Mais do que o
inestimável serviço de inscrever na memória nacional os nomes e os paradeiros
dos desaparecidos e de seus verdugos, trata-se de pôr à disposição dos
brasileiros novos elementos para interpretar seu passado recente. O efeito
principal poderá ser o da elucidação do que significa um regime de exceção com
a implicação de que os que ocuparam sua direção devem ser chamados pelos nomes
apropriados: ditadores, e não “presidentes”, como se pudesse haver alguma
analogia com os que ocuparam a direção do País por força de procedimentos
legítimos.
Renato Lessa
Há coisa de algumas semanas, um personagem sombrio, egresso do esgoto da
memória nacional, deu seu testemunho a respeito do que andou a fazer durante a
vigência do regime de exceção, implantado em março de 1964. Ex-delegado de
polícia, o personagem ganhou notoriedade pela força de suas revelações sobre
torturas, assassinatos e ocultamento de corpos de militantes da resistência ao
descalabro. O livro encontra-se nas boas casas do ramo, e deve ser lido por
quem tem estômago forte e um mínimo de apego à memória histórica. Se apenas,
digamos, 10% do que diz correspondem à verdade, o efeito é estarrecedor.
O saudoso deputado Ulysses Guimarães bem sabia do que estava a falar
quando declinou seu ódio absoluto às ditaduras. Se vivo estivesse, e houvesse
lido o relato do abjeto personagem, teria ali encontrado fartos motivos para
sua aversão, que incidia sobre um regime que fez do suplício e da eliminação
física prática corrente e meio de sustentação. Não é preciso aderir ao modismo
das teorias a respeito da “biopolítica” para reconhecer que regimes políticos
são inteligíveis pelo que fazem com os corpos de seus súditos. Regimes cuja
sustentação exige o suplício e o assassinato de oponentes têm tradicional
acolhida conceitual na história do pensamento político: são regimes despóticos,
tiranias e estados de exceção.
A Comissão da Verdade, instalada há poucos dias pela presidente Dilma
Rousseff, tem diante de si um desafio e uma oportunidade decisivos para fixar
uma narrativa a respeito de história recente do país. Há duas ordens imediatas
de objetivos, para a fixação de tal narrativa, de natureza incontornável: (1)
elucidar, tanto quanto for possível, os parentes, amigos e o País sobre o
paradeiro dos desaparecidos e (2) desfazer a funda assimetria instituída pelos termos
da anistia, que tornou públicos os nomes e os atos dos presos políticos e
ocultou os de seus perpetradores.
A anistia concedida em 1979 abrangeu, além dos então presos políticos,
possíveis perpetradores de “crimes conexos”. Pelo eufemismo, estavam cobertas
as ações do aparelho de repressão à dissidência política. A assimetria reside
no fato de que a anistia concedida ao primeiro grupo – opositores ao regime -,
por razão lógica, só pode ser concedida aos que reconhecida e publicamente
praticaram atos julgados atentatórios à segurança nacional. É claro que isso
não impede que a eventual descoberta posterior de ocorrência de ato dessa
natureza tenha como implicação a aplicação da anistia. Mas o fato é que a
viabilidade do usufruto da anistia por parte da esquerda exigiu a ostensão
personalizada dos beneficiados.
Os perpetradores de “crimes conexos” foram agraciados por uma anistia
generalizada, inespecífica e despersonalizada. Suas identificações não foram
definidas como necessárias para o usufruto do perdão. Trata-se, é evidente, de
assimetria forte e apenas mentes paranoicas podem supor que a possível
reposição da simetria seja algo aparentado a “revanche”.
Mas, além desses dois objetivos , há ainda a valiosa oportunidade para a
elucidação da natureza do regime vigente no País entre 1964 e 1985. Mais do que
o inestimável serviço de inscrever na memória nacional os nomes e os paradeiros
dos desaparecidos e de seus verdugos – em seus respectivos nichos -, trata-se
de pôr à disposição dos brasileiros novos elementos para interpretar seu
passado recente. O efeito principal poderá ser o da elucidação do que significa
um regime de exceção com a implicação de que os que ocuparam sua direção devem
ser chamados pelos nomes apropriados: ditadores, e não “presidentes”, como se
pudesse haver alguma analogia com os que ocuparam a direção do País por força
de procedimentos legítimos.
Independentemente do juízo que se possa fazer a respeito de Dilma
Rousseff como chefe de governo, seu gesto como chefe de Estado inscreve-se em
um dos momentos fortes da história republicana. A qualidade da peça lida pela
presidente e a condensação política presente no ritual – mais do que completo e
generoso, a ponto de incluir um presidente indigno e impedido – parecem à
altura do fato nada trivial de termos na chefia de Estado – e no comando
supremo das Forças Armadas – alguém que sentiu no próprio corpo o que significa
uma ditadura. O consenso reunido representa o reconhecimento desse aspecto
crucial.
O desconforto dos chefes militares na cerimônia mostra, lamentavelmente,
quanto as forças sob seu comando têm dificuldade em se distinguir do que foi
feito por alguns de seus antecessores. A cena beira o absurdo, pois afinal nada
há no comportamento corrente dos militares brasileiros que autorize temor
corporativo diante das atribuições da Comissão.
Renato Lessa – Professor titular de teoria política da UFF, investigador associado do instituto de ciências sociais da Universidade de Lisboa e Presidente do Instituto Ciência Hoje – 20.05.2012
IN “O Estado de São Paulo” (Aliás) – http://m.estadao.com.br/noticias/suplementos,chamando-as-coisas-pelos-seus-nomes,875184.htm