opor-se a eles. Para eliminar a "hitlerização" dos militares trazê-los de volta à democracia o general conde Wolf von Baudissin desenvolveu um trabalho fundamental após o fim da 2.ª Guerra Mundial.

Antes que algum leitor assustado ache que estou promovendo ideias de Hitler, escolhi o exemplo para mostrar como é difícil controlar os militares, sobretudo na ausência de uma tradição político-cultural-constitucional para fazer isso, como é o caso dos Estados Unidos e da Inglaterra. De Gaulle era general e presidente da França e enfrentou a rebelião e o terrorismo dos militares de direita por conta da independência da Argélia.

Mas chega de histórias alienígenas. Concentremo-nos aqui.

As Forças Armadas brasileiras não se envolvem em nenhuma guerra externa (que é para o que elas existem) há mais de cem anos. O envolvimento na 2.ª Guerra Mundial foi mais simbólico do que numérica ou temporalmente significativo, ainda que nos tenha deixado heranças edificantes, e menos edificantes, durante o período da guerra fria.

Agora estamos diante da Comissão da Verdade e da Lei da Anistia. Poderemos resolver isso democraticamente, mas ainda não dá para saber e esta vai sobrepor-se a àquela, ou vice versa. O jogo democrático é que definirá isso.

Agora surgiram os problemas das prisões militares, que o governo civil quer e deve poder inspecionar. Afinal, por que manter as prisões militares em tempos de paz? E mais: cento e tantos anos de paz!

Em algum momento os militares precisarão adaptar-se ao princípio da superioridade civil. E isso inclui permitir a inspeção de prisões militares, em que são postos atrás de grades, entre outros, cidadãos que entraram para as Forças Armadas não porque quisessem, mas porque uma lei os obrigou a prestar o serviço militar. Este não passa de um imposto disfarçado cobrado dos cidadãos maiores de 18 anos, sob forma de trabalho e de renúncia a ganhos e/ou educação, durante um ano. Se vivemos num regime constitucional, não é possível manter encarcerados cidadãos sem terem sido condenados por um tribunal civil. Se a lei permite isso, é hora de mudar a lei.

Eu tive o desprazer de passar um fim de semana estendido (Dia de Todos os Santos e Finados) detido por causa da arbitrariedade de um tenente que resolveu punir-me por eu ter falado com um capitão sem pedir permissão a ele - tenente. Só que não tomei a iniciativa de falar com o capitão, apenas respondi a uma pergunta que ele me fez.

Esse episódio foi suficiente para sentir o peso do que podem ser as arbitrariedades dentro de um quartel, já que a instituição militar não está sujeita a nenhum controle externo independente. Portanto, melhor que não tenhamos prisões militares fora do controle do Judiciário civil.

Prisões são a melhor maneira de tornar as pessoas piores. Não acredito que nenhum dos meus colegas de serviço militar que foram presos tenha de lá saído melhor, nem um pouco.

Se, de todo, por questões políticas, ainda não for possível acabar com as prisões militares em tempo de paz, ao menos que um poder independente do sistema militar possa fiscalizá-las.


Alexandre Barros –Cientista político e analista de risco – 29.03.2012

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Imprensa de republiqueta


Nossos jornalões engoliram a lorota, transigiram no rigor democrático sem perceber que se precisarem denunciar Hugo Chávez num próximo surto autoritário não poderão mostrar-se tão intransigentes em defesa da liberdade de expressão.

Alberto Dines
Foi pronta a reação da grande imprensa brasileira ao impeachment do presidente paraguaio Fernando Lugo.
Pronta e pífia: no dia seguinte, sábado (23/6), já apareciam aqueles editoriais chochos, resignados e malandros, considerando legal a destituição votada pelo Congresso do país vizinho [ver no link editoriais da Folha, do Estado e do Globo].
Este “legalismo” desconsidera o espírito das leis, comprometido apenas com as formalidades e o faz de conta. Não leva em conta que o Estado de Direito exige também o pleno cumprimento dos ritos e o respeito à liturgia.
O Congresso paraguaio fez um justiçamento sumário, estilo banana republic, e a imprensa do poderoso vizinho se comportou com os paradigmas de uma republiqueta. O Legislativo fingiu que oferecia ao chefe do Executivo o direito de defesa e iniciava o devido processo, mas na realidade maquiava a arbitrariedade com apressados artifícios.

Princípios democráticos
Nossos jornalões engoliram a lorota, transigiram no rigor democrático sem perceber que se precisarem denunciar Hugo Chávez num próximo surto autoritário não poderão mostrar-se tão intransigentes em defesa da liberdade de expressão.
Lugo era incompetente como administrador e canhestro como estrategista, mas isso não dá aos seus adversários o direito de derrubá-lo. O seu esquerdismo era tão consistente quanto a sua religiosidade. Mas foi eleito e empossado. Nas próximas eleições seria escorraçado.
Nossa grande imprensa está precisando renovar a sua fé nos princípios democráticos e com eles reexercitar seus instintos. Só assim poderá fazer as escolhas corretas em situações de emergência. 

Alberto Dines – Jornalista e professor – 26.06.2012




Imprensa brasileira e os problemas da vizinhança

Os principais jornais brasileiros não querem a Venezuela no Mercosul. Esses mesmos jornais nunca aceitaram bem a ideia de um mercado comum regional no sul do continente americano. Preferiram sempre o alinhamento automático com a porção mais ao norte.

