sábado, 4 de agosto de 2012

A mão no vespeiro


O governo quer alterar as regras da aposentadoria do funcionalismo.
A distância entre esses dois mundos - o dos servidores federais e o do INSS - é de fato enorme quando se olha para os principais números da Previdên­cia. Do lado público, 958 mil servidores aposentados receberão neste ano 53 bi­lhões de reais. No INSS, 24 milhões de cidadãos receberão 43 bilhões de re­ais, e praticamente 70% dos aposenta­dos recebem até um salário mínimo ao mês.

Luiz Antonio Cintra
Discussão em torno das regras que regulam a aposentadoria dos servidores públi­cos federais entrou na pauta do Congresso Nacional, após quatro anos hibernando diante da resistência dos sindicatos e lideranças partidárias ligadas ao funcionalismo. Agora virou prioridade para o governo Dilma Rous­seff, que concedeu ao PL 1.992/07 a tra­mitação em regime de urgência.
A expectativa do governo é aprovar a medida com rapidez para que o proje­to siga ao Senado após o recesso e entre em vigor ainda no primeiro trimestre de 2012. Com isso, os servidores contrata­dos por concurso a partir de 2012 entra­riam sob as novas regras, alterando a tra­jetória do déficit da previdência no mé­dio prazo, que tem crescido ano a ano. Em 2011, a expectativa é que chegue a 57 bilhões de reais, ante 51 bilhões de 2010.
Por causa do regime de urgência, os deputados federais terão 45 dias para apreciar o esboço de lei ordinária, que desde a segunda-feira 21 tranca a pau­ta de votações da Câmara. Com a me­dida, o governo pretende igualar o te­to da aposentadoria dos futuros ser­vidores ao dos aposentados da inicia­tiva privada que recebem pelo Insti­tuto Nacional de Seguridade Social (INSS), hoje em 3.691,41 reais. Os ser­vidores teriam ainda a opção de ade­rir a um fundo de previdência comple­mentar, o Fundo de Previdência Com­plementar do Servidor Público Fede­ral (Funpresp), previsto no projeto. A regulação prevê uma contribuição di­vidida em partes iguais, até o máximo de 7,5% para a União. Caberá aos ges­tores do Funpresp aplicar os recursos no mercado financeiro, como fazem os fundos de pensão, de modo a garantir os recursos necessários para bancar as aposentadorias futuras. O gover­no diz que com o acréscimo dos rendi­mentos do fundo a aposentadoria dos servidores equivalerá ao provento sob as regras atuais, que usa a média sala­rial dos últimos anos da ativa. Para a União, representaria uma economia, já que hoje ela contribui com 22% do sa­lário e os servidores com 11%.
Segundo especialistas, a pressa do governo seria uma estratégia para evi­tar que os sindicatos dos servidores ­historicamente próximos do PT, mas também do PDT, PSB e PCdoB, todos da base governista - impeçam a apreciação da medida, ainda que os efeitos se res­trinjam aos funcionários contratados a partir da data da promulgação da lei.
Os defensores da medida, por sua vez, argumentam que o PL trata de seguir o espírito da Emenda Constitucional 41, aprovada no primeiro mandato do go­verno Lula, que pretendia aproximar os regimes de previdência do setor público e aquele dos trabalhadores da iniciativa privada, que recebem pelo INSS.
A distância entre esses dois mundos - o dos servidores federais e o do INSS - é de fato enorme quando se olha para os principais números da Previdên­cia. Do lado público, 958 mil servidores aposentados receberão neste ano 53 bi­lhões de reais. No INSS, 24 milhões de cidadãos receberão 43 bilhões de re­ais, e praticamente 70% dos aposenta­dos recebem até um salário mínimo ao mês, Índice que sobe a mais de 90% no caso das aposentadorias rurais.
"Esses números foram a fonte que ins­pirou a buscar a convergência das regras. Não é justo que haja essa discrepância de regras e regimes", diz Helmut Schwarzer, ex-secretário do Ministério da Previdên­cia Social, hoje pesquisador sênior em se­guridade social da Organização Interna­cional do Trabalho (OIT), baseado em Ge­nebra. Em 2007, Sehwarzer participou do grupo interministerial que elaborou o PL 1.992/07, com representantes dos ministé­rios da Previdência Social, Fazenda e Pla­nejamento. "Foi esse o sentido da Emen­da Constitucional 41, que entrou em vigor em 2004, com a qual a União passou a eco­nomizar até 0,5% do PIE ao ano, recursos que abriram espaço no Orçamento inclu­sive para ampliar politicas de proteção so­cial como o Bolsa Família", diz Schwar­zero Àquela altura, o governo preferiu dei­xar de lado a discussão em torno do siste­ma de previdência dos militares, que se­guirá com regras diferenciadas e não se­rá afetado pelo projeto.
Na ocasião, ficou evidente que o Funpresp teria condições de ganhar relevância fi­nanceira com o passar do tempo. Segun­do Schwarzer, a estimativa é que o fundo chegue a ocupar a quinta posição em volu­me de recursos em um prazo de 20 anos. Hoje equivaleria à posição ocupada pelo fundo de funcionários da Vale, o Valia, cujo patrimônio é de cerca de 14 bilhões de reais. Ainda que distante do primeiro co­locado, o Previ, cujos ativos somam mais de 150 bilhões de reais, trata-se de um vo­lume de recursos considerável.
