terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Paz na Colômbia: um caminho é traçado em Havana


Após encerrar 2012 com avanços no primeiro período de diálogos entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (Farc-EP) e o governo iniciaram uma nova etapa com expectativas de chagar em acordos concretos.

Luisa María González 
As 21 jornadas iniciais de diálogos encaminhadas para edificar a paz colombiana conseguiram progressos, enquanto ambos empreenderam o novo ciclo com solicitações para acelerar o processo. Para a Colômbia, a solução para o conflito armado que já dura há mais de meio século com um saldo superior a cinco milhões de vítimas, depende dos diálogos. 
A situação qualificada em reiteradas ocasiões como “drama humano”, inclue cerca de 3,5 milhões de desalojados, 15 mil desaparecidos e milhares de mortos e mutilados por minas.
Os direitos das vítimas é um dos seis pontos que conforma a agenda, acordados mediante um processo de conversas exploratória que durou meses e concluiu com a assinatura de um Acordo Geral para guiar o diálogo e fixar prioridades. 
Os seis assuntos estabelecidos incluem o desenvolvimento rural, as garantias para a participação cidadã, o fim Fo conflito armado, a solução ao problema das drogas ilícitas, os direitos das vítimas e os mecanismos de verificação e referenda do que foi discutido na mesa. 
Cuba volta a ser o lugar da reunião das equipes de diálogo, que começou em 19 de novembro, cujas primeiras jornadas de 2013 destacou-se o tema da terra, somando os desejos de conseguir mais rapidez ao processo.


Por avanços concretos com mais rapidez 
O desejo de conseguir mais ritmos nos diálogos tem sido expresso tanto pelas Farc como pelo governo, um indicio da vontade comum de continuar os avanços e concretizar acordos. 
O chefe da delegação da guerrilha, Iván Márquez, pediu maior pressa na alise profunda e integral do Acordo Geral, pensando nos interesses das maiorias nacionais, ao mesmo tempo que culminou ao governo de Juan Manuel Santos apresentar soluções rápidas, tangíveis e apartadas da demagogia. 
O grupo governamental “deve demonstrar vontade para avançar, colocando na mesa propostas claras que indiquem ao país que o governo não prolongará indefinidamente o tempo das soluções ao grave problema do latifúndio e das desapropriações de terra com métodos violentos ou disfarçados de legais”, apontou. 
No caso da equipe do governo, o chefe da delegação Humberto de la Calle, instou a conseguir maior ritmo, porque ao começar um ano novo precisa caminhar para frente para manter o apoio da cidadania. 
“As pessoas querem ver um processo eficaz, digno, rápido, sério. Esta é uma fase de conseguir resultados para um acordo sobre o fim do conflito, isso é o que nos traz a mesa. Nosso chamado é esse novo ritmo e buscar, rapidamente, acordos”. 
De la Calle esclareceu que não entrará na discussão o tema do modelo de desenvolvimento econômico ou a eliminação da propriedade privada, mas que mantém pontos da agenda acordados pelas partes, pois entendem que eles radicam a possibilidade de acabar com o conflito.


Tema agrário na palestra
Desde o começo dos diálogos de paz, o tema da terra foi central por sua relevância como origem do conflito armado e sua solução constitue condição indispensável para estabelecer uma paz sólida e duradoura. 
As Farc anunciaram a adoção de uma posição preliminar em torno ao assunto, para resolver a injustiça estrutura latifundiária da posse da terra. 
O documento titulado “Dez propostas para uma política de desenvolvimento rural e agrário integral com enfoque territorial”, propõe a realização de uma reforma rural e agrária integral, socioambiental, democrática e participativa. 
Entre eles destaca-se a transformação das relações rurais para contribuir com a democratização real do poder territorial, de sociedade, do Estado e do modelo econômico em seu conjunto, assim como o bem-estar da população. 
O ministro da Agricultura, Juan Camilo Restrepo, para comparecer nos diálogos e sustentar um projeto legislativo sobre as terra e precisar se levarão em conta as conclusões dos possíveis acordos para o estabelecimento da paz estável e duradoura. 
As Farc consideraram um contrassenso que enquanto se coloca a discussão da política de desenvolvimento agrário integral como fundamental para a paz, o governo insiste em provar uma legislação de terras que “persiste na determinação de entregar maiores concessões para os latifundiários”.
De acordo com o integrante da guerrilha Jesús Jesús Santrich, eles estão difundindo os anseios do povo para fazer ouvir, porque “até agora o único que se escuta é a grande imprensa reivindicando os interesses das transnacionais”. 
Em resposta ao pedido dos guerrilheiros, Restrepo afirmou que corresponde aos porta-vozes participantes no diálogo “reagir, opinar e dar declarações diante das propostas”. Em comunicado, sustentou que a política agrária do governo é avançada, audaz e nova e “fará respeitando o direito privado, a ptopriedade e os direitos adquiridos de boa fé”. 
Por sua vez, Humberto de la Calle mencionou que foram impulsionadas soluções muito concretas para recuperar e transformar o campo. Igualmente, mostrou-se a favor da participação da sociedade colombiana suas contribuições nos diálogos de paz. 
Ele assegurou que o governo colombiano quer o fim do conflito como o primeiro passo para avançar na construção de uma paz estável, um cenário no qual cabem as Farc como partido político legal.



Luisa María González - Jornalista da Prensa Latina – 20.01.2013
Tradução da redação do Portal Vermelho (originalmente in Prensa Latina)




A Colômbia continua conversando


Só o fato de o diálogo entre o governo e as FARC prosseguir já seria uma boa notícia. Alguns detalhes, porém, indicam que existe razão para reforçar um pouco mais o otimismo dos otimistas, e para preocupar um pouco mais os preocupados. É que chegou o momento de debater um dos pontos mais delicados da pauta de temas aceitos pelas duas partes: a questão da terra. A primeira conversa, em Havana, está prevista para o dia 8 de janeiro.

