Para professores, filósofos e defensores
de direitos humanos, o golpe de 64 moldou um país de estruturas autoritárias,
que garante direitos apenas para as classes proprietárias e que transformou a
exceção em consenso. Em seminário realizado em São Paulo, eles afirmaram que a
exceção é o novo modo de governo do capital e que o povo brasileiro vive um
momento perigosíssimo de letargia.
Bia Barbosa
Qual a idéia de "Estado de exceção"? Na interpretação
tradicional do termo, trata-se de um momento de suspensão temporária de
direitos e garantias constitucionais, decretado pelas autoridades em situações
de emergência nacional, ou mediante a instituição de regimes autoritários. Seu
oposto seria o Estado de Direito, conduzido por um regime democrático. Na
avaliação de professores, filósofos e defensores de direitos humanos, no
entanto, a existência de um Estado de exceção dentro do Estado de Direito seria
exatamente a característica do Brasil atual, forjada no período da ditadura
militar e que, mesmo após a redemocratização do país, não se alterou. Esta foi
uma das conclusões do seminário sobre a herança da ditadura brasileira nos dias
de hoje, organizado pela Kiwi Companhia de Teatro esta semana, em São Paulo.
Para o filósofo Paulo Arantes, professor aposentado do Departamento de
Filosofia da USP, há um país que morreu e renasceu de outra maneira depois da
ditadura, e que hoje é indiferente ao abismo que se abriu depois do golpe
militar e que nunca mais se fechou.
"Que tipo de Estado e sociedade temos depois do corte feito em 64,
do limiar sistêmico construído por coisas que parecem normais numa sociedade de
classes, mas que não são? O fato da classe dominante brasileira poder se
permitir tudo a partir da ditadura militar é algo análogo à explosão de
Hiroshima. Depois que a guerra nuclear começa ela não pode mais ser
desinventada. Quando, a partir de 64, a elite brasileira branca se permite molhar
a mão de sangue, frequentar e financiar uma câmara de tortura, por mais bárbara
que tenha sido a história do Brasil, há uma mudança de qualidade neste
momento", avalia Arantes.
Para o filósofo, o país foi forjado pela ditadura a ponto de hoje nossa
sociedade negligenciar tudo aquilo que foi consenso durante o autoritarismo dos
militares. "A ditadura não foi imposta. Ela foi desejada. Leiam os jornais
publicados logo após 31 de março de 1964. Todos lançaram manifestos de apoio ao
golpe, era algo arrebatador. CNBB, ABI, OAB, todo mundo que hoje é advogado do
Estado de Direito apoiou. Se criou um mito de que a sociedade foi vítima de um
ato de violência, mas a imensa maioria apoiou o golpe", disse Arantes.
"E a ditadura se retirou não porque foi derrotada, mas porque conquistou
seus objetivos. A abertura de Geisel foi planejada, já tinha dado certo com o
milagre econômico. Tanto que seus ideólogos estão aí, como principais
conselheiros econômicos da era Lula-Dilma, e que a ordem militar está toda
consolidada na Constituição de 88", criticou.
Na avaliação de Edson Teles, membro da Comissão de Familiares de Mortos
e Desaparecidos Políticos do Brasil e professor de filosofia da Unifesp, a
Constituição de 1988 foi apenas uma das formas de lançar o Brasil num Estado de
exceção permanente, definido por ele quando a própria norma é usada para
suspender a ordem; ou quando aquilo que deveria ser a exceção acaba se tornando
ou reafirmando a própria norma.
Para Teles, além de manter a estrutura autoritária militar, o novo
ordenamento democrático foi construído sobre o silenciamento dos familiares de
vítimas e de movimentos de defesa dos direitos humanos, que queriam justiça
para os crimes da ditadura. O problema, no entanto, vinha de antes.
"Em um Congresso controlado pela ditadura, a Lei de Anistia adotou
a suspensão da possibilidade de punição de qualquer crime. Um momento ilícito
foi tornado lícito, com o silenciamento dos movimentos sociais e pela anistia,
que exigiam esclarecimentos sobre os crimes. O que o Estado montou foi algo que
manteve a ideia de impunidade. Depois veio o Colégio Eleitoral, que fez uma
opção por uma saída negociada entre as oligarquias que saíam e as novas que
chegavam, decidindo manter a anista ao crimes da ditadura. Foi o grande acordo
do não-esclarecimento", relatou.
