poderíamos dizer que,
em última análise, quem está sendo julgado no caso não são o ex-ministro José
Dirceu e seus mensaleiros, mas também a própria imprensa.
Carlos Castilho
O mensalão já é um divisor de águas na comunicação, independente do
resultado do julgamento do STF. O processo é um caso típico de situação
altamente complexa tratada de forma dicotômica pela imprensa e pelo marketing eleitoral
dos partidos políticos. E seja qual for o desfecho, as sequelas vão
mostrar qual o papel dos
jornalistas na formação de uma nova cultura informativa no país.
O mensalão é um caso
complexo tanto do ponto de vista legal como da ética e da institucionalidade.
Ele não se limita ao caso de um ladrão comum sendo flagrado com dinheiro
na cueca pela polícia. Envolve um sistema de financiamento de campanhas eleitorais existente há décadas no
país, um esquema de superfaturamento de obras igualmente instalado há muito
tempo e cumplicidades institucionais e financeiras difíceis de serem
configuradas legalmente. Qualquer especialista em Direito sabe disto.
Mas desde que o caso estourou, em 2005, o mensalão e seus protagonistas
foram submetidos pela imprensa e pelos políticos a um processo de simplificação para
reduzi-lo a um fenômeno do bem contra o mal, como se fosse uma moeda com apenas
duas caras. A simplificação visava facilitar as adesões a um lado ou outro. É o
que acontece com quase todas as questões complexas numa sociedade que não está
acostumada a lidar com problemas controversos.
Agora que o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, a maior corte de
justiça do país ficou numa situação desconfortável porque acabou submetida a uma dupla pressão: a
imposta pelo seu mandato institucional que exige uma abordagem complexa baseada
nos princípios jurídicos, e um tratamento simplificado, imposto pela pressão da
mídia, da opinião publica e dos políticos, por um veredito tipo culpado ou
inocente.
É uma situação muito
difícil a dos juízes do STF e uma evidência da responsabilidade da
imprensa no desenvolvimento da percepção pública sobre fatos complexos. Se o
critério da complexidade técnica levar os magistrados a absolvições, eles
pagarão o preço da reação adversa da opinião pública. Caso se curvem ao poder
dos holofotes e microfones, estarão pondo de lado o seu papel de árbitros e
analistas de situações em que não existem apenas dois lados, duas versões.
O tribunal não pode abrir mão de sua missão institucional de analisar casos complexos usando
critérios técnicos, obviamente também complexos. Se renunciar a isso, ficará
claro que o processo jurídico brasileiro passou a depender dos humores da
imprensa e dos formadores de opinião. As grandes decisões não serão
tomadas mais por juízes, mas por marqueteiros. Mas para explicar uma decisão
técnica à opinião publica, os juízes necessitarão da imprensa, hoje
comprometida com a simplificação do caso.
Por aí fica fácil perceber o papel crucial dos jornalistas nesse episódio, no qual eles
são ao mesmo tempo testemunhas e protagonistas. Testemunhas porque
deveriam levar aos cidadãos as informações necessárias para que estes possam
refletir sobre o caso da forma mais realista possível — ou seja,
complexa. Mas, simultaneamente, são protagonistas ao simplificar o
mensalão numa perspectiva dos bons contra os maus, ou da dicotomia
culpado ou inocente.
Na verdade, poderíamos dizer que, em última análise, quem está sendo
julgado no caso não são o ex-ministro José Dirceu e seus mensaleiros, mas
também a própria imprensa.
Mais importante do que saber quem é culpado ou inocente é identificar por que e como o mensalão
aconteceu. E isso é impossível com um julgamento simplificado. Só
a avaliação de toda a complexidade do caso é que permitirá identificar as
condições que permitiram o surgimento de uma estrutura paralela de
financiamento político-eleitoral tão duradoura, ampla e tão sofisticada.
É aí que a imprensa cumpre um papel insubstituível e é onde ela deve ser cobrada
pelo público. Esta função é muito mais importante do que a briga pela
primazia do furo na denúncia de escândalos.
Carlos Castilho – Jornalista e professor – 03.08.2012
IN “Observatório de Imprensa” – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/posts/view/mensalao_como_paradigma_da_complexidade_informativa
A imprensa seletiva
a título de informar
as pessoas sobre o julgamento do mensalão, são pinçadas não mais que as cenas
que demonizem os réus.