Eric Nepomuceno
O ano de 2012 terminou e as negociações entre o governo colombiano e as FARC – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, a guerrilha mais longeva da América Latina – continuam. Só o fato de o diálogo prosseguir já seria uma boa notícia. Alguns detalhes, porém, indicam que existe razão para reforçar um pouco mais o otimismo dos otimistas, e para preocupar um pouco mais os preocupados. É que chegou o momento de debater um dos pontos mais delicados da pauta de temas aceitos pelas duas partes: a questão da terra. A primeira conversa, em Havana, está prevista para o dia 8 de janeiro. 
O otimismo pode ser reforçado porque o governo do presidente Juan Manuel Santos parece mesmo disposto a encarar de frente a necessidade de implantar profundas reformas que levem a uma nova política rural. E a preocupação reforçada se deve exatamente a isso: qualquer passo rumo a uma reforma agrária mexerá nos interesses daqueles que estão dispostos a ir às últimas consequências para assegurar a manutenção de um sistema que permite que 1,5% de proprietários tenham 52% das terras cultiváveis no país. Convém lembrar que uma das razões fundamentais para a guerra que dura décadas na Colômbia diz respeito exatamente à terra. Tanto assim, que é este o primeiro ponto da agenda de negociações entre as FARC e o governo.
Em novembro agora, foi realizado em Bogotá um grande encontro, reunindo mais de 1.300 participantes de todas as classes e segmentos sociais, além, claro, dos chamados empresários do campo – os grandes proprietários. E deu para perceber claramente que a questão é muito delicada, e que esse debate irá longe. 
Os poderosos pecuaristas, por exemplo, não estão nada dispostos a dialogar com os pequenos proprietários, em geral agricultores. O desequilíbrio de forças é gritante: calcula-se que cerca de cinco milhões de hectares são destinados, na Colômbia, à agricultura, enquanto a pecuária ocupa quase 39 milhões. Essa concentração extrema responde exatamente às distâncias que separam pequenos agricultores e imensos complexos de pecuária. 
Os obstáculos para as negociações entre guerrilha e governo são muitos e muito difíceis de superar, e todos sabem disso na Colômbia, a começar, é claro, pelos negociadores. Os setores mais recalcitrantes da direita colombiana acham um absurdo tratar temas como distribuição de terras com guerrilheiros. E outro absurdo é tratar com milhares de pequenos agricultores, vítimas da violência, que não só querem sua terra de volta como serem compensados. Falar em reforma agrária, então, nem pensar.
Seja como for, o que está acontecendo agora na Colômbia é que os dois lados – grandes empresários rurais e pequenos agricultores – conseguiram conversar. Os que se recusam a discutir propriedade privada e economia de mercado e os que querem que se ponha um limite claro à concentração da terra estão conversando, e isso é inédito no país que há décadas padece uma epidemia de violência. 
Dessa conversa insólita saíram subsídios para a negociação política que
acontece em Havana, entre representantes do governo e da guerrilha. Pode parecer pouco. Talvez seja pouco. Mas é muito mais do que se conseguiu nas tentativas anteriores de se chegar a um acordo de paz.
Falta muito, é verdade. A começar pela negativa do setor pecuário, que se recusou terminantemente a participar, como coletivo, desse grande encontro realizado em Bogotá. O presidente colombiano criticou os representantes do setor, e disse que achava ‘irracional’ essa recusa, já que justamente os pecuaristas são um dos lados mais afetados pela guerra. 
Talvez Juan Manuel Santos tenha se esquecido de um detalhe: muitos dos grandes pecuaristas são aliados ou diretamente cúmplices dos paramilitares que espalham o terror pelo interior da Colômbia, expulsando pequenos agricultores e incorporando suas parcas terras às imensas extensões dedicadas ao gado. O próprio presidente do grêmio pecuarista, José Félix Lafaurie, é suspeito de financiar grupos paramilitares. Não há nada de irracional, portanto, em sua recusa ao diálogo. 
Para a guerrilha, o destino da Colômbia passa pela questão da terra. Para os grandes latifundiários, também. O problema é que cada lado tem sua própria visão de destino que pretende para a Colômbia. 
Governo e guerrilha estão dialogando. Os latifundiários da pecuária acham isso perda de tempo. Se negam a aceitar que o governo de Juan Manuel Santos parece ter entendido que, sem diálogo, não se chega a lugar algum.
O tema da terra é o primeiro da agenda, e talvez o mais crucial. Depois dele, restam outros quatro pontos: a participação política da guerrilha desarmada, o fim do conflito, a questão das drogas e a reparação às vítimas. 
Há, sim, muito caminho pela frente. E, pelo menos por enquanto, parece haver muita disposição para caminhar.


Eric Nepumuceno – Jornalista e escritor – 31.12.2012
IN Carta Maior – http://cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21457

sábado, 26 de janeiro de 2013

Nacionalismo e desenvolvimento econômico (I)


O economista alemão Friedrich List criticava a “economia política clássica” por condenar as nações menos desenvolvidas a “rolar eternamente a pedra de Sísifo” do atraso, exatamente porque havia “excluído a política da ciência econômica, ignorado a existência da nacionalidade, e desconhecido completamente os efeitos da guerra sobre o comercio entre as nações”.

José Luís Fiori
“A dificuldade da 'economia política clássica' foi reconhecer o significado econômico das nações, não apenas na prática mas também na teoria”
(Eric Hobsbawm, “Nações e Nacionalismo desde 1780”, Paz e Terra, 1990, p: 37).