O julgamento no Supremo Tribunal Federal em 2010 sobre a interpretação
da Lei de Anistia foi, segundo Teles, o coroamento desse silêncio e a
instauração de um Estado de exceçãono país. "Baseada em ideias
fantasmagóricas de que novos golpes que poderiam ser dados, nossa transição foi
a criação de um discurso hegemônico de legitimação deste Estado de exceção.
Faz-se este discurso como forma de legitimar essa memória do consenso, mas se
mantem o Estado de exceção permanente, reconhecendo as vítimas sem nomear os
crimes", acrescentou.
Exceção e consenso hoje
O consenso acerca daquilo que deveria ser visto como exceção não se
restringe hoje, no entanto, àquilo que pode ser considerado a herança mais
direta da ditadura militar. Foi construído também em torno de uma série de
acontecimentos e práticas que deveriam mas não mais despertam reações da
população brasileira.
"A exceção se torna perigosíssima quando deixamos de reconhecê-la
como tal e ela se torna consenso", alertou o escritor e professor de
jornalismo da PUC-SP, José Arbex Jr. "Ninguém achou um escândalo, por
exemplo, no lançamento da Comissão da Verdade, ver os últimos Presidentes do
país juntos, sendo que um deles foi presidente da Arena, o partido da ditadura,
responsável pela tortura da própria Dilma; e o outros era Collor! Da mesma
forma, está em curso em Osasco uma operação chamada Comboio da Morte, que matou
nas últimas horas 16 pessoas. Isso não causa um escândalo nacional, é normal,
natural, porque estamos "na democracia". Os jornais falam da Síria,
mas a média de mortes diária no auge do conflito da Síria não chega ao que
temos aqui cotidianamente. Lá é 60 aqui é 120! Então não estamos discutindo
algo que aconteceu em 64 e que hoje se apresenta de forma mitigada, atenuada",
disse Arbex.
Para o jornalista, o país vive um estado de letargia hipnótica coletiva,
fabricado de maneira competente e eficiente pelo aparato midiático, que produz
um consenso em torno de uma imagem de país na qual todos acabamos acreditando. "É
muito grave quando olhamos para o Brasil e não percebemos essa realidade de
consenso: de nenhuma garantia de direito para quem esteja fora da Casa Grande,
e uma situação de guerra permanente", acrescentou.
É o que Paulo Arantes chamou de Estado oligárquico de Direito, um Estado
dual, com uma face garantista patrimonial, que funciona para o topo da
pirâmide, e uma face punitivista para a base. "Esse Estado bifurcado é uma
das "n" consequências da remodelagem do país a partir dos 21 anos de
ditadura. Basta pensar no que acontece todos os dias no país. Trata-se de um
outro consenso, também sinistro e indiferente, senão hostil, a tudo que nos
reúne aqui. Um Estado de exceção que não é o velho golpe de Estado, mas um novo
modo de governo do capital na presente conjuntura mundial, que já dura 30
anos", afirmou Arantes.
Ninguém cavalga a história
O que permitiria dizer da possibilidade de se encontrar uma saída deste
Estado de exceção permanente é o caráter imprevisível e incontrolável da
história. Arbex lembrou que, em setembro de 1989, quando estava em Berlim,
ninguém dizia que o Muro cairia menos de dois meses depois. "O fato é que,
felizmente, ninguém cavalga a história. Ainda não encontraram uma maneira de
domesticá-la. Há um processo latente de explosão social no Brasil, que se
combina com processos semelhantes na América Latina, e que pode produzir uma
situação totalmente nova. Ninguém previu a Primavera Árabe. Quando um jovem na
Tunísia atirou fogo no próprio corpo, ninguém imaginava que, um mês depois,
cairia Mubarak no Egito. Estão, não estamos condenamos para sempre a esta
situação. Só posso dizer que estamos vivendo numa época que, em alguns
aspectos, é mais trágica, mais cruel e mortífera que a ditadura militar",
acredita.
"Este Estado de exceção só terminará quando a ditadura terminar,
quando o último algoz for processado e julgado. Se a Comissão da Verdade
encontrar dois ou três bons casos e levantar material para ações cíveis, pode
haver uma transmutação disso tudo. E o regime, a sociedade e a economia não vão
cair se os perpetradores da ditadura forem processados, como não caíram na
Argentina ou no Chile", acredita Paulo Arantes. "Mas devemos pensar
no que significaria essa última reparação. Se o último torturador e os últimos
desaparecidos forem localizados, em que estágio histórico vamos poder
entrar?", questionou. Uma pergunta ainda sem resposta.
