Líderes
do crime estavam isolados, havia vagas no RDD, rebeliões tinham acabado... E
veio a crise.
Fernando Salla
O Brasil é mesmo um país surpreendente! Em 2006,
quando a cidade de São Paulo foi terrivelmente abalada por atentados de variada
natureza e um confronto entre criminosos e autoridades se desencadeou,
acreditávamos que tínhamos passado pela pior crise da história da segurança
pública do País. Naquele momento, um dos centros das atenções foi o sistema
prisional paulista, de onde teriam partido as ordens para os ataques dos
criminosos.
Mas eis que chegamos em 2012 e estamos no meio de
mais uma crise na segurança pública em São Paulo que, não há a menor dúvida, é
muito mais grave que a de 2006, a começar pela duração e amplitude. Ano
eleitoral, julgamento do "mensalão", declaração do ministro da
Justiça sobre as prisões brasileiras - só criaram um ambiente ainda mais
efervescente em torno dessa grave crise.
Os componentes da atual crise parecem ter maior
complexidade: disparam os números dos homicídios na cidade de São Paulo e
região metropolitana e descem pelo ralo os exercícios explicativos com as
variáveis estatísticas, com os indicadores socioeconômicos, com os indicadores
das políticas de segurança como fatores decisivos para compreender o
comportamento das taxas de homicídio; emergem como focos relevantes de análise
para a compreensão da atual crise as dinâmicas do mundo do crime e as formas de
repressão sobre ele.
Mas falar das dinâmicas da criminalidade no Brasil,
e particularmente em São Paulo, significa falar também das prisões, pois ali os
grupos criminosos nasceram e se fortaleceram e continuam a manter porosamente
suas relações ilícitas para além dos muros. Talvez pouca atenção tenha se dado
a esse grave aspecto que diz respeito às falhas das autoridades em conduzir
adequadamente os espaços prisionais ao longo de décadas. Lógico que as coisas
se tornaram mais graves num país que entre 2000 e 2010 dobrou a sua população
carcerária (estamos atualmente com cerca de 500 mil presos).
O fato é que as prisões, nesta crise de 2012 em São
Paulo, não eram o foco do debate, pois segundo as autoridades tudo estava sob
controle: as lideranças dos grupos criminosos estão isoladas em presídios de
segurança máxima, a penitenciária de Presidente Bernardes onde funciona o
Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) está com vagas disponíveis e não existem
rebeliões no sistema, apesar da superlotação e das condições subumanas em
dezenas de centros de detenção provisória e em penitenciárias.
Pois bem, de uma hora para outra, nos termos da
cooperação entre o governo do Estado e o governo federal, surgem essas
propostas de transferência de presos de São Paulo para presídios federais. Mas
as lideranças das facções não estão já isoladas? Por que não mandá-las então
para o RDD de Presidente Bernardes? O que está acontecendo com os esquemas de
contenção dos grupos criminosos no sistema penitenciário paulista?
Parece que a proposta de transferência de alguns
presos é uma satisfação para a opinião pública de que algo está sendo feito.
Porém, na certeza de que tal intervenção deve ter pouca influência sobre o que
é central na atual crise: a dinâmica do mundo do crime e como o sistema
repressivo tem atuado sobre ele. Temos aqui o ponto crucial que não é
enfrentado de forma robusta pelas autoridades desde que o País saiu do regime
militar e tenta construir uma sociedade democrática. Nossas instituições
voltadas para o controle social continuam a ser autoritárias, sem
transparência, sem accountability. Reproduzem um padrão de punição largamente
aceito na sociedade brasileira que se expressa tanto na indiferença em relação
a cidadãos executados (quando pobres, moradores da periferia) quanto em relação
ao destino dos milhares de presos provisórios e definitivos que abarrotam as
prisões.
Policiais e agentes penitenciários têm sido vítimas
diretas da criminalidade em São Paulo. Mas também indiretamente dos efeitos de
décadas de autoridades omissas ou coniventes com a atuação daqueles agentes
públicos que nem sempre está amparada pelos moldes legais. Desmandos,
corrupção, arbitrariedades, truculência desencadeiam "relações
perigosas" com o mundo do crime e comprometem a capacidade de todos
aqueles dispostos a conduzir corretamente as suas tarefas, o seu trabalho no
policiamento ou no interior das prisões.
Quando organizações da sociedade civil, como a
Comissão Teotônio Vilela, começaram a visitar prisões e manicômios em 1983 - 30
anos atrás! - e traziam a público os horrores que ali encontravam; quando
chamavam, desde aquela época, a atenção da sociedade para a necessidade de
colocar as agências de controle social sob os trilhos rigorosos da legalidade que
a redemocratização cultivava, lançavam alguns dos principais desafios políticos
e institucionais para a área da segurança pública que o País não conseguiu, até
agora, equacionar.
Se não é ocioso, é pelo menos cansativo ouvirmos
autoridades despejando seus argumentos umas contra as outras. Para todos os que
perderam amigos ou familiares assassinados, para todos os que são vítimas de
uma criminalidade que se amplia e para aqueles que têm que pagar suas dívidas
com a sociedade em nossas prisões, tais argumentos têm sido irrelevantes.
Fernando Salla – Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos da
Violência da Universidade de São Paulo – 18.11.2012
In
“O Estado de São Paulo”, caderno “Aliás” – http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,sob-o-controle-de-quem,961586,0.htm