Desde a Revolução Francesa, a palavra “nacionalismo” teve várias definições e conotações políticas e emocionais, variando segundo o tempo e o lugar, e aparecendo ora como uma ideologia ou sentimento, ora como um movimento social ou estratégia política. Na sua origem histórica, sobretudo na França e nos Estados Unidos, foi um movimento revolucionário, democrático e cidadão, depois passou a ter uma conotação predominantemente cultural e etnolíngüística, sobretudo na Europa Central, para se transformar, finalmente, num projeto político de construção e/ou fortalecimento dos estados nacionais que nasceram - dentro e fora do continente europeu - a partir das independências americanas. Mas foi só na segunda metade do Século XIX que o nacionalismo adquiriu uma face e uma formulação explicitamente econômica e se transformou num instrumento de luta dos países "atrasados" contra a supremacia inglesa. 
É bem verdade que depois do XVI, o desenvolvimento econômico capitalista se deu sempre com base em estados territoriais que praticaram políticas mercantilistas de defesa de suas economias nacionais, e neste sentido, se pode dizer que sempre existiu algum tipo de nacionalismo econômico “primitivo”, desde a origem do sistema estatal europeu. Mas foi só na Alemanha, no século XIX, que se formulou uma teoria e uma estratégia nacionalista consistente de desenvolvimento econômico, a partir de objetivos geopolíticos explícitos. Na sua obra mais importante, publicada em 1841, o economista alemão Friedrich List criticava a “economia política clássica” por condenar as nações menos desenvolvidas a “rolar eternamente a pedra de Sísifo” do atraso, exatamente porque havia “excluído completamente a política da ciência econômica, ignorado a existência da nacionalidade, e desconhecido completamente os efeitos da guerra sobre o comercio entre as nações” (1986,p:128). 
Depois da morte de List e da primeira unificação alemã, em 1871, estas ideias contribuíram decisivamente para o desenho de uma estratégia consciente de desenvolvimento e industrialização, combinada com uma visão ufanista da cultura germânica e com um projeto geopolítico de unificação e expansão do poder alemão, em direta competição com o poder comercial e naval da Grã Bretanha. 
Desde então, o sucesso econômico da Alemanha se transformou no paradigma de referencia do nacionalismo econômico, em todo mundo, e teve uma importância particular na história da Rússia e do Japão, países que têm várias semelhanças geopolíticas com a Alemanha. Entre o fim da “Guerra dos 30 Anos”, em 1648, e a unificação de 1871, o território atual da Alemanha foi dividido e “balcanizado”, de forma ativa e conivente, pelas grandes potências europeias, e só conseguiu se unificar depois de três guerras sucessivas e vitoriosas, da Prússia contra a Dinamarca, a Áustria e a França, na década de 1860. Mas mesmo depois da unificação, a Alemanha sempre se sentiu um país cercado e pressionado, carregando um enorme atraso político e econômico e um profundo ressentimento com relação às “grande potências” responsáveis pela criação do sistema inter-estatal e do capitalismo europeu, e pela liderança da conquista européia do “resto do mundo”. 
É neste contexto de atraso, cerco e ressentimento nacional, que se deve situar a permanente preocupação defensivo-expansionista da Alemanha, dentro de um “espaço vital” supra-nacional a ser conquistado e preservado. É neste contexto também que se deve situar o “intense commitment” de suas elites civis, militares e intelectuais, que teve um papel decisivo no desempenho econômico do nacionalismo alemão. Em maior ou menor medida, se pode reencontrar muitas destas características na história da Rússia/URSS e do Japão, e nos seus grandes ciclos de intenso crescimento econômico, desde o século XIX, e mesmo entre 1950 e 1991, apesar de que neste período o Japão e a Alemanha fossem transformados em “protetorados militares” a serviço da estratégia militar global dos EUA. 
Agora de novo, neste início do século XXI, Alemanha, Rússia e Japão estão seguindo estratégias econômicas nacionalistas, orientadas por seus grandes objetivos estratégicos nacionais permanentes, de defesa e luta pelas suas hegemonias regionais. Para pensar o futuro ou tirar lições, entretanto, seria importante primeiro entender porque os seus grandes sucessos econômicos e tecnológicos do passado acabaram sendo interrompidos por retumbantes fracassos políticos e/ou geopolíticos.


José Luís Fiori – Cientista político, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – 03.07.2012




Nacionalismo e Desenvolvimento Econômico (II)

Desde o século XIX, pelo menos, a Alemanha, a Rússia e o Japão compartilharam um mesmo sentimento de cerco e vulnerabilidade, e responderam a esta situação de ameaça externa com uma estratégia nacionalista de mobilização de recursos e de desenvolvimento econômico. Sua estratégia econômica nunca envolveu grandes discussões macroeconômicas.

José Luís Fiori
"Marchamos com um atraso de 50 ou 100 anos em relação aos países mais adiantados. Temos de superar esta distância em dez anos. Ou o fazemos, ou eles nos esmagam." (Joseph Stalin, "Nuevas tareas para la organizacion de la economia", Ediciones en Lenguas Estrangeiras, 1977, Beijing, p 532).

