terça-feira, 21 de agosto de 2012

Microcrédito, o negócio da miséria


Ao emprestar somas módicas a fim de possibilitar o desenvolvimento de uma atividade produtiva, o microcrédito deveria emancipar os mais pobres. Mas, na Índia, a lógica dos acionistas triunfou: empresas de microcrédito constroem fortunas vampirizando os mais vulneráveis.

Cédric Gouverneur
Laksmi e sua esposa Rama não aguentavam mais confeccionar, dia após dia, quase milbeedies(cigarros aromáticos), em doze horas de trabalho, na esperança de ganhar 70 rupias (R$ 2,50) ao final do mês. Esse casal com duas crianças fez então um empréstimo de 5 mil rupias (R$ 180) em uma empresa de microcrédito para abrir uma minúscula lojinha de noz de bétele na periferia de Warangal, no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. Isso deveria permitir-lhes uma vida melhor, reembolsando 130 rupias por semana. Mas, conta Rama, Laksmi ficou doente: “Durante quatro meses, ele não pôde trabalhar”. Os vencimentos se acumularam e, com eles, os juros. Os vizinhos começaram a ficar agressivos, pois as empresas de microcrédito colocaram em ação um sistema de corresponsabilidade: quando um devedor falha, os outros devem reembolsar. Assediado, aterrorizado, o casal contratou um segundo empréstimo para pagar o primeiro. Depois um terceiro para pagar o segundo... Um total de cinco empréstimos, pelo equivalente a cerca de R$ 2.300.
Os credores acabaram por literalmente acampar diante do casebre de Laksmi e Rama. Depois – em completa ilegalidade – tomaram a lojinha de bétele, o fogão, as joias de ouro e finalmente a máquina de costura com a qual uma das filhas do casal, Eega, de 20 anos, fazia roupas para revender. “Você é bonitinha, vá se prostituir!”, disseram os credores quando ela perguntou como sua família iria conseguir comer. Humilhada, ela se imolou com fogo no dia 28 de setembro de 2010.
“Os pobres têm acesso a um crédito fácil, na porta de casa”, resume Reddy Subrahmanyam, na chefia do ministério do Desenvolvimento Rural do estado. “Mas a que custo! Com os impostos, as taxas de juros beiram os 60%.” Seguindo o espírito de seu inventor, o bengali Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz, o microcrédito deveria permitir a aquisição de uma nova fonte de renda, e não atuar como um complemento. Uma nuance fundamental, o microcrédito indiano se assemelha agora aos créditos de consumo: “Os mais pobres contratam créditos para pagar gastos médicos, um dote, um casamento, até uma televisão ou uma peregrinação”, fulmina Subrahmanyam. “O microcrédito deveria emancipar [empower] os mais desfavorecidos, devolver-lhes a dignidade. Agora ele os está afundando na miséria.” E em vez de criar solidariedades, a corresponsabilidade dos devedores implode as comunidades dos vilarejos.

Andhra Pradesh concentra um quarto dos microcréditos privados do país, ou seja, 52 bilhões de rupias (R$ 1,866 milhão) emprestados a 6,25 milhões de lares em 2010.1 “Nos anos 2000”, conta Abhay N., editor do jornal on-line India Microfinance, “o governo regional lançou diversos programas sociais para conter a influência dos maoístas”, cuja guerrilha é ativa na zona rural.2 O estado incitou os bancos a fazer empréstimos aos habitantes dos vilarejos reunidos no seio de grupos de cooperação (self-help groups, ou SHG), ele mesmo se encarregando de uma parte dos juros.
No vilarejo de Dharmasagaram, no distrito de Warangal, uma mãe de família, Bhergya, conta como pôde, graças ao SHG, fazer um empréstimo de pouco mais de R$ 2.300 no banco, com uma taxa de 12% (da qual 9% por conta do Estado) para adquirir um riquexó (carro de duas rodas para transporte de passageiros a tração humana) que ela depois alugou ao irmão: “O aluguel do riquexó me paga 6 mil rupias (R$ 215) líquido por mês, e eu devo reembolsar 2.700”, indica ela, satisfeita.
Mas empresas privadas utilizaram essa rede para abordar os habitantes dos vilarejos e vender créditos para consumo segundo o modelo europeu. Esse desvio se explica pela evolução da maioria dos setenta órgãos de microcrédito indianos, agora guiados por uma só lógica, a do lucro. Número um do setor, a SKS foi fundada em 1998 por Vikram Akula, um trabalhador social diplomado na Universidade de Chicago. A SKS era originalmente uma organização sem fins lucrativos. “Esse statusjurídico a impedia de emprestar dinheiro suficiente”, justifica o porta-voz da empresa na sede social em Hyderabad. “Akula decidiu então, em 2005, fazê-la evoluir para uma companhia financeira não bancária.” Em direito indiano, uma empresa empresta dinheiro, mas não pode receber depósitos. Assim como todos os patrões de órgãos de microcrédito contatados, Akula está “muito ocupado” para nos receber.
Uma ordem recente do governo de Andhra Pradesh (Partido do Congresso) proíbe os coletores de ir ao domicílio de seus devedores e condiciona a contratação de novos empréstimos ao aval das autoridades. Medidas julgadas insuficientes pela oposição: o Telugu Desam Party (TDP), no poder em Andhra Pradesh entre 1999 e 2004, incita os milhões de devedores a parar de pagar.
Na periferia de Hyderabad, encontramos Kaushalya e suas vizinhas. Essa enérgica avó fez um empréstimo para cuidar da saúde de seu marido paralítico. Incapaz de reembolsar, ela deveria ter sido assediada pelas outras devedoras do bairro, obrigadas a pagar em seu lugar. Mas essas senhoras decidiram se unir no enfrentamento e não pagar mais nada: “Não demos mais nada desde novembro de 2010”, dizem elas ao mesmo tempo orgulhosas e graves em seus saris. “As pessoas da empresa de crédito nos ameaçam, dizem que vamos para a prisão, mas nada acontece, a gente nem dá mais atenção a elas!” Tais exemplos de solidariedade nos vilarejos se multiplicam em todo o estado. E as taxas de reembolso afundam, passando de 97% para 20%, até 10%... Enfim, “investigações estão em andamento sobre uns cinquenta suicídios. Os responsáveis pelo assédio deverão responder por seus atos diante dos tribunais”, promete Subrahmanyam.