Bia Barbosa – Jornalista – 18.07.2012
IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20584
Estado de Exceção no Brasil?
Carl Schmitt , jurista e filósofo alemão
de formação católica que deu sustentação às teses do nazismo, foi o grande
inspirador da teoria do “estado de exceção permanente”. Dizer que no Brasil
vivemos num estado de “exceção permanente” é um arroubo esquerdista e não uma
formulação teórica séria. Validada a ideia de que estamos num “estado de
exceção permanente” nos restaria, como estratégia central, buscar a quebra do
atual Estado Democrático de Direito, pois este Estado seria em si mesmo um
“estado de exceção”.
Tarso Genro
Leio um texto de Bia Barbosa na “Carta
Maior”, cujo título é “Brasil forjado na ditadura representa estado de exceção permanente”
(texto postado acima). Ele cobre um Seminário realizado em São Paulo, com a
participação de importantes personalidades da esquerda intelectual do país e
ativistas dos direitos humanos. A matéria informa que ali foi consagrado que o
Brasil vive um “estado de exceção permanente”, condição ensejada pela própria
Constituição de 88 ; que a “elite brasileira branca” permitiu-se molhar a mão
de sangue e freqüentar e financiar câmaras de tortura; que a ditadura se
retirou, não porque foi derrotada, mas porque cumpriu os seus objetivos; e que
paira no Brasil, sobre os mortos e desaparecidos, um grande acordo do “não esclarecimento”.
O que parece (pelo menos pela matéria que foi publicada na Carta Maior), é que o radicalismo das visões ali expostas, joga para outro lado da cerca -para a cumplicidade com a transição conciliada - todos os que defendem que não há um “estado de exceção permanente” no Brasil, logo, quem não concorda com a estratégia política que parte desta constatação original (oposição extrema aos governos Lula e Dilma) é um cúmplice da legitimação do tal “estado de exceção permanente” em nossa democracia.
O suposto radicalismo desta análise levou - pelo menos alguns dos seus destacados representantes - a jogarem água no moinho da direita autoritária e neoliberal durante a chamada “crise do mensalão”, cujo objetivo, como se vê pelo destino de um dos seus mais destacados jacobinos da moral (o Senador Demóstenes), não era combater a corrupção, mas inviabilizar o governo democrático reformista do Presidente Lula. Certamente os que participaram daquele movimento fizeram-no pela concepção, ora esclarecida, de que vivemos numa “exceção permanente” e, assim, Lula encarnaria (como Líder no sentido schmittiano), a plena soberania estatal. Por isso poderia ditar reformas e mudanças profundas, inclusive expressamente de natureza anticapitalista, usando as prerrogativas da “exceção” para realizá-las.
Felizmente, a cobertura que a mídia lhes deu naquele momento, não somou a ponto de potencializar a derrota do Presidente. O resultado é que quase 40 milhões de brasileiros saíram da pobreza, começaram a comer e a estudar, o que aparentemente não sensibiliza os nossos teóricos da exceção.
Pretendo problematizar algumas das premissas ou conclusões, que aparecem na matéria para, logo após, deter-me um pouco mais na tese de que vivemos um “estado de exceção permanente”. Atento mais para este ponto, porque desta concepção medular podem partir conclusões graves para a não aceitação de uma estratégia democrática, no difícil processo de construção da democracia no país, tendo como referência a Constituição de 88. Validada a ideia de que estamos num “estado de exceção permanente” nos restaria, como estratégia central, buscar a quebra do atual Estado Democrático de Direito, pois -segundo os referidos críticos- este Estado é em si mesmo um “estado de exceção”.
Entendo que se isso acontecesse, estaríamos perante um tremendo retrocesso da democracia política no Brasil, que assim transitaria de mais liberdades políticas para menos liberdades políticas, de menos elitismo para mais elitismo, de mais coesão social e combate às desigualdades dentro do capitalismo para mais desigualdade e fragmentação social dentro do mesmo sistema do capital.
