Em novo livro, Marcio Pochmann sustenta que o
resgate da condição de pobreza e o aumento do padrão de consumo não tiram por
si só a maioria da população emergente da classe trabalhadora. Para o
presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é preciso a
politização classista desse fenômeno para aprofundar a transformação da
estrutura social, sem a qual a massa popular em emergência ganha um caráter
predominantemente mercadológico, individualista e conformista sobre a natureza
e a dinâmica das mudanças socioeconômicas no Brasil.
Redação Carta Maior
O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), Marcio Pochmann está lançando, pela Boitempo, um estudo sobre
a mobilidade na base da pirâmide social brasileira durante o início do século
XXI. Nova classe média? analisa as recentes transformações na
sociedade e refuta a idéia de surgimento de uma nova classe no País, muito
menos a de uma nova classe média.
O resgate da condição de pobreza e o aumento do
padrão de consumo, afirma Pochmann, não tiram a maioria da população emergente
da classe trabalhadora. Para ele é preciso a politização classista do fenômeno
para aprofundar a transformação da estrutura social, sem a qual a massa popular
em emergência ganha um caráter predominantemente mercadológico, individualista
e conformista sobre a natureza e a dinâmica das mudanças socioeconômicas no
Brasil.
Pochmann faz nesse livro “uma reflexão sobre
transformações recentes ocorridas no país, com a volta do crescimento
econômico, e as características das ocupações e das relações de trabalho na
base da pirâmide social. E em cada um dos capítulos, defende pontos de vistas
que não são consensuais entre os especialistas, o que torna ainda mais
importante a sua leitura”, afirma José Dari Krein, professor do Instituto de
Economia da Unicamp e autor do texto de orelha.
Em contraposição à visão predominante, que busca
explicar o atual processo pela emergência de uma nova classe média, o livro
mostra que, apesar dos avanços recentes, a dinâmica das ocupações e do rendimento
requer algo mais do que a inserção das pessoas no mercado de consumo.
A análise dos dados mais recentes mostra que a
melhora dos indicadores na distribuição da renda do trabalho e de seu aumento
na participação da riqueza gerada concentra-se, fundamentalmente, na base da
pirâmide social, o que revela também os seus limites.
O economista aponta que no Brasil as ocupações
formais cresceram fortemente durante a primeira década de 2000, especialmente
nos setores que têm uma remuneração muito próxima ao salário mínimo: 94% das
vagas criadas entre 2004 e 2010 foram de até 1,5 salário mínimo. Juntamente com
as políticas de apoio às rendas na base da pirâmide social brasileira, como
elevação do valor real do salário mínimo e massificação da transferência de
renda, houve o fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho.
“O adicional de ocupados na base da pirâmide social
reforçou o contingente da classe trabalhadora, equivocadamente identificada
como uma nova classe média. Talvez não seja bem um mero equívoco conceitual,
mas expressão da disputa que se instala em torno da concepção e condução das
políticas públicas atuais”, sugere Pochmann na apresentação do livro.
Nesse sentido, o autor aponta o fortalecimento dos
planos privados de saúde, educação, assistência e previdência, entre outros,
como consequência de uma reorientação das políticas públicas para a perspectiva
fundamentalmente mercantil, baseada na interpretação da classe média (nova).
Com isso, recoloca-se a necessidade de construir serviços públicos de
qualidades e de uma efetiva estruturação do mercado de trabalho (emprego de
qualidade e protegido) em nosso país, aspectos decisivos para enfrentar a
precariedade no setor.
Trecho da apresentação
“Mesmo com o contido nível educacional e a limitada
experiência profissional, as novas ocupações de serviços, absorvedoras de
enormes massas humanas resgatadas da condição de pobreza, permitem inegável
ascensão social, embora ainda distante de qualquer configuração que não a da
classe trabalhadora. Seja pelo nível de rendimento, seja pelo tipo de ocupação,
seja pelo perfil e atributos pessoais, o grosso da população emergente não se
encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser claramente identificados
como classe média.
Associam-se, sim, às características gerais das
classes populares, que, por elevar o rendimento, ampliam imediatamente o padrão
de consumo. Não há, nesse sentido, qualquer novidade, pois se trata de um
fenômeno comum, uma vez que trabalhador não poupa, e sim gasta tudo o que
ganha. Em grande medida, o segmento das classes populares em emergência
apresenta-se despolitizado, individualista e aparentemente racional à medida
que busca estabelecer a sociabilidade capitalista.
