quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Mensalão como paradigma da complexidade informativa


poderíamos dizer que, em última análise, quem está sendo julgado no caso não são o ex-ministro José Dirceu e seus mensaleiros, mas também a própria imprensa.

Carlos Castilho
O mensalão já é um divisor de águas na comunicação, independente do resultado do julgamento do STF.  O processo é um caso típico de situação altamente complexa tratada de forma dicotômica pela imprensa e pelo marketing eleitoral dos partidos políticos.  E seja qual for o desfecho, as sequelas vão mostrar qual o papel dos jornalistas na formação de uma nova cultura informativa no país.  
O mensalão é um caso complexo tanto do ponto de vista legal como da ética e da institucionalidade.  Ele não se limita ao caso de um ladrão comum sendo flagrado com dinheiro na cueca pela polícia. Envolve um sistema de financiamento de campanhas eleitorais existente há décadas no país, um esquema de superfaturamento de obras igualmente instalado há muito tempo e cumplicidades institucionais e financeiras difíceis de serem configuradas legalmente. Qualquer especialista em Direito sabe disto.  
Mas desde que o caso estourou, em 2005, o mensalão e seus protagonistas foram submetidos pela imprensa e pelos políticos a um processo de simplificação para reduzi-lo a um fenômeno do bem contra o mal, como se fosse uma moeda com apenas duas caras. A simplificação visava facilitar as adesões a um lado ou outro. É o que acontece com quase todas as questões complexas numa sociedade que não está acostumada a lidar com problemas controversos.
Agora que o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, a maior corte de justiça do país ficou numa situação desconfortável porque acabou submetida a uma dupla pressão: a imposta pelo seu mandato institucional que exige uma abordagem complexa baseada nos princípios jurídicos, e um tratamento simplificado, imposto pela pressão da mídia, da opinião publica e dos políticos, por um veredito tipo culpado ou inocente.
É uma situação muito difícil a dos juízes do STF e uma evidência da responsabilidade da imprensa no desenvolvimento da percepção pública sobre fatos complexos. Se o critério da complexidade técnica levar os magistrados a absolvições, eles pagarão o preço da reação adversa da opinião pública. Caso se curvem ao poder dos holofotes e microfones, estarão pondo de lado o seu papel de árbitros e analistas de situações em que não existem apenas dois lados, duas versões.  
O tribunal não pode abrir mão de sua missão institucional de analisar casos complexos usando critérios técnicos, obviamente também complexos. Se renunciar a isso, ficará claro que o processo jurídico brasileiro passou a depender dos humores da imprensa e dos formadores de opinião.  As grandes decisões não serão tomadas mais por juízes, mas por marqueteiros. Mas para explicar uma decisão técnica à opinião publica, os juízes necessitarão da imprensa, hoje comprometida com a simplificação do caso.
Por aí fica fácil perceber o papel crucial dos jornalistas nesse episódio, no qual eles são ao mesmo tempo testemunhas e protagonistas.  Testemunhas porque deveriam levar aos cidadãos as informações necessárias para que estes possam refletir sobre o caso da forma mais realista possível — ou seja,  complexa. Mas, simultaneamente, são protagonistas ao simplificar o mensalão  numa perspectiva dos bons contra os maus, ou da dicotomia culpado ou inocente.
Na verdade, poderíamos dizer que, em última análise, quem está sendo julgado no caso não são o ex-ministro José Dirceu e seus mensaleiros, mas também a própria imprensa.
Mais importante do que saber quem é culpado ou inocente é identificar por que e como o mensalão aconteceu.  E isso é impossível com um julgamento simplificado. Só a avaliação de toda a complexidade do caso é que permitirá identificar as condições que permitiram o surgimento de uma estrutura paralela de financiamento político-eleitoral tão duradoura, ampla e tão sofisticada.  É aí que a imprensa cumpre um papel insubstituível e é onde ela deve ser cobrada pelo público.  Esta função é muito mais importante do que a briga pela primazia do furo na denúncia de escândalos.