Como no caso da Alemanha, a Rússia e o Japão são países que sempre tiveram um forte sentimento nacional de cerco, vulnerabilidade e atraso, com relação às grandes potências "ocidentais" que lideraram a formação do sistema inter-estatal capitalista. E não cabe dúvida que este sentimento de insegurança coletiva teve um papel decisivo na formulação do projeto e na trajetória nacionalista e militarizada do seu desenvolvimento econômico.
A história da Rússia moderna começa no século XVI, depois de dois séculos de invasão e dominação mongol, e transforma-se num movimento contínuo de reconquista e expansão “defensiva” do Grão-Ducado de Moscou. Primeiro na direção da Ásia, e depois da Grande Guerra do Norte (1700-1720), também na direção do Báltico e da Europa Central, já agora sob a liderança de Pedro o Grande, que foi responsável pelo início do processo de “europeização” da Rússia. Desde então, o relógio político russo sintonizou com a Europa e suas guerras, e o seu desenvolvimento econômico esteve a serviço de uma estratégia militar da "expansão defensiva" de fronteiras cada vez mais extensas e vulneráveis. Uma história de vitórias e derrotas que começa com Guerra contra os Otomanos (1768-1792), segue com as Guerra Napoleônicas (1799-1815), a Guerra da Criméia (1853-56), a Guerra com a Turquia (1868-1888), e mais o "Grande Jogo" com a Grã Bretanha, pelo domínio da Ásia Central, na segunda metade do século XIX. Uma trajetória que continua no século XX, com a Guerra com o Japão (1904), a Revolução Soviética (1917), a 1º e a 2º Guerras Mundiais, a Guerra Fria, e a Guerra do Afeganistão (1979-1989), logo antes da dissolução da URSS, e da retomada nacionalista posterior da Rússia, no início do século XXI, antes e depois da Guerra da Geórgia (2008). 
A história moderna do Japão, por sua vez, começa com a Restauração Meiji e o fim do Shogunato Tokugawa, que durou três séculos (1603-1868), e já foi uma resposta defensiva e militarizada do Japão, ao primeiro assédio e “cerco” das potências européias, no século XVI. Depois disto, a própria Restauração Meiji (1868) também foi uma resposta defensiva ao imperialismo europeu e americano do século XIX, na forma de um projeto nacionalista de desenvolvimento econômico acelerado e posto a serviço de uma estratégia de constituição de um “espaço vital”, o tairiku dos japoneses, equivalente Lebensraum dos alemães. Desde então, o desenvolvimento e a industrialização japonesa obedeceram objetivos estratégicos e geopolíticos, submetendo-se em última instancia à política externa do Japão e à sua guerra com a Rússia (1904), à sua invasão da Manchúria (1931), sua Guerra com a China (1937-1945), e sua participação na 1º e 2º Guerras Mundiais, seguido da transformação do Japão em protetorado militar dos EUA, durante a Guerra Fria, antes da retomada do nacionalismo japonês, neste inicio do século XXI, já agora sob a égide de uma nova competição com a China.
Resumindo: desde o século XIX, pelo menos, a Alemanha, a Rússia e o Japão compartiram um mesmo sentimento de cerco e vulnerabilidade, e responderam a esta situação de ameaça externa com uma estratégia nacionalista de mobilização de recursos e de desenvolvimento econômico. Sua estratégia econômica nunca envolveu grandes discussões macroeconômicas, nem foi definida por economistas, e apesar disto, estes países obtiveram grandes sucessos industriais e tecnológicos. 
O que nenhum dos três países conseguiu, entretanto, foi alcançar uma posição de centralidade monetária e financeira internacional que lhes desse um poder estrutural de mando sobre os grandes fluxos da economia internacional. Nem tampouco lograram universalizar suas ideias e valores, ao contrário do que passou com as potências piorneiras que lograram impor sua ideologia e sua moeda como suportes de um sistema ético e monetário internacional que funciona como um poder estrutural global, e ao mesmo tempo como uma “barreira à entrada” - quase intransponível - para os demais países. Por isto mesmo, Holanda, Inglaterra e EUA nunca foram nacionalistas, e Alemanha, Rússia e Japão jamais deixaram de sê-lo, sob qualquer regime ou circunstância. 
Por isto também, o imperialismo dos primeiros sempre teve uma fisionomia mais liberal e “pelo mercado”, apesar de seu continuado militarismo, e o expansionismo dos segundos sempre teve uma face mais militar e agressiva, mesmo quando se propusessem apenas a conquista de novos mercados. Em boa medida, esta hierarquia e esta barreira acabam contribuindo ou induzindo - de alguma forma – para o imperialismo militarista dos demais países que se propõem repetir a trajetória de poder da “coalisão ganhadora”, entre Holanda, Inglaterra e Estados Unidos.


José Luís Fiori - Cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – 25.07.2012

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

'Adelaide' e o racismo camuflado em riso


é um tipo de racismo singularmente brasileiro especificamente produzido pelas mídias televisivas. Os especialistas que criaram tal personagem – as elites editoriais, como diria Muniz Sodré – reeditam um imaginário surgido a pelo menos duzentos anos atrás por literatos, jornalistas e políticos brancos e ancoram nas plásticas vias do humor o pior do sentimento antinegro.

Marcio André dos Santos
O personagem de “Adelaide” não é uma novidade na dramaturgia brasileira. A construção de um personagem negro, do sexo feminino e que tem como pretensão fazer as pessoas rirem sem parar data de pelo menos 40 anos. O livro que inspirou o documentário A Negação do Brasil de Joel Zito narra e analisa a presença dos negros na televisão brasileira. Presença marcada pela subalternidade e preconceito racial. 
Para quem nunca viu este personagem do programa Zorra Total da TV Globo, “Adelaide” é uma mulher negra, idosa e que entra no metrô pedindo esmolas e, consequentemente “importunando as pessoas”. Além do reforço racista e sexista que o programa faz em torno das mulheres negras e de todos os negros por extensão, em alguns episódios “Adelaide” exala um cheiro ruim, ou pelo menos é isso que as cenas querem nos comunicar. Imagine você na sala de estar, com sua família, crianças e de repente aparece uma mulher negra, mal vestida e fedendo. Além do fedor, ela não tem os dentes da frente e parece absolutamente ridícula... Todos riem às alturas. É essa a intenção. O riso, magicamente, nos tira por uns instantes a capacidade de perceber o horror por trás de tais cenas.
Eu poderia gastar muitas linhas aqui descrevendo as dezenas de cenas pejorativas dessa personagem, mas quero me concentrar em outro ponto: qual a ideia básica que fundamenta esse personagem? O que lhe dá sentido? Qual a intenção de um núcleo de profissionais de mídia e comunicação ao construir, detalhe por detalhe, uma caricatura totalmente negativa de uma mulher negra, idosa e pobre?
Dizer que é o racismo talvez não seja suficiente. Sim, é racismo. Entretanto, é um tipo de racismo singularmente brasileiro especificamente produzido pelas mídias televisivas. Os especialistas que criaram tal personagem – as elites editoriais, como diria Muniz Sodré – reeditam um imaginário surgido a pelo menos duzentos anos atrás por literatos, jornalistas e políticos brancos e ancoram nas plásticas vias do humor o pior do sentimento antinegro.
Existem muitas formas de definir e abordar o racismo. Pode ser visto como um instrumento de manutenção de privilégios econômicos; pode ser visto como sentimento de superioridade ou então como mecanismo de preservação de lugares simbólicos, culturais e psicológicos de um grupo em relação a outro. Pode também ser a mistura de tudo isso e até mesmo um tipo antigo de desumanização. Por exemplo, o tráfico transatlântico de escravos tinha como pressuposto a transformação de negros em coisas, objetos, seres sem alma e transcendência. Bichos, em suma. Opera-se assim um processo completo de animalização que justica toda e qualquer atrocidade.
“Adelaide” é uma representação contemporânea da desumanização negra que, no limite, assegura o privilégio da brancura, este artefato onipresente e multifacetado de poder. Privilégio  que se manifesta imagética e ideologicamente e forja a realidade tal como querem que a vejamos: ora manifestando-se sutil aos nossos olhos, ora completamente brutal.
“Adelaine” é prova concreta de que o “mito da democracia racial” continua operando (secretamente?) no cerne dos aparelhos produtores de imagens e imaginário social. Faz-nos rir dos crimes mais chocantes de nossa história, em feixes coloridos de um sábado a noite.