Luciano Martins Costa
Os principais jornais brasileiros não querem a Venezuela no Mercosul. Esses mesmos jornais nunca aceitaram bem a ideia de um mercado comum regional no sul do continente americano. Preferiram sempre o alinhamento automático com a porção mais ao norte.
Para a imprensa brasileira, a Venezuela passou a ser a morada do demônio desde que o presidente Hugo Chávez Frías reagiu a uma tentativa de golpe de Estado, em 2002, e decidiu permanecer no poder enquanto encontrasse fundamentos legais para isso. Apelando para plebiscitos e referendos, ele tenta se reeleger pela terceira vez consecutiva no próximo mês de outubro, ao mesmo tempo em que luta para sobreviver a um câncer.
Na terça-feira (3/7), a imprensa brasileira registra que o ingresso da Venezuela no Mercosul foi uma iniciativa do governo brasileiro, segundo o ministro das Relações Exteriores do Uruguai.

Estopim conveniente
A revelação de que a aceitação da Venezuela como membro pleno do bloco regional vinha provocando tensões entre o governo uruguaio e parlamentares da oposição indica que a declaração do ministro das Relações Exteriores em Montevidéu tinha como plateia preferencial a política interna uruguaia, mas sua tentativa de se justificar diante da oposição local acabou ganhando destaque na imprensa brasileira.
Como o Brasil tem uma posição quase hegemônica na política e na economia da região, fecha-se o círculo de uma crise que a imprensa gostosamente alimenta.
O estilo boquirroto de Hugo Chávez e sua permanente disposição para fazer provocações ao governo dos Estados Unidos, por meio de acordos mais ou menos inócuos com o Irã, declarações grandiloquentes contra o capitalismo e intervenções canhestras na política internacional, provocam incômodos até mesmo em seus parceiros mais moderados.
Para o Brasil, o ingresso da Venezuela no bloco pode ser interessante do ponto de vista econômico e até mesmo geopolítico, pois, integrado e cada vez mais dependente de relações regionais, o país de Chávez tenderia a se tornar mais disciplinado, a despeito dos discursos radicais de seu líder.
Tudo isso se depreende de notícias e artigos coletados na imprensa brasileira, mas essa observação depende do garimpo diário nas páginas dos jornais. Para o leitor menos atento, ficam as impressões das manchetes.
Por outro lado, observe-se o comportamento da mesma imprensa brasileira diante da crise provocada no Paraguai pela destituição do presidente Fernando Lugo em processo sumário de impeachment.
Inicialmente, os jornais brasileiros, brandindo a bandeira do legalismo, deram a entender que questionavam a decisão do Congresso paraguaio – ainda que tenham alimentado publicamente ampla antipatia pelo ex-bispo Lugo. Mas as manifestações de preocupação com a possibilidade da volta dos golpes de Estado às práticas políticas da região logo deram lugar a editoriais chochos e complacentes, sinalizando que, se dependesse da imprensa brasileira, o golpe parlamentar estaria absorvido, como destacou Alberto Dines neste Observatório.
Agora, a manifestação do chanceler uruguaio é usada como estopim pela imprensa para acender nova crise, revertendo a direção do vento e mudando o rumo dos debates em torno do golpe branco que derrubou Lugo.

O articulador do golpe
Ao colocar em cena a Venezuela de Hugo Chávez, a imprensa aumenta os decibéis das discussões, deliberadamente, para abafar as sutilezas que precisam ser levadas em conta na análise da situação política regional.
Como não pode atacar as decisões econômicas que colocam o Brasil e, quase por consequência, toda a região em situação mais ou menos tranquila diante da crise mundial, trata-se de fazer ferver a panela das discussões ideológicas, onde há muito material para controvérsias – simplesmente porque nesse caso não há notícias, mas declarações, que podem ser selecionadas a critério dos editores.
Mas sempre se pode achar em meio ao opiniário alguma informação mais esclarecedora. Observe o leitor, por exemplo, a reportagem colocada no pé da página da Folha de S.Paulo que noticia a declaração do chanceler uruguaio sobre o ingresso da Venezuela no Mercosul. Trata-se de uma entrevista do empresário paraguaio Horácio Cartes, acusado de haver articulado a derrubada de Fernando Lugo e apontado como pré-candidato a presidente do Paraguai.
Folha anota que Cartes já foi vinculado ao narcotráfico em um daqueles telegramas do Departamento de Estado americano vazados pelo Wikileaks.
Esse é o detalhe que deveria recolocar a questão paraguaia no noticiário, mas o leitor dificilmente vai ter essa oportunidade.

Luciano Martins Costa – 03/07/2012
Comentário para o programa radiofônico do OI, 3/7/2012





Apologia ao golpe de Estado paraguaio

de acordo com a cláusula democrática do Mercosul, prevista no Protocolo de Ushuaia, “a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados partes do Protocolo”. Portanto, a suspensão do Paraguai está de acordo com parâmetros do bloco econômico sul-americano.