Washington Araujo
A imprensa brasileira pode ser acusada de tudo, menos de não ser
seletiva. O cardápio de notícias apresentado diariamente à sociedade brasileira
também pode ser recriminado por tudo, menos pela repetição do prato principal.
Refiro-me à Ação Penal 470, no linguajar jurídico, e ao mensalão, no linguajar
dos jornalões.
A depender da grande imprensa, o dia 2 de agosto de 2012 passa a ter
mais importância que o 7 de setembro de 1822 e, por isso, merece ser eternizado
em nosso calendário cívico como a verdadeira data da independência do Brasil.
É aqui que começa a seletividade monocórdia, a opção desabrida pelo que
merece ser visto como o início de uma nova era para os brasileiros: a imprensa
julgou o assunto antes do Supremo Tribunal Federal e espera deste nada menos
que a sua validação. Exarada a sentença nos noticiários das emissoras de rádio
do Sistema Globo de Comunicação, proferida repetidas vezes do alto da audiência
de que desfruta em todo o país o Jornal Nacional, da Rede Globo de
Televisão, impressa em alto relevo em capas, páginas coloridas e colunas de
fofocas que pretendem tratar de política da revista Veja, o carro-chefe –
um tanto avariado, é verdade – da Editora Abril, em tudo o foco é um só: a Ação
Penal 470 só desembocará em julgamento justo se dispensar o arcabouço jurídico
a ser brandido pelas diversas teses de defesa, e se desconsiderar os aspectos
técnicos mais comezinhos e indispensáveis a uma ação jurídica dessa
envergadura.
Dois golpes
Desde os últimos dias de julho parecemos estar vivendo aquela última
semana de dezembro de todos os anos: retrospectivas para um só gosto. Explico:
a título de informar as pessoas sobre o julgamento do mensalão, são pinçadas
não mais que as cenas que demonizem os réus, marquem suas frontes com ferro em
brasa a insculpir a palavra “culpado”, imputem-lhes todas as iniquidades não
republicanas e expiem o Himalaia de atos condenáveis que tão somente nossa
legislação eleitoral poderia conter.
As retrospectivas do Jornal Nacional e da rádio CBN, ambos
veículos de grande audiência, pertencem à família Marinho. A mais chamativa
retrospectiva dos veículos impressos tem a chancela da Folha de S.Paulo,
pertencente à família Frias. E os mais variados “renascimentos” do mensalão têm
como sala de obstetrícia as redações da Editora Abril, de propriedade dos Civita.
É impressionante como o monopólio dos meios de comunicação do Brasil é capaz de
competir na batalha por corações e mentes em condições de paridade com o Poder
Judiciário e sua mais elevada instância, o Supremo Tribunal Federal.
Chama a atenção como a parcialidade no noticiário pode ser nociva à
própria ideia de democracia. E como o pensamento único pode ser danoso, além de
cruel, à realização do ideal de justiça. E a AP-470 deve merecer, em futuro não
muito distante, alentadas teses acadêmicas sobre a natureza e amplitude da
influência que os meios de comunicação podem ter em um país que se diz moderno
e, no entanto, se comporta de maneira partidarizada e sempre contundente graças
ao elevado estado de concentração e aos efeitos pernósticos de um monopólio
cada vez mais insustentável.
Enquanto isso, agentes do Direito, em especial do Ministério Público,
sentem-se insuflados pelos meios de comunicação a subverter o real significado
de eventos históricos de nossa tumultuada vida política. Para ilustrar à perfeição,
encontramos ampla repercussão na imprensa dessa injuriosa frase à história do
Brasil, proferida pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel: “O
mensalão é o maior escândalo da história do Brasil”. Será mesmo? Ou por trás de
tão absurda declaração não existe a vaidade escancarada de se sentir partícipe
de evento de tão grande magnitude?