Marcio André dos Santos - Cientista social, poeta, ativista negro, pai, cidadão do mundo – 31.07.2012
IN “Afrolatinidade” – http://afrolatinidade.blogspot.com.br/2012/07/adelaide-e-o-camuflado-em-riso-por.html

domingo, 20 de janeiro de 2013

Paulo Sérgio Pinheiro: "Na ditadura, o presidente, os generais e os executores cometeram crimes. Todos estavam inteirados dos excessos"


Desde maio de 2012, o Brasil tem uma Comissão da Verdade em funcionamento. Seus objetivos são analisar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. No entanto, o foco principal está no exame dos crimes de Estado cometidos no período da ditadura militar (1964-1985). Paulo Sérgio Pinheiro, intelectual com larga trajetória na academia e na diplomacia, é um dos integrantes do novo órgão. Nesta entrevista ele fala de seu funcionamento, do exame dos crimes e da necessidade da sociedade conhecer os excessos para que eles não se repitam.

Bia Barbosa
Depois de muita polêmica, a Presidenta Dilma Rousseff sancionou, em novembro de 2011, a lei que cria a Comissão Nacional da Verdade. Formada para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado entre 1946 e 1988, a Comissão foi instalada oficialmente em maio de 2012.

O acadêmico e diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, reconhecido por sua idoneidade e identificação com a defesa da democracia e dos direitos humanos, é um dos sete integrantes da Comissão. Até maio de 2014, ele e seus colegas têm a missão de identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias em que foi praticada a repressão de Estado durante a ditadura militar.

Para isso, poderão requisitar informações e documentos de órgãos do Poder Público, independentemente de seu grau de sigilo, convocar para testemunho pessoas que possam guardar qualquer relação com os eventos examinados e até determinar a realização de perícias e diligências para coleta de informações. Ao final do trabalho, devem apresentar um relatório com conclusões e recomendações de medidas e políticas públicas para assegurar a não repetição de tais violações.
Nesta entrevista, Paulo Sérgio Pinheiro detalha como anda o trabalho e os principais desafios que a Comissão Nacional da Verdade tem pela frente.

Perfil
Paulo Sérgio Pinheiro é membro da Comissão Nacional da Verdade, nomeado pela presidenta Dilma Rousseff. Foi professor titular do Departamento de Ciência Política e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, do qual hoje é pesquisador associado. Fora do país, foi professor das universidades de Columbia e Notre Dame, nos EUA; de Oxford, na Grã-Bretanha; e da École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Atualmente, é professor adjunto de Relações Internacionais na Brown University, nos EUA.
No governo, Pinheiro foi relator dos I e II Programas Nacionais de Direitos Humanos (1996 e 2002) e ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso, entre 2001 e 2003.
Entre 2004 e 2011, integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), como relator dos direitos das crianças.
Na ONU, foi relator especial de direitos humanos para o Burundi e, mais tarde, para Mianmar (antiga Birmânia); e membro das Comissões Especiais de Investigação sobre o Timor Leste e o Togo. Exerceu também a função de Expert Independente do Secretário-Geral da ONU para o Relatório Mundial sobre Violência contra a Criança, publicado em 2006. Hoje, preside a Comissão de Investigação da ONU sobre a Síria.
Paulo Sérgio Pinheiro nasceu no Rio de Janeiro e hoje vive entre São Paulo, Brasília e Genebra.

Desafios do Desenvolvimento - Como está sendo realizado o trabalho da Comissão?
Paulo Sérgio Pinheiro - Das quarenta Comissões da Verdade que conheço, a maioria levou seis meses para decolar. Talvez aqui no Brasil devêssemos ter estipulado um prazo para organizá-la. Mas já há muita coisa acumulada, não partimos do zero. Somos sete membros e 15 assessores, mais consultores e secretária. Há várias equipes trabalhando, fundamentalmente com arquivos. Os do Itamaraty, por exemplo, têm quatro toneladas de documentos. Nada foi queimado. Também há a tentativa de se ter acesso a documentos das Forças Armadas. O ministro Celso Amorim [da Defesa] tem dialogado e dado apoio, da mesma maneira que o ministro [Antonio] Patriota [Relações Exteriores). Teremos ainda acesso aos documentos da Funai [Fundação Nacional do Índio], pois muitas violações foram cometidas em ações contra indígenas, ou que tiveram relação com conflitos agrários. Uma subcomissão importante, é a que analisará o papel do Judiciário na ditadura. Aquele poder sofreu e também colaborou intensamente com a aplicação da legislação autoritária. Além disso, estamos preocupados com os milhares de membros das Forças Armadas reprimidos e punidos internamente durante o período, algo que pouco se tem falado. Por fim, uma das preocupações fundamentais é completar as informações sobre os desaparecidos - 475 foram analisados pela Comissão de Mortos e Desaparecidos - e os exterminados, como os 42 sobreviventes da guerrilha do Araguaia que foram assassinados na última “Operação Limpeza”, em 1974.

Desenvolvimento - O senhor está trabalhando em qual das subcomissões?
Pinheiro - Eu trabalho com a questão dos sistemas de informações externas, numa rede que existiu dentro do Ministério das Relações Exteriores e que teve colaboração bastante estreita com os órgãos de repressão. Também tenho um interesse especial pela reconstituição dos vários crimes que estão na lei, como os assassinatos, desaparecimentos forçados e prisões arbitrárias, como configurando uma política de Estado dos governos da ditadura. Quer dizer, é preciso superar aquela noção de que tivemos práticas e excessos cometidos por alguns poucos. Na verdade, desde o Presidente da República, os generais e até os que executaram cometeram esses crimes, todos estavam absolutamente inteirados. Mas isso resta ser documentado.