Francisco Fernandes Ladeira
Um dos acontecimentos internacionais mais comentados nos últimos dias foi a destituição, sob a alegação de “mau desempenho das suas funções”, do presidente do Paraguai, o ex-bispo Fernando Lugo.
Logo após a queda de Lugo, a maioria dos governantes sul-americanos prontamente apontou que, na realidade, houve um “golpe de Estado” em Assunção. “O governo do Equador não reconhecerá outro presidente do Paraguai que não seja o senhor Fernando Lugo”, assegurou Rafael Correa. “Houve uma ruptura da ordem democrática na República do Paraguai. Em minha opinião, parece uma paródia de julgamento o que aconteceu contra Lugo porque não há no mundo um julgamento político sem a possibilidade de defesa”, disse Cristina Kirchner. Evo Morales afirmou que Lugo foi vítima de um “golpe congressual”. Opinião análoga foi compartilhada por José Mujica, que classificou a destituição do ex-bispo de “golpe de Estado parlamentar”. Por sua vez, Hugo Chávez chamou o novo presidente paraguaio, Frederico Franco, de “usurpador”.
De acordo com o editorial de um partido político da esquerda brasileira “Lugo, um ex-bispo católico ligado ao movimento camponês, foi deposto para que os interesses de multinacionais imperialistas, ávidas pelos lucros da exportação de commodities, continuassem a prevalecer no nosso vizinho Paraguai”. Segundo informações divulgadas pelo WikiLeaks, um “despacho sigiloso da embaixada dos EUA em Assunção, dirigido ao Departamento de Estado, em Washington, já informava, em 28 de março de 2009, a intenção da direita paraguaia de organizar um ‘golpe democrático’ no Congresso para destituir Lugo”.

Escalada na violência no campo
Por outro lado, a mídia hegemônica brasileira mostrou-se favorável ao “golpe de Estado” na nação vizinha. Como bem observou Alberto Dines, em artigo publicado no Observatório da Imprensa, a “reação da grande imprensa brasileira ao impeachment do presidente paraguaio Fernando Lugo foi pronta e pífia: no dia seguinte, sábado (23/6), já apareciam aqueles editoriais chochos, resignados e malandros, considerando legal a destituição votada pelo Congresso do país vizinho”. Para Reinaldo Azevedo, colunista da Veja, “a lei foi cumprida. A democracia continua em pleno funcionamento. Os poderes instituídos e o povo do Paraguai reconhecem o novo presidente”. Em um noticiário da Rede Globo, Arnaldo Jabor teceu o seguinte comentário: “Na América Latina, existe [...] autoritarismo disfarçado de democracia. Assim vive a Venezuela do Chávez, a Bolívia cocaleira do Morales, a Argentina de Cristina Botóx e o Paraguai [...]. O Paraguai, é uma caricatura desse esquerdismo direitista latino. [...] O bispo sem batina foi ‘impichado’ pelo Congresso, como está previsto pela Constituição do Paraguai. Agora, a polêmica: foi golpe ou impeachment legal? Os tiranetes latinos já gritam ‘golpe’. Mas golpe de quem? Da esquerda ou da direita?”
Já a cobertura realizada pela Rede Bandeirantes merece ser destacada. A princípio, a emissora da família Saad apresentou uma postura moderada. “Embora formalmente correto, dentro da Constituição, oimpeachment de Lugo, no mínimo deixa dúvida sobre sua legitimidade política. Na verdade, o presidente foi deposto por seus adversários. Esquerdista, o ex-bispo acabou trombando com as velhas e persistentes aristocracias paraguaias”, asseverou Boris Casoy no dia da deposição de Fernando Lugo.
Todavia, no decorrer dos dias, os telejornais da Bandeirantes não se intimidaram em demonstrar o seu apoio à retirada de Lugo do poder. Na quarta-feira (27/06), o Jornal da Band destacava que a queda do presidente paraguaio teve repercussão altamente favorável entre os “brasiguaios” (termo utilizado para designar os brasileiros – e seus descendentes – que migraram para o Paraguai em busca de terras baratas). Ainda segundo o noticiário noturno, Fernando Lugo, primeiro presidente de esquerda na recente história paraguaia, era apontado por brasiguaios e grandes latifundiários como um aliado dos trabalhadores rurais sem-terra. Para os fazendeiros brasiguaios, enquanto permaneceu no cargo Lugo estimulou ocupações, o que teria provocado uma escalada na violência no campo.

Atrocidades escamoteadas
Em seu comentário no Jornal da Noite de quinta-feira (28/6), Joelmir Betting demonstrou todo o conservadorismo da emissora paulista: “O Paraguai não ‘rasgou’ a Constituição na troca de presidente pelo Congresso. Quem tem ‘rasgado’ a Constituição é a Venezuela. Pois agora o Mercosul recepciona festivamente a Venezuela e afasta o Paraguai feito ‘cachorro morto’. [...] O bloco não é uma representação diplomática e muito menos ideológica. É uma associação comercial, uma integração econômica cujo o tratado vem sendo sistematicamente rasgado pela Argentina [...], sem punição no bloco; ou seja, três pesos e três medidas. Ainda vão acabar colocando a culpa nos trezentos e cinquenta mil brasiguaios abandonados pelos dois governos, mas não a partir de agora pelo novo presidente paraguaio.”
Ora, pelo que consta, Chávez (como todos os governantes progressistas da América do Sul) chegou ao poder pela via democrática e está sustentado por uma Constituição recém-construída e aprovada pela ampla maioria dos venezuelanos. Em contrapartida, na “democracia paraguaia” houve um controverso processo de impeachment (sem possibilidade de defesa para o acusado e sem debate público) que derrubou ilegitimamente um presidente democraticamente eleito. Não obstante, de acordo com a cláusula democrática do Mercosul, prevista no Protocolo de Ushuaia, “a plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados partes do Protocolo”. Portanto, a suspensão do Paraguai está de acordo com parâmetros do bloco econômico sul-americano.
Diante dessa realidade, cabe aqui uma questão capciosa: por que, para a mídia brasileira, governos eleitos pelo voto popular, mas contrários aos interesses estadunidenses, são considerados antidemocráticos; e, por outro lado, as atrocidades de regimes aliados à Washington (Arábia Saudita, Bahrein e Colômbia, por exemplo) são escamoteadas? Não é por acaso que o acrônimo PIG – partido da imprensa golpista – tem sido cada vez mais utilizado em nosso país.