Parto, na minha análise, das seguintes convicções: é preciso defender e expandir o Estado de Direito no Brasil, mesmo que ele só garanta avanços lentos e moderados para reduzir as desigualdades; não vivemos nenhum “estado de exceção” no Brasil, mas um Estado Democrático de Direito, com democracia política limitada, como em todas as democracias, pela força que o poder do capital exerce sobre as instituições do Estado e sobre a própria política em quaisquer sistemas democráticos do mundo; a democracia atual permite a inclusão de milhões de pessoas na vida produtiva, na sociedade formal, na educação e na política, criando sujeitos sociais novos e novas demandas, que tendem a alargar a democracia econômica e social e bloquear as reformas neoliberais ainda em curso no mundo; finalmente, além de termos sido derrotados na luta pela derrubada da ditadura (o que ocorreu foi uma transição negociada), nosso processo de mudanças institucionais e econômicas é mais difícil, porque enfrentamos um ambiente internacional de derrota das idéias libertárias da esquerda socialista, “queimadas” pela nossa escassa capacidade de renovação e também pelo fracasso das ditaduras burocráticas dos partidos comunistas tradicionais.
Esta transição, que teve como conseqüência altamente negativa as “salvaguardas” para os criminosos civis e militares dos aparatos clandestinos ou institucionalizados da repressão, por outro lado teve o mérito de evitar uma guerra civil de conseqüências certamente brutais para o nosso país e que jogaria, na sua base, brasileiros contra brasileiros, já que as pessoas do povo –de ambos lados- são sempre a “bucha-de canhão” de qualquer guerra ou revolução.
Passo a dar uma outra versão das premissas que sustentam a conclusão da “exceção permanente” em nosso país. Não é verdadeira a tese de que a “elite brasileira branca” permitiu-se molhar a mão de sangue e freqüentar-financiar câmaras de tortura. A “elite brasileira branca” (categoria política e sociológica tipicamente populista, engendrada para cortejar emoções insanas), enquanto a ditadura lhe servia foi majoritariamente indiferente às câmaras de tortura, como foram a classe operária e as camadas médias da sociedade. Parte minoritária da elite branca, empresarial ou não, inclusive não apoiava a ditadura nem a tortura, mas preferia uma oposição acordada, por dentro do regime ou a oposição através do partido consentido, o MDB. Uma minúscula parte da burguesia brasileira (elite branca) financiou ou frequentou câmaras de tortura.
Não é verdadeiro, também, que a ditadura retirou-se porque foi vitoriosa. Ela, na verdade, foi acuada e desenvolveu uma bem estruturada retirada em ordem, sem ser vitoriosa, apoiada por amplos setores da burguesia (a tal “elite branca”), porque o seu projeto não tinha mais condições de ser sustentado social e politicamente. A ditadura recebia uma forte oposição no plano internacional e os cofres começavam a esvaziar-se em função da primeira e da segunda crise do petróleo. Um certo “estatismo” de Geisel -embalado por uma ideologia nacionalista de direita- só poderia ser fulminado pelo empresariado liberal, dentro da democracia, não por dentro de uma ditadura.
A ditadura também sofreu severos golpes, com fortes reflexos internacionais, tanto da esquerda armada como da esquerda que militava dentro do MDB, com grandes repercussões internacionais e no plano interno. O consenso que ela conquistara, com o desenvolvimento industrial e o emprego, dissolveu-se confrontado com uma dura luta política e a resistência armada.
Não há, no Brasil, finalmente, nenhum acordo de “não esclarecimento”. Pelo contrário, dentro da transição conciliada este tema tem sido tratado com arrojo e seriedade, sem fazer provocações às corporações da Forças Armadas. Não só pelas organizações que defendem os direitos dos familiares dos mortos e desaparecidos e militam na defesa dos Direitos Humanos, mas também pelo Estado. Este, com as Caravanas da Anistia, que instituímos no Ministério da Justiça (interpretando a Lei da Anistia), anistiou os guerrilheiros do PC do B, Lamarca e Mariguela, além de outras centenas de resistentes ou revolucionários.
Posso testemunhar, como orientador destas políticas de governo naquele período, que isso foi feito com o estímulo e o apoio do Presidente Lula e com a sustentação de parte da base do governo no Congresso. O STF é que, numa decisão lamentável, interpretou a Lei de Anistia como aplicável aos torturadores, acolhendo o sentido que o regime militar em recuo, emprestou à Lei na época da sua aprovação.