Desenvolvimento - No caso dos desaparecimentos forçados e assassinatos já comprovados, há uma perspectiva de a Comissão fazer um estudo caso a caso? 
Pinheiro - Refazer os 400 casos e mais as centenas de outras ocorrências individuais é uma tarefa impossível. Mas estamos começando a reexaminar laudos de necropsia utilizados nas informações sobre esses desaparecimentos.

Desenvolvimento - Uma das polêmicas sobre o funcionamento da Comissão Nacional da Verdade tem sido o sigilo de seu trabalho. Qual a sua opinião sobre isso? A ideia é que, ao final, tudo se torne público?
Pinheiro - Por trás dessa polêmica há uma enorme desinformação. Recentemente tivemos um seminário sobre comissões da verdade na América Latina e todas, também a da África do Sul, trabalharam com confidencialidade. Trata-se de uma investigação sobre crimes cometidos. Então não dá para fazer audiências com torturadores ou suspeitos envolvidos nos desaparecimentos na frente da televisão! Se considerarmos que há possibilidade de obter informações que não teríamos, podemos conceder o anonimato. Do mesmo modo que a imprensa trabalha com sigilo de fontes, nós também trabalhamos com sigilo dos depoimentos. Isso é assim, foi assim e vai continuar sendo assim. Mas também há uma dimensão pública do trabalho, que são as audiências coletivas, em que se ouvem depoimentos específicos. É evidente que a informação sobre o que se faz tem que ser pública. O nosso site ainda é muito insatisfatório, vai ser aperfeiçoado, mas vamos informar minuciosamente tudo o que se faz: as correspondências trocadas com as autoridades, que tipo de arquivo consultamos etc. Agora, depoimentos no curso de uma investigação, não vamos publicar. Se vamos publicar depois, é outro problema.

Desenvolvimento - Há também um objetivo de estabelecer um diálogo com a sociedade através dessas audiências?
Pinheiro - Para mim, a audiência pública ideal é a que trata de um caso concreto: o depoente, acompanhado de um advogado, com o relato sendo televisionado de modo que os que sofreram os crimes possam testemunhar. Isso nos dá informações, mas também tem um papel em relação às vítimas, que podem participar publicamente do processo. Vamos visitar todos os Estados. No Pará, o governador Simão Jatene disse que vai propor a todas as correntes políticas a criação de uma Comissão estadual. Em Alagoas, ela já foi formada. Na OAB de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul também.

Desenvolvimento - Estão surgindo também comissões nas Assembléias Legislativas e em universidades. Qual o papel desses espaços?
Pinheiro - A Comissão Nacional da Verdade não é coordenadora desses movimentos. Ela tem um estatuto especial, é uma comissão do Estado, produto de uma lei, nomeada pela Presidenta da República para apresentar um relatório final do seu trabalho. Mas é evidente que vamos colaborar com essas comissões. Acho da maior validade, por exemplo, o movimento do Levante Popular, feito pelos estudantes. Isso politiza o tema. O escracho e os comitês de memória dentro das universidades estão dando uma contribuição extraordinária.

Desenvolvimento - Essas ações dialogam com um dos objetivos da Comissão, que é sensibilizar a sociedade para o que aconteceu neste período?
Pinheiro - Não precisamos ter grandes ilusões de que uma sociedade profundamente autoritária e fundada no racismo estrutural vá se mobilizar de um dia pra outro e sustentar a Comissão da Verdade. Mas é evidente que a diferença entre silêncio e mobilização pode melhorar, inclusive com a ajuda da mídia. Nossa comissão é a única da América Latina que está acontecendo no século XXI. No funcionamento das Comissões da Verdade na Guatemala e de El Salvador não havia internet, twitter, facebook, nem toda a digitalização de arquivos. O atraso da criação da Comissão assim é altamente compensado pelo que foi realizado e pelos novos meios de comunicação.


Desenvolvimento - O senhor falou da colaboração entre Comissão e Ministério da Defesa. Mas o ministro anterior, Nelson Jobim, chegou a afirmar que todos os documentos haviam sido destruídos. Como está esse processo agora?
Pinheiro - O ministro Jobim é meu amigo, fez o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, mas a posição oficial da Comissão, que já foi publicada, é que julgamos ilegais esses atos de destruição de documentos. Minha opinião é que só quem acredita em fadas acha que não existe nenhum arquivo. A própria Aeronáutica cedeu vários deles para o Arquivo Nacional.

Desenvolvimento - Pessoalmente, como o senhor se vê neste processo?
Pinheiro - Somos um grupo muito integrado, de grande coesão. Todos já trabalhamos, em algum momento, um com o outro. E temos uma equipe extraordinária de assessores e consultores, além do apoio da Presidenta Dilma, sem interferência de nenhum ministro. O apoio material do governo também é muito maior do que eu podia supor.

Desenvolvimento - Como o senhor analisa as críticas feitas às funções e formato da Comissão antes da aprovação da lei?
Pinheiro - Essas críticas vieram de setores que desejavam uma Comissão da Verdade com funcionamento de tribunal. Ora, nenhuma das quarenta Comissões da Verdade, inclusive a da África do Sul, teve poder judicial. O importante é que nossa comissão tem mais poderes do que qualquer outra da América do Sul e Central no século XXI, porque temos o poder de convocar qualquer cidadão ou cidadã.
Funcionários civis e militares então, nem se fala! E os que não vierem, denunciaremos ao Ministério Público Federal. Em segundo lugar, temos acesso a qualquer arquivo, não importa seu grau de sigilo. Nos ministérios, já temos acesso a documentos secretos e ultrassecretos. Em terceiro, ao contrário do Poder Judicial, por causa da Lei da Anistia e do acórdão do Supremo Tribunal Federal, temos o mandato de indicar a autoria e as circunstâncias em que foram cometidos os assassinatos, as torturas, os desaparecimentos forçados e a detenção arbitrária.

Desenvolvimento - Houve afirmações também de que a Comissão não conseguiria trabalhar por conta da decisão do STF sobre a Lei de Anistia.
Pinheiro - Foi outra choradeira. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. A Lei da Anistia não nos atrapalha nem ajuda, é algo que não nos impede de fazer o que a Comissão nasceu para fazer. O relatório final vai indicar a autoria e as circunstâncias em que esses crimes foram cometidos pela ditadura.