Ainda bem que o ilustre procurador não é autor de livros didáticos de
história usados por estudantes do ensino fundamental; do contrário, milhões de
crianças e jovens aprenderiam que o processo em vias de julgamento no STF
eclipsou em importância nada menos que o escândalo de 1954, urdido por Carlos
Lacerda (provavelmente o melhor aprendiz de Nicolau Maquiavel da política
brasileira recente) para derrubar Getúlio Vargas e que, ao final, custou-lhe a
vida, a eternização da expressão “mar de lama” e a beleza poética da
carta-testamento do presidente suicida, certamente um dos mais importantes
documentos políticos da história do Brasil.
Considerar o mensalão “o maior escândalo da história” é transformar os
dois golpes de Estado ocorridos em 1955, ainda na esteira do suicídio de
Vargas, em não mais que tempestades em copo d’água.
Dever divino
Poderia aproveitar o gancho e discorrer por alguns outros episódios que
facilmente seriam impostos pelos fatos para ganhar a medalha de ouro, o lugar
máximo do pódio de nossas crises e escândalos políticos: a chamada Intentona
Comunista dos idos de 1935; o golpe militar que apeou do poder o presidente
João Goulart e instaurou uma ditadura cruel (nada de “ditabranda”, como
preferem alguns) que ceifou 20 anos da vida brasileira, exilou intelectuais,
podou a criação artística, instaurou julgamentos sumaríssimos nos famigerados
DOI-CODIs; e as imagens ainda vívidas da esteira de escândalos que envolveram
personagens carimbados de nossa história recentíssima, como Fernando Collor de
Mello, Pedro Collor, PC Farias, os Jardins da Babilônia recriados na Casa da
Dinda, o Fiat Elba amarelo, a Operação Uruguay – todos episódios que culminaram
com o primeiro impeachmentde um presidente do Brasil, legitimamente eleito e
legitimamente destituído do cargo.
Quer dizer, então, que nenhum desses eventos nefastos e seus terríveis
desdobramentos não passaram de meros exercícios mentais, meros esboços de
escândalos e crises políticas ante a AP-470? Sim, mas na abalizada visão
jurídica do procurador-geral da República Roberto Gurgel tudo isso foi, vamos
dizer, fichinha. A tese do senhor procurador-geral é por demais impertinente e
falseia a história como um todo – porque o que falseia a parte, falseia o todo.
Nada contra o procurador-geral se equivocar. Nada mais natural, nada
mais humano. Mas não deixa de ser curioso observar que esse seu equívoco de
julgamento é realmente fichinha se comparado aos longos três anos que Sua
Excelência consumiu para se posicionar ante os robustos resultados apresentados
pelas operações da Polícia Federal de nomes Vegas e Monte Carlo, e que
culminaram na prisão do meliante-mor Carlinhos Cachoeira, na cassação do
mandato do senador Demóstenes Torres, e que deve levar ao fio da navalha o
mandato do governador goiano Marconi Perillo, além de manchar reputações de
personagens de menor projeção política.
O problema é a forma entusiástica com que a grande imprensa encampou a
declaração do procurador-geral: repercutiu em primeiras páginas, foi à escalada
dos telejornais noturnos, recebeu o destaque que as frases grandiloquentes
costumam ganhar por parte dos ditos colunistas de política. Mas não ficou por
aí. Com essa frase sobre “o maior escândalo da história” se turbinou na mídia
uma nova fase do game “Detonando o mensalão”: retrospectivas, operações Lázaro
(aquela que ressuscita mortos-vivos políticos) e se colocou, do cabo à lâmina,
a faca nos pescoços de nossos supremos julgadores, os integrantes do STF.
O poeta e filósofo romano Quinto Horácio Flaco (65 a.C.-8 d.C.) foi
contundente quando afirmou: “Ousa saber! Começa!” (Sapere aude!)
E ousar saber e começar nada mais é que o irrecusável convite a que
saiamos da estagnação mental e partamos para o conhecimento das leis, deixando
ao largo todas as pressões – desde aquelas que gritam mais que mil comícios do
III Reich nazista até as que, ao amparo da liberdade de imprensa, exercem seu
divino dever de usar a liberdade de pressão para fazer valer suas teses,
ideologias e mesmo anseios tardios por vingança, aquele velho prato que na
literatura anglo-saxã sempre deveria ser servido frio.
IN “Observatório de
Imprensa” – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_imprensa_seletiva_1