Francisco Fernandes Ladeira - Professor de História e Geografia em Barbacena, MG – 03.07.2012


domingo, 26 de agosto de 2012

Chamando as coisas pelos seus nomes


Mais do que o inestimável serviço de inscrever na memória nacional os nomes e os paradeiros dos desaparecidos e de seus verdugos, trata-se de pôr à disposição dos brasileiros novos elementos para interpretar seu passado recente. O efeito principal poderá ser o da elucidação do que significa um regime de exceção com a implicação de que os que ocuparam sua direção devem ser chamados pelos nomes apropriados: ditadores, e não “presidentes”, como se pudesse haver alguma analogia com os que ocuparam a direção do País por força de procedimentos legítimos.

Renato Lessa
Há coisa de algumas semanas, um personagem sombrio, egresso do esgoto da memória nacional, deu seu testemunho a respeito do que andou a fazer durante a vigência do regime de exceção, implantado em março de 1964. Ex-delegado de polícia, o personagem ganhou notoriedade pela força de suas revelações sobre torturas, assassinatos e ocultamento de corpos de militantes da resistência ao descalabro. O livro encontra-se nas boas casas do ramo, e deve ser lido por quem tem estômago forte e um mínimo de apego à memória histórica. Se apenas, digamos, 10% do que diz correspondem à verdade, o efeito é estarrecedor.
O saudoso deputado Ulysses Guimarães bem sabia do que estava a falar quando declinou seu ódio absoluto às ditaduras. Se vivo estivesse, e houvesse lido o relato do abjeto personagem, teria ali encontrado fartos motivos para sua aversão, que incidia sobre um regime que fez do suplício e da eliminação física prática corrente e meio de sustentação. Não é preciso aderir ao modismo das teorias a respeito da “biopolítica” para reconhecer que regimes políticos são inteligíveis pelo que fazem com os corpos de seus súditos. Regimes cuja sustentação exige o suplício e o assassinato de oponentes têm tradicional acolhida conceitual na história do pensamento político: são regimes despóticos, tiranias e estados de exceção.
A Comissão da Verdade, instalada há poucos dias pela presidente Dilma Rousseff, tem diante de si um desafio e uma oportunidade decisivos para fixar uma narrativa a respeito de história recente do país. Há duas ordens imediatas de objetivos, para a fixação de tal narrativa, de natureza incontornável: (1) elucidar, tanto quanto for possível, os parentes, amigos e o País sobre o paradeiro dos desaparecidos e (2) desfazer a funda assimetria instituída pelos termos da anistia, que tornou públicos os nomes e os atos dos presos políticos e ocultou os de seus perpetradores.
A anistia concedida em 1979 abrangeu, além dos então presos políticos, possíveis perpetradores de “crimes conexos”. Pelo eufemismo, estavam cobertas as ações do aparelho de repressão à dissidência política. A assimetria reside no fato de que a anistia concedida ao primeiro grupo – opositores ao regime -, por razão lógica, só pode ser concedida aos que reconhecida e publicamente praticaram atos julgados atentatórios à segurança nacional. É claro que isso não impede que a eventual descoberta posterior de ocorrência de ato dessa natureza tenha como implicação a aplicação da anistia. Mas o fato é que a viabilidade do usufruto da anistia por parte da esquerda exigiu a ostensão personalizada dos beneficiados.
Os perpetradores de “crimes conexos” foram agraciados por uma anistia generalizada, inespecífica e despersonalizada. Suas identificações não foram definidas como necessárias para o usufruto do perdão. Trata-se, é evidente, de assimetria forte e apenas mentes paranoicas podem supor que a possível reposição da simetria seja algo aparentado a “revanche”.
Mas, além desses dois objetivos , há ainda a valiosa oportunidade para a elucidação da natureza do regime vigente no País entre 1964 e 1985. Mais do que o inestimável serviço de inscrever na memória nacional os nomes e os paradeiros dos desaparecidos e de seus verdugos – em seus respectivos nichos -, trata-se de pôr à disposição dos brasileiros novos elementos para interpretar seu passado recente. O efeito principal poderá ser o da elucidação do que significa um regime de exceção com a implicação de que os que ocuparam sua direção devem ser chamados pelos nomes apropriados: ditadores, e não “presidentes”, como se pudesse haver alguma analogia com os que ocuparam a direção do País por força de procedimentos legítimos.
Independentemente do juízo que se possa fazer a respeito de Dilma Rousseff como chefe de governo, seu gesto como chefe de Estado inscreve-se em um dos momentos fortes da história republicana. A qualidade da peça lida pela presidente e a condensação política presente no ritual – mais do que completo e generoso, a ponto de incluir um presidente indigno e impedido – parecem à altura do fato nada trivial de termos na chefia de Estado – e no comando supremo das Forças Armadas – alguém que sentiu no próprio corpo o que significa uma ditadura. O consenso reunido representa o reconhecimento desse aspecto crucial.
O desconforto dos chefes militares na cerimônia mostra, lamentavelmente, quanto as forças sob seu comando têm dificuldade em se distinguir do que foi feito por alguns de seus antecessores. A cena beira o absurdo, pois afinal nada há no comportamento corrente dos militares brasileiros que autorize temor corporativo diante das atribuições da Comissão.