Sentindo o vento mudar, 39 dirigentes da SKS liquidaram suas ‘stock options’ desde o começo da crise, no fim de 2010.Segundo nossas informações, as empresas de microcrédito se instalam agora no interior profundo, nas cidades dos indígenas Adivasis: isolados, miseráveis, analfabetos, eles são menos suscetíveis a desconfiar... A microfinança indiana poderia tomar para si a tirada do humorista Alphonse Allais (1854-1905): “É preciso procurar o dinheiro onde ele está: com os pobres. Eles não têm muito, mas são muitos...”.




1 Narasimhan Srinivasan, “Microfinance India: state of the sector report” [Microfinança na Índia: relatório sobre o estado do setor], SAGE Publications India Pvt Ltd, Nova Déli, 2010.
2 Ler “En Inde, expansion de la guérilla naxalite” [Na Índia, expansão da guerrilha naxalita], Le Monde Diplomatique, dez. 2007.
3 Express India, Nova Déli, 11 fev. 2011.


Cédric Gouverneur – Jornalista – 03.04.2012
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” – http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1150






Microcrédito, maxissolução?


Ninguém pode estar contra projetos dessa ordem. Os microcréditos fazem parte do conjunto de políticas sociais que permitiram ao governo Lula se reeleger. Mas é preciso avaliar a real dimensão do que podem produzir, porque às vezes são atribuídas propriedades mágicas ao microcrédito.

Emir Sader
Cada vez que um prêmio internacional – ainda mais o Nobel – é entregue a alguém vinculado a problemas sociais, suscita simpatia e ampla repercussão, porque se trata afinal dos principais problemas que vive a humanidade. É o caso do Nobel atribuído a Muhammad Yunus, chamado de “banqueiro dos pobres”, pelos projetos de microcréditos de sua autoria.
Ninguém pode estar contra projetos dessa ordem. Os microcréditos fazem parte do conjunto de políticas sociais que permitiram ao governo Lula se reeleger. Mas é preciso avaliar a real dimensão do que podem produzir, porque às vezes são atribuídas propriedades mágicas ao microcrédito.
Dois países internacionalmente conhecidos pela difusão do microcrédito – Bangladesh e Bolívia – continuam a estar entre os mais pobres do mundo. Bangladesh está situado no lugar 139 pelos índices de desenvolvimento humano, com 49% da sua população de 137 milhões situada abaixo da linha de pobreza. Na sede do famoso banco de Yunus, cerca de 80% da população vive com menos de 2 dólares diários. Um estudo do Programa de Desenvolvimento da ONU mostrou que, em 1990, o total de microcréditos em Bangladesh representava apenas 0,6% do total de créditos no país.
Os microcréditos podem ser úteis em certas circunstâncias, mas a realidade diz que ninguém consegue libertar-se economicamente pedindo dinheiro emprestado – senão nossos países estariam todos salvos. Conforme se desenvolveu, o microcrédito foi se tornando um grande negócio, sob controle dos grandes bancos. As taxas de juros do microcrédito para mulheres na Índia são muito mais elevadas do que as taxas normais dos bancos tradicionais. Elas pagam entre 24 e 36%, enquanto um grande empresário pode obter empréstimos pagando entre 6 e 8% nos grandes bancos.
O problema principal em países que gozam extensamente do microcrédito, sem que isso melhore a situação da massa da população, é a falta de acesso à terra. O custo da terra é muito superior ao que um microcrédito pode permitir.
Além disso, quando uma agencia internacional libera recursos para o microcrédito, antes que ele chegue a seu destinatário, consultores, ONGs, gerentes de bancos já receberam sua parte e quando chega a uma humilde senhora numa comunidade rural, o custo é proibitivo – segundo P. Sainath, pesquisador da Índia. 
Enquanto o economista Bob Pollin salienta que os tigres asiáticos, como a Coréia do Sul e Taiwan, cresceram como nenhum outro país, centrados numa linha diferente: em programas de créditos públicos para apoio ao desenvolvimento industrial, com criação de empregos, elevação da arrecadação, distribuição de renda e modernização tecnológica, aproximando-se agora do nível de vida dos países europeus. E complementa o jornalista norte-americano Alexander Cockburn: “Os paises pobres precisam adaptar o modelo de macro-crédito do sudeste asiático para promover não apenas as exportações, mas reforma agrária, cooperativas comerciais, infra-estrutura e, sobretudo, empregos decentes.”
E acrescenta que o problema com os programas de créditos públicos subsidiados é que eles se opõem frontalmente ao credo neoliberal e por isso não costumam nem ser implementados e, onde eles existem, não são divulgados em outros países. “É por isso que Yunus recebeu o Premio Nobel, enquanto os que lutam pela reforma agrária recebem balas na cabeça” – conclui Cockburn, de forma dramática.


Emir Sader – Sociólogo e professor – 22.11.2006