Esta interpretação trouxe, sim, para dentro da transição democrática, até agora, a imunização penal dos assassinos e torturadores, fato que não caracteriza um regime de “exceção permanente”, mas uma limitação das democracias que sucedem ditaduras militares e não emergiram de revoluções. Através da Comissão da Verdade e das centenas de comissões que deverão se abrir no país, reabrir-se-á o tema da impunidade dos assassinatos e das torturas, que a ditadura promoveu inclusive fora da sua própria legalidade arbitrária. A continuidade desta luta seria impossível num regime de “exceção permanente”.
Passo a analisar a tese da “exceção permanente”.
Carl Schmitt, jurista e filósofo alemão de formação católica que deu sustentação às teses do nazismo, foi o grande inspirador da teoria do “estado de exceção permanente”. Schmitt, embora não admitisse de forma expressa, deu um estatuto histórico ao “estado da natureza”, de Hobbes. Para Schmitt, a soberania do Estado não consiste no monopólio da coerção ou da dominação - fundamentado e organizado artificialmente pelo Constituinte - mas na capacidade de decidir acima do artifício das instituições criadas pela política. Na sua época, a política liberal-democrática, segundo ele, degradada durante a República de Wheimar.
A soberania é identificada por Schmitt diretamente com a força indiscriminada, ou seja, ela, a soberania, reside na força que permite agir para suspender a própria validade das leis, o que faz do ordenamento uma pendência da própria vontade do soberano que, para Schmitt, está presente no Poder Executivo: através do Presidente, do Ditador, do Líder, o sistema de direito instaurado (o ordenamento), está sempre “à disposição” de quem decide. A exceção, portanto, a capacidade de declarar a exceção, é a regra que define a própria soberania: o uso da exceção é o seu verdadeiro conteúdo e a garantia ou a suspensão do Direito, tanto na normalidade política e na estabilidade social, como na crise e na instabilidade.
No seu famoso e brilhante texto “O Fuhrer protege o Direito” - sobre o discurso de Adolf Hitler no Reichstag em 13 de julho de 1934 - Carl Schmitt, citando o próprio Hitler, faz um esclarecimento lapidar da sua teoria da normalidade e da exceção e, ao mesmo tempo, mostra como promove a exceção à condição de regra e fundamento do Estado soberano: “ O Fuhrer protege o direito do pior abuso, quando ele no instante do perigo cria o direito sem mediações, por força da sua liderança (Fhurertum) e enquanto Juiz Supremo: (e Schmitt cita Hitler) – “Nessa hora fui responsável pelo destino da nação alemã e com isso juiz supremo do povo alemão. O verdadeiro líder (Fuhrer) sempre é também juiz. Da liderança (Fuhrertum) emana a judicatura (Richtertum). Quem quiser separar ambas ou mesmo opô-las ou transforma o juiz no contra-lider (Gegenfuhrer) ou em instrumento do contra-líder e procurar paralisar (aus den Angeln heben) o Estado com a ajuda do Judiciário. Eis um método muitas vezes experimentado, da destruição não apenas do Estado, mas também do Direito.”
Mais adiante, Schmitt assevera dois fundamentos importantes da definição da exceção, como base da soberania estatal, ao criticar os juristas democráticos de Wheimar. Primeiro argumento: “Do mesmo modo o Direito Constitucional tornou-se, nessa corrente de pensamento, a Magna Carta dos que cometem alta traição e traem a pátria. Com isso o Judiciário se transforma em uma engrenagem de imputações (Zurechnungsbetrib), sobre cujo funcionamento previsível e por ele calculável o criminoso tem um direito subjetivo adquirido.” (Neste argumento, Schmitt fundamenta que a exceção deve estar disponível à vontade do líder, porque as garantias constitucionais do Estado de Direito Liberal Democrático, permitem que os criminosos contra o Estado -os revolucionários ou sociais-democratas, que apoiavam as conquistas de Wheimar - teriam a proteção do Judiciário, como guardião da Constituição, pois só ele poderia definir a “exceção”, segundo aquele ordenamento “artificial” do Estado de Direito).