Renato Lessa – Professor titular de teoria política da UFF, investigador associado do instituto de ciências sociais da Universidade de Lisboa e Presidente do Instituto Ciência Hoje – 20.05.2012

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Aluno não é cliente


O crescimento do número de instituições particulares não democratiza o acesso à informação, apenas diminui o nível médio dos formandos.

John Holmwood
Em junho deste ano, o governo britânico anunciou uma série de mudanças no sistema de ensino do Reino Unido. Elas acabam com todo tipo de financiamento público para cursos universitários, com exceção de algumas poucas áreas consideradas prioritárias das ciências e da medicina. Todas as outras faculdades serão bancadas por fundos de empresas e pelos alunos. 
Isso significa o fim do ensino público no país. E serve de alerta para todas as nações que estão investindo pesado na educação universitária privada, como o Brasil. Este novo modelo, que vem sendo adotado em larga escala no mundo desenvolvido, é um retrocesso e vai reduzir a qualidade da formação profissional das próximas gerações. O processo começou em 1997, quando surgiram as primeiras taxas para estudantes de universidades públicas e privadas. Com a nova proposta, os preços do financiamento estudantil vão subir muito — chegam a 9 mil euros por ano. Agora, também estão escancaradas as portas para o financiamento vindo de grandes corporações do ramo educacional, como a americana Apollo Group. A proposta é tratar os estudantes como clientes e estimular a eficiência financeira da educação, o que significa cortar custos sempre que necessário. 
Existe um motivo para o ensino ser caro. Da construção de laboratórios de ponta à formação de bons professores, é preciso de tempo e dinheiro para criar centros verdadeiramente capacitados. Não é por acaso que as melhores universidades são centenárias. Este investimento não é desperdiçado: os alunos de universidades públicas são mais bem-sucedidos na vida profissional do que os de faculdades privadas porque não aprendem apenas técnicas de trabalho. Eles são instruídos a pensar por conta própria, questionar as motivações de seus chefes, colegas e concorrentes e enxergar o mercado de ângulos inusitados. 
Ensino de qualidade não combina com a lógica de mercado apressada e o processo educativo não pode ser resumido em planilhas. Mas o novo modelo britânico tem um outro problema, além de colocar em risco séculos de tradição. Ele reforça um círculo vicioso: em geral, a elite recebe a melhor instrução a fim de continuar na elite. É o que acontece na sociedade inglesa hoje, mas no Brasil trata-se de uma verdadeira ferramenta para escavar o fosso social do país.

Na Inglaterra, 80% dos presidentes de empresas e 85% dos políticos vieram de faculdades públicas. São eles que conduzem o país, na verdade, e foram devidamente formados para isso. Em vez de procurar formas de terceirizar o ensino, deveriam estar preocupados em resolver um problema mais sério: fornecer vagas em universidades públicas para todos os jovens que quiserem estudar. Esta é uma obrigação de qualquer governo, tão importante quanto o acesso constitucional a alimentos, saúde e moradia. Sem educação pública de qualidade, estes outros direitos básicos correm perigo. 



John Holmwood - Sociólogo da Universidade de Nottingham e um dos líderes da Campanha pela Universidade Pública na Inglaterra – Novembro 2011

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Microcrédito, o negócio da miséria


Ao emprestar somas módicas a fim de possibilitar o desenvolvimento de uma atividade produtiva, o microcrédito deveria emancipar os mais pobres. Mas, na Índia, a lógica dos acionistas triunfou: empresas de microcrédito constroem fortunas vampirizando os mais vulneráveis.