Carlos Castilho – Jornalista e professor – 03.08.2012




A imprensa seletiva

a título de informar as pessoas sobre o julgamento do mensalão, são pinçadas não mais que as cenas que demonizem os réus.

Washington Araujo
A imprensa brasileira pode ser acusada de tudo, menos de não ser seletiva. O cardápio de notícias apresentado diariamente à sociedade brasileira também pode ser recriminado por tudo, menos pela repetição do prato principal. Refiro-me à Ação Penal 470, no linguajar jurídico, e ao mensalão, no linguajar dos jornalões.
A depender da grande imprensa, o dia 2 de agosto de 2012 passa a ter mais importância que o 7 de setembro de 1822 e, por isso, merece ser eternizado em nosso calendário cívico como a verdadeira data da independência do Brasil.
É aqui que começa a seletividade monocórdia, a opção desabrida pelo que merece ser visto como o início de uma nova era para os brasileiros: a imprensa julgou o assunto antes do Supremo Tribunal Federal e espera deste nada menos que a sua validação. Exarada a sentença nos noticiários das emissoras de rádio do Sistema Globo de Comunicação, proferida repetidas vezes do alto da audiência de que desfruta em todo o país o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, impressa em alto relevo em capas, páginas coloridas e colunas de fofocas que pretendem tratar de política da revista Veja, o carro-chefe – um tanto avariado, é verdade – da Editora Abril, em tudo o foco é um só: a Ação Penal 470 só desembocará em julgamento justo se dispensar o arcabouço jurídico a ser brandido pelas diversas teses de defesa, e se desconsiderar os aspectos técnicos mais comezinhos e indispensáveis a uma ação jurídica dessa envergadura.

Dois golpes
Desde os últimos dias de julho parecemos estar vivendo aquela última semana de dezembro de todos os anos: retrospectivas para um só gosto. Explico: a título de informar as pessoas sobre o julgamento do mensalão, são pinçadas não mais que as cenas que demonizem os réus, marquem suas frontes com ferro em brasa a insculpir a palavra “culpado”, imputem-lhes todas as iniquidades não republicanas e expiem o Himalaia de atos condenáveis que tão somente nossa legislação eleitoral poderia conter.
As retrospectivas do Jornal Nacional e da rádio CBN, ambos veículos de grande audiência, pertencem à família Marinho. A mais chamativa retrospectiva dos veículos impressos tem a chancela da Folha de S.Paulo, pertencente à família Frias. E os mais variados “renascimentos” do mensalão têm como sala de obstetrícia as redações da Editora Abril, de propriedade dos Civita. É impressionante como o monopólio dos meios de comunicação do Brasil é capaz de competir na batalha por corações e mentes em condições de paridade com o Poder Judiciário e sua mais elevada instância, o Supremo Tribunal Federal.
Chama a atenção como a parcialidade no noticiário pode ser nociva à própria ideia de democracia. E como o pensamento único pode ser danoso, além de cruel, à realização do ideal de justiça. E a AP-470 deve merecer, em futuro não muito distante, alentadas teses acadêmicas sobre a natureza e amplitude da influência que os meios de comunicação podem ter em um país que se diz moderno e, no entanto, se comporta de maneira partidarizada e sempre contundente graças ao elevado estado de concentração e aos efeitos pernósticos de um monopólio cada vez mais insustentável.
Enquanto isso, agentes do Direito, em especial do Ministério Público, sentem-se insuflados pelos meios de comunicação a subverter o real significado de eventos históricos de nossa tumultuada vida política. Para ilustrar à perfeição, encontramos ampla repercussão na imprensa dessa injuriosa frase à história do Brasil, proferida pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel: “O mensalão é o maior escândalo da história do Brasil”. Será mesmo? Ou por trás de tão absurda declaração não existe a vaidade escancarada de se sentir partícipe de evento de tão grande magnitude?
Ainda bem que o ilustre procurador não é autor de livros didáticos de história usados por estudantes do ensino fundamental; do contrário, milhões de crianças e jovens aprenderiam que o processo em vias de julgamento no STF eclipsou em importância nada menos que o escândalo de 1954, urdido por Carlos Lacerda (provavelmente o melhor aprendiz de Nicolau Maquiavel da política brasileira recente) para derrubar Getúlio Vargas e que, ao final, custou-lhe a vida, a eternização da expressão “mar de lama” e a beleza poética da carta-testamento do presidente suicida, certamente um dos mais importantes documentos políticos da história do Brasil.
Considerar o mensalão “o maior escândalo da história” é transformar os dois golpes de Estado ocorridos em 1955, ainda na esteira do suicídio de Vargas, em não mais que tempestades em copo d’água.