Desenvolvimento - Considerando sua experiência em direito internacional e o conflito entre a decisão do STF sobre a Lei de Anistia e a decisão da Corte Interamericana no caso Araguaia, existe a possibilidade de, no relatório final da Comissão, haver uma recomendação para que a Justiça de responsabilize os responsáveis pelas violações de direitos humanos durante a ditadura?
Pinheiro - Não sei. Felizmente ainda temos vinte meses para resolver essa questão das recomendações. A posição de todos os membros da Comissão da Verdade, inclusive a minha, que fui membro por oito anos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e apoiei a decisão do presidente Fernando Henrique, em 1998, de reconhecer a competência da Corte Interamericana, é que uma decisão da Corte deve ser cumprida pelo Estado brasileiro. A doutrina do direito internacional interamericano diz que as autoanistias não são válidas, e a anistia no Brasil, como já falei muitas vezes, foi uma autoanistia. O Supremo não entendeu assim, mas não cabe a mim nem à Comissão da Verdade ficar contestando essa decisão. É algo que cabe ao Estado brasileiro, e isso não nos atrapalha.

Desenvolvimento - O senhor concorda com a estratégia do Ministério Público de abordar judicialmente crimes como o desaparecimento e a ocultação de cadáveres como crimes não prescritos, para poder responsabilizar os perpetradores?
Pinheiro - Não tenho competência para avaliar se é uma boa ou uma má estratégia. Só posso dizer da minha satisfação em ver o Ministério Público Federal e o Sistema Judiciário brasileiro assumindo seu papel dentro dos ditames da lei, que dão a eles alguma possibilidade de ação. Digo a mesma coisa sobre outras condenações que estão surgindo. Tenho a maior alegria em ver o resultado de casos como o [do coronel Carlos Alberto Brilhante] Ustra [declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em agosto último], especialmente pelo que isso significa para as famílias dos que foram torturados e assassinados. Essa manifestação dos tribunais brasileiros é algo que dá grande conforto e esperança às famílias.

Desenvolvimento - Por outro lado, há setores que ainda reagem aos avanços. O Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, teve sua sede invadida. É de se esperar que, com o funcionamento da Comissão da Verdade, conflitos sociais venham à tona para disputar diferentes visões sobre este período na sociedade?
Pinheiro - Nós estamos numa democracia. No Brasil vigora a liberdade de opinião, as pessoas e a imprensa são livres para se expressar. Mas evidentemente não se pode cometer crimes, como essa invasão da sede do Tortura Nunca Mais, que deve ser investigada. Desde que a expressão dessas opiniões não seja traduzida em crimes, as pessoas são livres para pensar o que quiserem sobre a Comissão da Verdade. Não espero unanimidade.

Desenvolvimento - Um dos objetivos da Comissão da Verdade é a promoção da reconciliação nacional. Qual a sua leitura sobre esse conceito?
Pinheiro - Este termo está presente na lei que criou a Comissão e na denominação de várias outras comissões da verdade pelo mundo. Mas enquanto não tivermos bem encaminhados na reconstrução da verdade, é muito cedo para se discutir reconciliação. Também depende do que vamos encontrar; a reconciliação pode ocorrer na dinâmica do processo. As vítimas querem antes saber sobre a autoria, as circunstâncias e a responsabilidade do Estado, para então fazer esse trajeto da reconciliação. Mas não somos nós que vamos guiá-las. Este é um tema para o Estado brasileiro.

Desenvolvimento - Quando a lei que cria a Comissão aponta no sentido da reconciliação, ela sinaliza uma preocupação com o legado da ditadura nos dias de hoje. Na sua avaliação, esse legado persiste?
Pinheiro - O entulho autoritário continua, por exemplo, na parte da tortura. Não tem jornalista ou preso político torturado, mas é um vexame que isso ainda continue. Execuções sumárias pelas polícias militares do Rio de Janeiro e de São Paulo também são intoleráveis. A democracia não pode continuar a conviver com isso. Também não pode conviver com o ensino nas Forças Armadas ainda passar uma visão da ditadura militar totalmente positiva, como se não existissem os crimes que estamos discutindo. O processo, dinâmica e as recomendações da Comissão podem contribuir para superar esse legado autoritário. Por outro lado, uma das minhas tarefas na Comissão é reconhecer onde que progredimos. Senão, nos daríamos um atestado de incompetência total.


Desenvolvimento - Quais os grandes gargalos que o país ainda enfrenta na garantia dos direitos humanos?
Pinheiro - Ainda que tenhamos caminhado na luta contra a pobreza extrema, além dos direitos econômicos e sociais, o gargalo são os direitos civis e a defesa dos direitos das minorias. A situação subalterna ainda prevalece nos direitos econômicos e sociais, por exemplo, para a maioria afro-descendente. É importante reconhecer que o Brasil teve uma continuidade na política de direitos humanos. As violações continuam, mas não são mais uma política de Estado.


Desenvolvimento - Apesar de a violação de direitos humanos não ser mais política de Estado, ainda há políticas de Estado que possibilitam a violação?
Pinheiro - Mas não é o Estado que organiza os crimes cometidos por seus agentes. As violações hoje cometidas por agentes do Estado nos estados da Federação não são coordenadas como foram durante o regime militar, o que já é uma diferença extraordinária. Continuará a haver problemas, porque a caminhada dos direitos humanos nunca termina. Temos uma porção de problemas, mas é preciso olhar para o que avançou para reexaminar em que falhamos e o que deu certo.


Bia Barbosa – novembro de 2012
IN “Desafios do Desenvolvimento” - http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2820:catid=28&Itemid=23

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Grande demais para ir para a cadeia


Banqueiros importantes querem ganhar muito dinheiro. Eles também querem ficar fora das cadeias.Os líderes políticos podem esbravejar quanto quiserem, mas sem uma ameaça crível de pobreza e de tempo atrás das grades, os banqueiros não têm por que cumprir a lei. 