Cédric Gouverneur
Laksmi e sua esposa Rama não aguentavam mais confeccionar, dia após dia, quase milbeedies(cigarros aromáticos), em doze horas de trabalho, na esperança de ganhar 70 rupias (R$ 2,50) ao final do mês. Esse casal com duas crianças fez então um empréstimo de 5 mil rupias (R$ 180) em uma empresa de microcrédito para abrir uma minúscula lojinha de noz de bétele na periferia de Warangal, no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. Isso deveria permitir-lhes uma vida melhor, reembolsando 130 rupias por semana. Mas, conta Rama, Laksmi ficou doente: “Durante quatro meses, ele não pôde trabalhar”. Os vencimentos se acumularam e, com eles, os juros. Os vizinhos começaram a ficar agressivos, pois as empresas de microcrédito colocaram em ação um sistema de corresponsabilidade: quando um devedor falha, os outros devem reembolsar. Assediado, aterrorizado, o casal contratou um segundo empréstimo para pagar o primeiro. Depois um terceiro para pagar o segundo... Um total de cinco empréstimos, pelo equivalente a cerca de R$ 2.300.
Os credores acabaram por literalmente acampar diante do casebre de Laksmi e Rama. Depois – em completa ilegalidade – tomaram a lojinha de bétele, o fogão, as joias de ouro e finalmente a máquina de costura com a qual uma das filhas do casal, Eega, de 20 anos, fazia roupas para revender. “Você é bonitinha, vá se prostituir!”, disseram os credores quando ela perguntou como sua família iria conseguir comer. Humilhada, ela se imolou com fogo no dia 28 de setembro de 2010.
“Os pobres têm acesso a um crédito fácil, na porta de casa”, resume Reddy Subrahmanyam, na chefia do ministério do Desenvolvimento Rural do estado. “Mas a que custo! Com os impostos, as taxas de juros beiram os 60%.” Seguindo o espírito de seu inventor, o bengali Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz, o microcrédito deveria permitir a aquisição de uma nova fonte de renda, e não atuar como um complemento. Uma nuance fundamental, o microcrédito indiano se assemelha agora aos créditos de consumo: “Os mais pobres contratam créditos para pagar gastos médicos, um dote, um casamento, até uma televisão ou uma peregrinação”, fulmina Subrahmanyam. “O microcrédito deveria emancipar [empower] os mais desfavorecidos, devolver-lhes a dignidade. Agora ele os está afundando na miséria.” E em vez de criar solidariedades, a corresponsabilidade dos devedores implode as comunidades dos vilarejos.

Andhra Pradesh concentra um quarto dos microcréditos privados do país, ou seja, 52 bilhões de rupias (R$ 1,866 milhão) emprestados a 6,25 milhões de lares em 2010.1 “Nos anos 2000”, conta Abhay N., editor do jornal on-line India Microfinance, “o governo regional lançou diversos programas sociais para conter a influência dos maoístas”, cuja guerrilha é ativa na zona rural.2 O estado incitou os bancos a fazer empréstimos aos habitantes dos vilarejos reunidos no seio de grupos de cooperação (self-help groups, ou SHG), ele mesmo se encarregando de uma parte dos juros.
No vilarejo de Dharmasagaram, no distrito de Warangal, uma mãe de família, Bhergya, conta como pôde, graças ao SHG, fazer um empréstimo de pouco mais de R$ 2.300 no banco, com uma taxa de 12% (da qual 9% por conta do Estado) para adquirir um riquexó (carro de duas rodas para transporte de passageiros a tração humana) que ela depois alugou ao irmão: “O aluguel do riquexó me paga 6 mil rupias (R$ 215) líquido por mês, e eu devo reembolsar 2.700”, indica ela, satisfeita.
Mas empresas privadas utilizaram essa rede para abordar os habitantes dos vilarejos e vender créditos para consumo segundo o modelo europeu. Esse desvio se explica pela evolução da maioria dos setenta órgãos de microcrédito indianos, agora guiados por uma só lógica, a do lucro. Número um do setor, a SKS foi fundada em 1998 por Vikram Akula, um trabalhador social diplomado na Universidade de Chicago. A SKS era originalmente uma organização sem fins lucrativos. “Esse statusjurídico a impedia de emprestar dinheiro suficiente”, justifica o porta-voz da empresa na sede social em Hyderabad. “Akula decidiu então, em 2005, fazê-la evoluir para uma companhia financeira não bancária.” Em direito indiano, uma empresa empresta dinheiro, mas não pode receber depósitos. Assim como todos os patrões de órgãos de microcrédito contatados, Akula está “muito ocupado” para nos receber.
Uma ordem recente do governo de Andhra Pradesh (Partido do Congresso) proíbe os coletores de ir ao domicílio de seus devedores e condiciona a contratação de novos empréstimos ao aval das autoridades. Medidas julgadas insuficientes pela oposição: o Telugu Desam Party (TDP), no poder em Andhra Pradesh entre 1999 e 2004, incita os milhões de devedores a parar de pagar.
Na periferia de Hyderabad, encontramos Kaushalya e suas vizinhas. Essa enérgica avó fez um empréstimo para cuidar da saúde de seu marido paralítico. Incapaz de reembolsar, ela deveria ter sido assediada pelas outras devedoras do bairro, obrigadas a pagar em seu lugar. Mas essas senhoras decidiram se unir no enfrentamento e não pagar mais nada: “Não demos mais nada desde novembro de 2010”, dizem elas ao mesmo tempo orgulhosas e graves em seus saris. “As pessoas da empresa de crédito nos ameaçam, dizem que vamos para a prisão, mas nada acontece, a gente nem dá mais atenção a elas!” Tais exemplos de solidariedade nos vilarejos se multiplicam em todo o estado. E as taxas de reembolso afundam, passando de 97% para 20%, até 10%... Enfim, “investigações estão em andamento sobre uns cinquenta suicídios. Os responsáveis pelo assédio deverão responder por seus atos diante dos tribunais”, promete Subrahmanyam.

Sentindo o vento mudar, 39 dirigentes da SKS liquidaram suas ‘stock options’ desde o começo da crise, no fim de 2010.Segundo nossas informações, as empresas de microcrédito se instalam agora no interior profundo, nas cidades dos indígenas Adivasis: isolados, miseráveis, analfabetos, eles são menos suscetíveis a desconfiar... A microfinança indiana poderia tomar para si a tirada do humorista Alphonse Allais (1854-1905): “É preciso procurar o dinheiro onde ele está: com os pobres. Eles não têm muito, mas são muitos...”.