(...) Percebe-se sinteticamente que a despolitizadora
emergência de segmentos novos na base da pirâmide social resulta do despreparo
de instituições democráticas atualmente existentes para envolver e canalizar
ações de interesses para a classe trabalhadora ampliada. Isto é, o escasso
papel estratégico e renovado do sindicalismo, das associações estudantis e de
bairros, das comunidades e base, dos partidos políticos, entre outros.”
Redação
Carta Maior – 27.04.2012
De
repente, classe C
Sou ex-pobre. Todos querem me vender
geladeira agora. O trem ainda quebra todo dia, o bairro alaga. Mas na TV até
trocaram um jornalista para me agradar
Leandro Machado
Eu me
considerava um rapaz razoavelmente feliz até descobrir que não sou mais pobre e
que agora faço parte da classe C.
Com a informação, percebi aos poucos que eu e minha nova classe
somos as celebridades do momento. Todo mundo fala de nós e, claro, quer nos
atingir de alguma forma.
Há empresas, publicações, planos de marketing e institutos de
pesquisa exclusivamente dedicados a investigar as minhas preferências: se gosto
de azul ou vermelho, batata ou tomate e se meus filmes favoritos são do Van
Damme ou do Steven Seagal.
(Aliás, filmes dublados, por favor! Afinal, eu, como todos os
membros da classe C, aparentemente tenho sérias dificuldades para ler com
rapidez essas malditas legendas.)
A televisão também estudou minha nova classe e, por isso, mudou
seus planos: além do aumento dos programas que relatam crimes bizarros
(supostamente gosto disso), as telenovelas agora têm empregadas domésticas como
protagonistas, cabeleireiras como musas e até mesmo personagens ricos que moram
em bairros mais ou menos como o meu.
A diferença é que nesses bairros, os da novela, não há ônibus que
demoram duas horas para passar nem buracos na rua.
Um telejornal famoso até trocou seu antigo apresentador, um homem
fino e especialista em vinhos, por um âncora, digamos, mais povão, do tipo que
fala alto e gosta de samba. Um sujeito mais parecido comigo, talvez. Deve estar
lá para chamar a minha atenção com mais facilidade.
As empresas viram a luz em cima da minha cabeça e decidiram que
minha classe é seu novo alvo de consumo. Antes, quando eu era pobre, de certo
modo não existia para elas. Quer dizer, talvez existisse, mas não tinha nome
nem capital razoável.
De modo que agora elas querem me vender carros, geladeiras de
inox, engenhocas eletrônicas, planos de saúde e TV por assinatura. Tudo em
parcelas a perder de vista e com redução do IPI.
E as universidades privadas, então, pipocam por São Paulo. Os
cursos custam R$ 200 reais ao mês, e isso se eu não quiser pagar menos,
estudando à distância.
Assim como toda pasta de dente é a mais recomendada entre os
dentistas, essas universidades estão sempre entre as mais indicadas pelo
Ministério da Educação, como elas mesmas alardeiam. Se é verdade ou não, quem
pode saber?
E se eu não acreditar na educação privada, posso tentar uma
universidade pública, evidentemente. Foi o que fiz: passei numa federal, fiz a
matrícula e agora estou em greve porque o campus cai aos pedaços. Não tenho nem
sala de aula.
Não que eu não esteja feliz com meu novo status de consumidor, não
deve ser isso. (Agora mesmo escrevo em um notebook, minha TV tem cem canais de
esporte e minha mãe prepara a comida num fogão novo; se isso não for
felicidade, do que se trata, então?)
O problema é que me esforço, juro, mas o ceticismo ainda é minha
perdição: levo 2h30 para chegar ao trabalho porque o trem quebra todos os dias,
meu plano de saúde não cobre minha doença no intestino e morro de medo das
enchentes do bairro.
Ou seja, ao mesmo tempo em que todos querem me atingir por meu
razoável poder de consumo, passo por perrengues do século passado. Eu e mais de
30 milhões de pessoas -não somos pobres, mas classe C.
Deixa eu terminar por aqui o texto, porque daqui a pouco vão me
chamar de chato ou, pior, de comunista. Logo eu, que só li Marx na versão
resumida em quadrinhos. Fazer o quê, se eu gosto é de autoajuda?
Leandro Machado – Estudante de letras na Universidade Federal de São
Paulo, mora em Ferraz de Vasconcelos (SP) e escreve no blog Mural, da Folha – 15.07.2012