Especialistas em contas públicas tam­bém veem com bons olhos o projeto de lei. "Hoje os aposentados do setor público re­cebem basicamente salário integral quan­do se aposentam, com pensões muito fa­vorecidas. E com o aumento da expecta­tiva de vida o setor público acaba pagan­do essas aposentadorias durante muitos anos", diz o economista Raul Veloso. "Es­sa situação aumenta muito os gastos da União e está fora de sintonia com o que se passa no INSS ou nas estatais. O PL cria uma trajetória de gasto muito diferente, ainda que no curto prazo represente al­gum custo extra para a União."
A análise do consultor Amir Khair se­gue na mesma direção. "O governo de­veria jogar com muita força. Seria uma vitória importante, pois o déficit do se­tor público é crescente", afirma o espe­cialista, para quem o regime geral, do INSS, seria sustentável, desde que se re­duzam a inadimplência, as licenças médicas 'e alguns "exageros" nas pensões. "Essa discussão se arrasta desde o início do governo Lula, mas parece que a so­ciedade acordou", explica Khair, que foi secretário de Finanças da Prefeitura de São Paulo na gestão de Luiza Erundina.
Os sindicatos de servidores públicos e al­guns parlamentares apresentaram sua ar­gumentação contrária ao PL. "Essa pro­posta não é boa nem para o Brasil nem pa­ra os servidores", diz o deputado Rober­to Policarpo (PT-DF), cuja trajetória polí­tica começou em um sindicato ligado aos servidores do Judiciário do Distrito Fede­ral. "O problema do déficit está nos servi­dores do Executivo, que desde os anos 90 passou por um desmonte. Com as terceiri­zações e demissões, a relação de servido­res da ativa e aposentados passou a ser de um para um, quando o desejável seria de três da ativa para cada aposentado. No Ju­diciário, onde cssa relação é de quatro pa­ra um, o problema não existe. Defendo o tratamento igual (entre servidores e aposentados do INSS), mas desde que seja pa­ra melhorar, não para piorar", diz o depu­tado, que sugere a retirada do regime de urgência para mais discussões.
Presidente do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal, Pedro Delarue também afirma que o projeto não deve ser aprovado. "O fun­cionalismo público é uma carreira dife­rente da do setor privado, com limita­ções e compromissos. osso regime é de dedicação exclusiva para o Estado, não podemos fazer 'bicos' ou ter dois empregos. Para conseguir um aumento, é pre­ciso que se crie uma lei, não basta pe­dir aumento ao chefe. Se cometer algum crime, a pena é maior quando se trata de um funcionário público. E a nossa con­tribuição (de 11%) incide sobre o salário da ativa, não sobre o teto da aposentado­ria, como no INSS", diz o sindicalista.
Para Delarue, a sociedade será a maior prejudicada no médio prazo, ca­so o PL vire lei. "Se não houver atra­tivos, não há como fisgar as melhores cabeças para atuar no Estado. Um mi­nistro do STF, por exemplo, que ganha no topo da carreira perto de 26 mil re­ais, contribui com 2,8 mil reais ao mês. O problema do INSS é que o patrimô­nio do FGTS foi dilapidado ao longo do tempo, por isso existe esse déficit."
Assim como o Sindifisco Nacional, outros sindicatos de servidores sinali­zaram a intenção de recorrer à Justiça caso a mudança seja aprovada. Entre os pontos mais criticados está a obri­gatoriedade de terceirizar para a iniciativa privada a gestão do Funpresp.
"A expectativa é que eja aprovado nas próximas semanas", diz o deputa­do Ricardo Berzoini (PT- P). "Consi­deramos legítimas as críticas dos sin­dicatos, mas a bancada petista de mo­do geral aceitou o conceito. Como pre­cisaremos perto de 250 votos para aprovar, acho que não teremos proble­mas. A urgência justifica-se porque o governo tem a necessidade de contra­tar bastante no ano que vem."
Também da base, o deputado Silvio Costa (PTB-PE) defende a aprovação com veemência, inclusive por conside­rar um "escândalo" o modelo vigente. "Aprovar esse projeto é uma questão de responsabilidade pública. Ou resol­vemos esse problema ou vai faltar di­nheiro para pagar os aposentados."
Nas negociações recentes, contudo, o projeto original começou a sofrer altera­ções. De um lado, a necessidade de tercei­rizar a gestão "subiu no telhado". Além dis­so, também está em discussão fatiar o Fun­presp em três fundos, um para cada Poder.
Schwarzer, da OIT, critica as du­as alterações em negociação e recorda os princípios que nortearam a discus­são técnica. "A terceirização da ges­tão afastaria o risco de a administra­ção dos recursos sofrer pressão políti­ca. Assim como é equivocado criar três institutos. Seria como repetir o erro histórico do passado, aliá, de toda a América Latina, que fragmentou o sis­tema previdenciário, abrindo espaço para os tratamentos diferenciados."


Luiz Antonio Cintra – Editor de economia da Carta Capital – 27.11.2011