1 Narasimhan Srinivasan, “Microfinance India: state of the sector report” [Microfinança na Índia: relatório sobre o estado do setor], SAGE Publications India Pvt Ltd, Nova Déli, 2010.
2 Ler “En Inde, expansion de la guérilla naxalite” [Na Índia, expansão da guerrilha naxalita], Le Monde Diplomatique, dez. 2007.
3 Express India, Nova Déli, 11 fev. 2011.


Cédric Gouverneur – Jornalista – 03.04.2012
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” – http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1150






Microcrédito, maxissolução?


Ninguém pode estar contra projetos dessa ordem. Os microcréditos fazem parte do conjunto de políticas sociais que permitiram ao governo Lula se reeleger. Mas é preciso avaliar a real dimensão do que podem produzir, porque às vezes são atribuídas propriedades mágicas ao microcrédito.

Emir Sader
Cada vez que um prêmio internacional – ainda mais o Nobel – é entregue a alguém vinculado a problemas sociais, suscita simpatia e ampla repercussão, porque se trata afinal dos principais problemas que vive a humanidade. É o caso do Nobel atribuído a Muhammad Yunus, chamado de “banqueiro dos pobres”, pelos projetos de microcréditos de sua autoria.
Ninguém pode estar contra projetos dessa ordem. Os microcréditos fazem parte do conjunto de políticas sociais que permitiram ao governo Lula se reeleger. Mas é preciso avaliar a real dimensão do que podem produzir, porque às vezes são atribuídas propriedades mágicas ao microcrédito.
Dois países internacionalmente conhecidos pela difusão do microcrédito – Bangladesh e Bolívia – continuam a estar entre os mais pobres do mundo. Bangladesh está situado no lugar 139 pelos índices de desenvolvimento humano, com 49% da sua população de 137 milhões situada abaixo da linha de pobreza. Na sede do famoso banco de Yunus, cerca de 80% da população vive com menos de 2 dólares diários. Um estudo do Programa de Desenvolvimento da ONU mostrou que, em 1990, o total de microcréditos em Bangladesh representava apenas 0,6% do total de créditos no país.
Os microcréditos podem ser úteis em certas circunstâncias, mas a realidade diz que ninguém consegue libertar-se economicamente pedindo dinheiro emprestado – senão nossos países estariam todos salvos. Conforme se desenvolveu, o microcrédito foi se tornando um grande negócio, sob controle dos grandes bancos. As taxas de juros do microcrédito para mulheres na Índia são muito mais elevadas do que as taxas normais dos bancos tradicionais. Elas pagam entre 24 e 36%, enquanto um grande empresário pode obter empréstimos pagando entre 6 e 8% nos grandes bancos.
O problema principal em países que gozam extensamente do microcrédito, sem que isso melhore a situação da massa da população, é a falta de acesso à terra. O custo da terra é muito superior ao que um microcrédito pode permitir.
Além disso, quando uma agencia internacional libera recursos para o microcrédito, antes que ele chegue a seu destinatário, consultores, ONGs, gerentes de bancos já receberam sua parte e quando chega a uma humilde senhora numa comunidade rural, o custo é proibitivo – segundo P. Sainath, pesquisador da Índia. 
Enquanto o economista Bob Pollin salienta que os tigres asiáticos, como a Coréia do Sul e Taiwan, cresceram como nenhum outro país, centrados numa linha diferente: em programas de créditos públicos para apoio ao desenvolvimento industrial, com criação de empregos, elevação da arrecadação, distribuição de renda e modernização tecnológica, aproximando-se agora do nível de vida dos países europeus. E complementa o jornalista norte-americano Alexander Cockburn: “Os paises pobres precisam adaptar o modelo de macro-crédito do sudeste asiático para promover não apenas as exportações, mas reforma agrária, cooperativas comerciais, infra-estrutura e, sobretudo, empregos decentes.”
E acrescenta que o problema com os programas de créditos públicos subsidiados é que eles se opõem frontalmente ao credo neoliberal e por isso não costumam nem ser implementados e, onde eles existem, não são divulgados em outros países. “É por isso que Yunus recebeu o Premio Nobel, enquanto os que lutam pela reforma agrária recebem balas na cabeça” – conclui Cockburn, de forma dramática.


Emir Sader – Sociólogo e professor – 22.11.2006

sábado, 18 de agosto de 2012

Mobilidade para todos, é possível?


O sonho de uma era pós-automóvel é perfeitamente viável técnica e tecnologicamente sendo necessário fazer com que a indústria automobilística, voluntariamente ou não, viabilize o desenvolvimento tecnológico para energia limpa para os transportes públicos. E também é viável sob o ponto de vista econômico constituindo um fundo para investimento em transporte público, calçadas e ciclovias, como define a Lei da Mobilidade Urbana , em vigor desde abril de 2012. 

