O PNDH-3 é fruto de um
extenso processo democrático sem precedentes na História do Brasil e, ouso
dizer, do mundo.
Thamy Pogrebinschi
Muita celeuma tem causado o decreto presidencial que promulgou o III
Programa Nacional de Direitos Humanos, o PNDH-3. A celeuma é tanta que se
perdeu de vista o foco da questão.
Ficamos tão cegos pela fumaça que nos esquecemos de averiguar de onde
vem o fogo - ou se ele existe de fato.
O PNDH-3 é fruto de um extenso processo democrático sem precedentes na
História do Brasil e, ouso dizer, do mundo.
Estudiosos internacionais da democracia e dos processos democráticos de
formulação de políticas públicas esforçam-se para criar modelos teóricos e
produzir simulações hipotéticas daquilo que o Brasil tem feito na prática:
aprofundar o grau de participação e deliberação das decisões políticas por meio
de uma aproximação entre o Estado e a sociedade civil.
Encontra-se em curso no Brasil um processo grandiosamente democrático de
formulação de políticas públicas que, infelizmente, ainda é pouco conhecido até
mesmo pelos estudiosos das instituições políticas: as conferências nacionais de
políticas públicas. Estas consistem em instâncias de deliberação e participação
destinadas a prover diretrizes para a formulação de políticas públicas em
âmbito federal. São convocadas pelo Executivo, organizadas tematicamente, e
contam com participação paritária .
As conferências nacionais são em regra precedidas por etapas municipais,
estaduais ou regionais. Os resultados agregados são objeto de deliberação na
conferência nacional, e da qual resulta, em regra, um documento contendo
diretrizes para a formulação de políticas públicas. Entre 1941 e 1988 foram
realizadas no Brasil 12 conferências nacionais.
Entre 1988 e 2008 foram realizadas no país 80 conferências nacionais, 73
delas com claro caráter deliberativo e normativo. No ano passado mais oito
conferências foram realizadas.
O PNDH-3 é resultado claro e inconteste das deliberações de cerca de 55
conferências realizadas durante o governo Lula. Conferências estas que abrangem
não apenas aquelas específicas sobre direitos humanos (que aconteceram em 2003,
2004, 2006 e 2008, em suas 8aa 11aversões, respectivamente), mas também
inúmeras outras em áreas como direitos das pessoas idosas, direitos das pessoas
com deficiência, direitos da criança e do adolescente, políticas públicas para
mulheres, povos indígenas, promoção da igualdade racial, além da inovadora
conferência sobre gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, para não
mencionar as várias conferências de assistência social, desenvolvimento rural, meio
ambiente, educação, segurança pública, entre muitas outras.
Daí a transversalidade do PNDH-3, palavrona que muitos têm tomado como
palavrão e motivo de crítica ao governo.
Os direitos humanos são necessariamente um tema transversal, que
atravessa, por sua natureza, muitas outras áreas. Em pesquisa por mim
coordenada no Iuperj, constatamos que as 11 conferências nacionais de direitos
humanos até hoje realizadas resultaram em diretrizes que atravessam boa parte
dos 32 temas que até hoje foram objeto destes processos participativos de
formulação de políticas públicas. E mais: constatamos também que se classifica
na área de direitos humanos a maioria das proposições legislativas em trâmite
no Congresso que possuem nexo com as diretrizes das diversas conferências
nacionais. Não há como se negar a transversalidade do tema.
E não há como se negar também que o PNDH-3 é resultado de um extenso
processo democrático, que envolveu diretamente mais de quinze mil pessoas que
interferiram na formulação desta política pública, que ganhou forma de decreto,
sendo assinada por uma mão, endossada por trinta e três (os ministérios
diretamente envolvidos), porém redigida por milhares.
O atual governo não tem nenhum problema em admitir que o PNDH-3 dá
continuidade ao 1 e ao 2, que foram editados em governos anteriores, 1996 e
2002, respectivamente. Os planos anteriores consagraram os direitos civis e
políticos e em seguida os direitos econômicos, sociais e culturais. O PNDH-3
avança na história da democracia mundial, garantindo os direitos participativos
e deliberativos, além dos novos e inovadores direitos à diferença, à verdade e
à memória. No que tange à formulação de políticas públicas, nunca Estado e
sociedade civil estiveram tão próximos em nossa história democrática.
Talvez estejam tão perto, aliás, que nem conseguimos ver. É o que
acontece quando se perde o foco.
Thamy Pogrebinschi – Cientista política e
professora da UERJ – 29.01.2010
IN Jornal “O Globo” – http://led.iesp.uerj.br/wp-content/uploads/2011/04/Em-defesa-da-Democracia.pdf