Simon Johnson
Um dos princípios fundamentais de um sistema judicial é o seguinte: não minta para um juiz nem falsifique documentos apresentados a um tribunal ou você irá para a cadeia. Descumprir um juramento de dizer a verdade é perjúrio e mentir em documentos oficiais é, a um só tempo, perjúrio e fraude. São transgressões criminais graves, a não ser que você esteja no coração do sistema financeiro americano. Ao contrário, figuras importantíssimas parecem ser bem recompensadas por seus crimes.
Como argumentou Dennis Kelleher, da Better Markets, o recente acordo a que chegaram os processos envolvendo as denominadas "assinaturas robotizadas" - em que cinco grandes bancos "aceitaram" firmar acordos para pôr fim à responsabilidade legal a que estavam sujeitos devido a sua prática de retomada fraudulenta de imóveis financiados - é uma rendição total ao setor financeiro.
Em primeiro lugar, não fora formulada nenhuma acusação penal grave - o que significa que ninguém será acusado de crime e ninguém irá para a cadeia. Em termos de afetar os incentivos que balizam as ações de executivos, isso é a única coisa que importa.
Até mesmo a terminologia usada para formular a discussão é errônea. Kelleher, um advogado com vasta experiência de trabalho em firmas de advogacia e no setor público, define a coisa como ela é: "Assinaturas robotizadas é conduta criminal em larga escala, sistemática e fraudulenta". Alternativamente, como salienta Kelleher, poderíamos chama isso de "mentir, enganar e roubar".
Em segundo lugar, as penalidades cíveis nesse acordo - uma forma de multa - são minúsculas em comparação com o tamanho das companhias envolvidas. Como disse secamente Shahien Nasiripour, um dos melhores repórteres na cobertura desse assunto: "Nenhuma das cinco instituições bancárias disse que espera incorrer em um encargo substancial devido ao acordo". Em outras palavras, de uma perspectiva empresarial, as penalidades são uma ninharia.
Terceiro, essas multas são, de todo modo, pagas pelos acionistas das companhias, e não por seus executivos ou membros de conselhos de administração (todos eles cobertos por seguros). Nos raros casos em que multas foram aplicadas a pessoas físicas, suas seguradoras cobriram a maior parte da conta ou as penalidades foram relativamente triviais em comparação com os ganhos monetários resultantes da prática de seus crimes - ou as duas coisas.
Como se tudo isso não fosse suficientemente ruim, as notícias indicam que os bancos poderão usar dinheiro do governo para depreciar o valor das hipotecas, o que equivale subsidiá-los para que paguem suas próprias irrisórias multas.
O governo Obama e seus aliados têm se empenhado em propagandear que o acordo com os bancos - mediante o pagamento de aproximadamente US$ 20 bilhões -, terá um impacto significativo sobre o mercado imobiliário. Nada, porém, poderia estar mais longe da verdade. Como enfatiza Kelleher, os EUA têm "mais de 10 milhões de casas "underwater" (quando a dívida no financiamento excede o próprio valor da casa)." US$ 20 bilhões não fazem diferença alguma nisso: por exemplo, significariam um milhão de casas com um perdão de US$ 20 mil da dívida em cada caso.
Na realidade, o acordo firmado pelo governo Obama com as financiadoras de casas é coerente com sua prática anterior em todas as suas políticas relacionadas ao setor financeiro, que têm sido péssimas. Mas são também incompreensíveis. Por que o governo continua a fazer de tudo para agradar os maiores banqueiros nessas circunstâncias?
Eu honestamente não acredito que a postura do governo reflita alguma forma de corrupção - pagamentos feitos a pessoas físicas ou até mesmo em benefício de campanhas políticas. E, nesse caso, sequer parece refletir o poder de pressões de grandes agentes financeiros. Esse poder certamente explica por que as reformas financeiras Dodd-Frank promulgadas em 2010 não foram mais vigorosas e por que há agora tanta oposição à implementação eficaz dessa legislação - por exemplo, há atualmente uma grande briga em torno da "regra Volcker", que limitaria o "proprietary trading" (operações financeiras com recursos próprios) de megabancos. Mas as atividades criminais das financeiras habitacionais são uma outra questão.
De fato, o que está em jogo, nesse acordo envolvendo os financiamentos habitacionais, são violações fundamentais e sistêmicas do Estado de Direito: perjúrio e fraude numa escala que abrange toda a economia. O Departamento de Justiça, sem dúvida, dispõe de todo o poder de que necessitaria para processar plenamente os responsáveis por esses crimes. E apesar disso, as mais altas autoridades policiais americanas abstiveram-se sistematicamente - e, agora, completamente - de cumprir plenamente seu papel.
A principal motivação para a indulgência do governo em face dos graves crimes cometidos é, evidentemente, o temor às consequências da tomada de medidas duras contra banqueiros individuais. E talvez as autoridades governamentais tenham razão em ter medo, dada a enorme escala dos bancos em questão em relação à economia. Com efeito, esses bancos são maiores, agora, do que antes da crise, e - como James Kwak e eu documentamos pormenorizadamente em nosso livro "13 Bankers" -, são muito maiores do que 20 anos atrás.
Banqueiros importantes querem ganhar muito dinheiro. Eles também querem ficar fora das cadeias.Os líderes políticos podem esbravejar quanto quiserem, mas sem uma ameaça crível de pobreza e de tempo atrás das grades, os banqueiros não têm por que cumprir a lei. Para eles, tudo é negócio - e você pode ser o otário em política pública tão facilmente quanto pode ser o otário em um contrato de empréstimo individual.
A mensagem para os executivos do banco hoje é simples: faça seu banco ficar tão grande quanto possível - e depois continue a fazê-lo crescer. Se você conseguir tornar-se suficientemente grande, você e seus funcionários não serão apenas grandes demais para falir - mas também grande demais para serem levados à cadeia.
O governo Obama acaba de fazer todo mundo de otário - exceto os banqueiros. 



Simon Johnson – Ex-economista chefe do FMI, é cofundador de um respeitado blog de economia, BaselineScenario.com, professor na MIT Sloan, membro sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional, e coautor, com James Kwak, de "13 Bankers" (13 banqueiros) – 23.02.2012
Tradução: Sérgio Blum.
IN “Valor Econômico” http://www.valor.com.br/opiniao/2538532/grande-demais-para-ir-para-cadeia