Nazareno Stanislau Affonso
Se há um tema mais popular que o futebol no Brasil é o da mobilidade urbana. A maioria das pessoas nas conversas de bar, nos escritórios, em casa tem uma opinião a respeito de como melhorar o trânsito, os transportes coletivos, as calçadas, as bicicletas etc. Hoje, cidades médias e mesmo as pequenas já conhecem engarrafamentos diários. E nos grandes centros e cidades médias, os automóveis são responsáveis diretos pela baixa velocidade, aumentos dos custos das passagens dos ônibus.

Os congestionamentos constituem um fenômeno que vem se acumulando desde que a indústria automobilística se instalou no País nos final dos anos 1950, sempre beneficiada pelo poder público. Recentemente, as benesses do poder público vêm crescendo. Desde o início da crise internacional, em 2008, o governo federal, principalmente, mas também os governos paulista e mineiro injetaram recursos da ordem de R$ 14 bilhões para ajudar os bancos da indústria automobilística. Em maio de 2012, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou nova renúncia fiscal em favor do setor, zerando o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI); desta vez, os cofres federais deixarão de arrecadar R$ 900 milhões nos três meses que durará a medida.

E, pior, o setor continua pressionando os governos – como se vê, com sucesso – para efetivar uma política de proteção do seu mercado, com subsídio ao preço da gasolina, diretamente ou via renuncia fiscal da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE/Combustíveis) em mais de R$ 3 bilhões anuais. Além disso, nos últimos anos, o governo federal elevou o preço do diesel a um índice mais de cinco vezes superior ao índice utilizado para a majoração do preço da gasolina, resultando disso um sobrelucro de R$ 2 bilhões anuais para a Petrobrás, pago, via tarifas dos ônibus, pelos usuários que dependem do transporte público.

O mais interessante é observar que a maior beneficiária dessa política, a indústria automobilística, age como se não tivesse nada a ver com a crise de mobilidade, marcada por um espaço viário urbano abarrotado e pela demora nos deslocamentos nas cidades, que alcança hoje todas as classes sociais e começa a deixar a mesa dos técnicos para ir aos gabinetes de prefeitos e governadores e mesmo para a Presidência da República.

O governo federal e vários governos estaduais estão dando os primeiros sinais de reação a esse quadro respondendo primeiro à pressão social dos movimentos populares. Em segundo lugar à crise de mobilidade, filha do modelo que universaliza a propriedade e o uso do automóvel, e que gerou um enorme crescimento da frota em plena crise mundial da indústria automobilística internacional. Também contribuíram as exigências da FIFA de que os investimentos em mobilidade da Copa 2014 devessem esquecer obras viárias para automóveis, concentrando-se exclusivamente em transportes público, calçadas acessíveis e sistemas para circulação das bicicletas.

Essa reação levou o poder público a destinar recursos para sistemas estruturais de transportes públicos sobre trilhos e corredores exclusivos de ônibus dotados de sistemas inteligentes de controle da frota, monitoramento da circulação e informação aos usuários (conhecidos internacionalmente como Bus Rapid Transit ou BRTs).

Do Governo Federal estão previstos no PAC da Copa (R$11,8 bilhões) e do PAC da Mobilidade – Grandes Cidades (R$32,7 bilhões), com recursos do Orçamento Geral da União (OGU), para empréstimos a Estados, Municípios e setor privado, e contrapartidas estaduais e municipais. No mesmo sentido, estão previstos investimentos dos governos de Estado de São Paulo (R$45 bilhões) e do Rio de Janeiro (R$ 10 bilhões). Espera-se que num período de três a seis anos esses sistemas estejam em operação consumindo da ordem de 100 bilhões de recursos públicos atendendo direta e indiretamente mais de 50 grandes cidades.

A sociedade precisa estar atenta e mobilizada, pois recursos alocados não significam sistemas de transportes operando, temos visto na história, obras inacabadas como o metrô de Salvador há 12 anos construindo 6 quilômetros. Deve-se também perguntar ao governo federal se sua política industrial de enfrentamento da crise continuará a ser a de promover novos incentivos a indústria automobilística sem exigir dela nenhuma contrapartida a não ser garantir empregos de metalúrgicos e incentivar o consumo de automóveis que traz poluição, efeito estufa, e aumento dos custos urbanos.

O sonho de uma era pós-automóvel é perfeitamente viável técnica e tecnologicamente sendo necessário fazer com que a indústria automobilística, voluntariamente ou não, viabilize o desenvolvimento tecnológico para energia limpa para os transportes públicos. E também é viável sob o ponto de vista econômico constituindo um fundo para investimento em transporte público, calçadas e ciclovias, como define a Lei da Mobilidade Urbana [1] , em vigor desde abril de 2012, com recursos provenientes de uma contribuição da venda de cada automóvel, da taxação da gasolina e uma política de taxação dos estacionamentos (com gestão pública) nas áreas centrais, e, ainda, quando possível e recomendável, a implantação de sistemas de pedágio urbano, como Londres e outras cidades estão fazendo.

Os instrumentos estão dados, mas será preciso pressão social e a coragem política dos governos para que se efetivem as promessas de investimentos em sistemas estruturais e também para reduzir o custo social, ambiental e econômico da presença tão massacrante nos automóveis em nossas cidades.


[1] Lei 12.587 que Institui as Diretrizes da Política Nacional da Mobilidade Urbana de 3/01/2012


Nazareno Stanislau Affonso – Coordenador Nacional do MDT - Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para todos e Coordenador do Escritório da ANTP em Brasília – 09.06.2012