Dever divino
Poderia aproveitar o gancho e discorrer por alguns outros episódios que facilmente seriam impostos pelos fatos para ganhar a medalha de ouro, o lugar máximo do pódio de nossas crises e escândalos políticos: a chamada Intentona Comunista dos idos de 1935; o golpe militar que apeou do poder o presidente João Goulart e instaurou uma ditadura cruel (nada de “ditabranda”, como preferem alguns) que ceifou 20 anos da vida brasileira, exilou intelectuais, podou a criação artística, instaurou julgamentos sumaríssimos nos famigerados DOI-CODIs; e as imagens ainda vívidas da esteira de escândalos que envolveram personagens carimbados de nossa história recentíssima, como Fernando Collor de Mello, Pedro Collor, PC Farias, os Jardins da Babilônia recriados na Casa da Dinda, o Fiat Elba amarelo, a Operação Uruguay – todos episódios que culminaram com o primeiro impeachmentde um presidente do Brasil, legitimamente eleito e legitimamente destituído do cargo.
Quer dizer, então, que nenhum desses eventos nefastos e seus terríveis desdobramentos não passaram de meros exercícios mentais, meros esboços de escândalos e crises políticas ante a AP-470? Sim, mas na abalizada visão jurídica do procurador-geral da República Roberto Gurgel tudo isso foi, vamos dizer, fichinha. A tese do senhor procurador-geral é por demais impertinente e falseia a história como um todo – porque o que falseia a parte, falseia o todo.
Nada contra o procurador-geral se equivocar. Nada mais natural, nada mais humano. Mas não deixa de ser curioso observar que esse seu equívoco de julgamento é realmente fichinha se comparado aos longos três anos que Sua Excelência consumiu para se posicionar ante os robustos resultados apresentados pelas operações da Polícia Federal de nomes Vegas e Monte Carlo, e que culminaram na prisão do meliante-mor Carlinhos Cachoeira, na cassação do mandato do senador Demóstenes Torres, e que deve levar ao fio da navalha o mandato do governador goiano Marconi Perillo, além de manchar reputações de personagens de menor projeção política.
O problema é a forma entusiástica com que a grande imprensa encampou a declaração do procurador-geral: repercutiu em primeiras páginas, foi à escalada dos telejornais noturnos, recebeu o destaque que as frases grandiloquentes costumam ganhar por parte dos ditos colunistas de política. Mas não ficou por aí. Com essa frase sobre “o maior escândalo da história” se turbinou na mídia uma nova fase do game “Detonando o mensalão”: retrospectivas, operações Lázaro (aquela que ressuscita mortos-vivos políticos) e se colocou, do cabo à lâmina, a faca nos pescoços de nossos supremos julgadores, os integrantes do STF.
O poeta e filósofo romano Quinto Horácio Flaco (65 a.C.-8 d.C.) foi contundente quando afirmou: “Ousa saber! Começa!” (Sapere aude!)
E ousar saber e começar nada mais é que o irrecusável convite a que saiamos da estagnação mental e partamos para o conhecimento das leis, deixando ao largo todas as pressões – desde aquelas que gritam mais que mil comícios do III Reich nazista até as que, ao amparo da liberdade de imprensa, exercem seu divino dever de usar a liberdade de pressão para fazer valer suas teses, ideologias e mesmo anseios tardios por vingança, aquele velho prato que na literatura anglo-saxã sempre deveria ser servido frio.


Washington Araújo – Jornalista e escritor; mantém o blog http://www.cidadaodomundo.org – 02.08.2012