Segundo argumento: “Todo o direito tem a sua origem no direito do povo à vida. Toda a lei do Estado, toda a sentença judicial contém apenas tanto direito quanto lhe aflue dessa fonte (o Líder, o Fuhrer). O resto não é direito, mas ‘um tecido de normas coercitivas, do qual um criminoso hábil zomba’.” (Neste argumento, ele identifica sem mediações o Líder com o Povo, depois de mostrar que esta vigilância dos interesses do povo –que é uma “comunidade concreta” como teorizava Schmitt- está na soberania do Estado, que , por seu turno é realizada pelo Líder (“fonte superior” do Direito).
Schmitt deixa claro, nesta parte do seu discurso teórico - sem nenhuma sofisticação diga-se de passagem - porquê o “Fuhrer protege o direito” e, principalmente, de quem ele protege: daquele povo concreto em movimento contra o Estado e contra o seu Líder. Assim, o “estado de exceção permanente” é a regra do ditador unipessoal, como executivo que comanda o Estado e como Juiz que decide sobre a suspensão das leis e do Direito – do ordenamento.
Dizer que no Brasil vivemos num estado de “exceção permanente” é um arroubo esquerdista e não uma formulação teórica séria. Tanto pode ser uma idealização de um regime democrático, que está num horizonte improvável, como uma abstração dos seus ideais de origem, plebeus e revolucionários. Também pode ser uma provocação à margem da História, para estimular que não se faça política dentro da democracia, pois num regime de exceção o que se deve perseguir, conscientemente, é a sua derrubada. Sim, a sua derrubada, pois a “exceção permanente” extingue a política e o crime, absorvendo ambos, internalizando-os no Estado, monopolizando, tanto a fabricação das leis como a sua violação impune.
A “exceção permanente” é, pois, a supressão radical das condições do Estado minimamente público, pois este se torna um grande ente privado, propriedade de um Líder, cuja força está na transformação do poder de polícia e do poder do sistema repressivo em força política, capaz de promover a sua aparente legitimação pelo terror e pelo silêncio.
O sucedâneo da Constituição de 88 é a democracia política, a inclusão social e educacional massiva. É o início da revolução democrática no Brasil, que tanto pode retroceder como avançar, aí restaurando a idéia do socialismo, conjugada com a democracia, a pluralidade política e a inserção soberana do país num mundo hostil e globalizado. A “exceção permanente” faria todos os democratas, socialistas ou não, comunistas ou não, esquerdistas ou não, encontrarem-se no fundo dos cárceres, para novamente revisar as concepções que lhes levaram à divisão ou à impotência.
O que parece (pelo menos pela matéria que foi publicada na Carta Maior), é que o radicalismo das visões ali expostas, joga para outro lado da cerca -para a cumplicidade com a transição conciliada - todos os que defendem que não há um “estado de exceção permanente” no Brasil, logo, quem não concorda com a estratégia política que parte desta constatação original (oposição extrema aos governos Lula e Dilma) é um cúmplice da legitimação do tal “estado de exceção permanente” em nossa democracia.
O suposto radicalismo desta análise levou - pelo menos alguns dos seus destacados representantes - a jogarem água no moinho da direita autoritária e neoliberal durante a chamada “crise do mensalão”, cujo objetivo, como se vê pelo destino de um dos seus mais destacados jacobinos da moral (o Senador Demóstenes), não era combater a corrupção, mas inviabilizar o governo democrático reformista do Presidente Lula. Certamente os que participaram daquele movimento fizeram-no pela concepção, ora esclarecida, de que vivemos numa “exceção permanente” e, assim, Lula encarnaria (como Líder no sentido schmittiano), a plena soberania estatal. Por isso poderia ditar reformas e mudanças profundas, inclusive expressamente de natureza anticapitalista, usando as prerrogativas da “exceção” para realizá-las.
Felizmente, a cobertura que a mídia lhes deu naquele momento, não somou a ponto de potencializar a derrota do Presidente. O resultado é que quase 40 milhões de brasileiros saíram da pobreza, começaram a comer e a estudar, o que aparentemente não sensibiliza os nossos teóricos da exceção.
Pretendo problematizar algumas das premissas ou conclusões, que aparecem na matéria para, logo após, deter-me um pouco mais na tese de que vivemos um “estado de exceção permanente”. Atento mais para este ponto, porque desta concepção medular podem partir conclusões graves para a não aceitação de uma estratégia democrática, no difícil processo de construção da democracia no país, tendo como referência a Constituição de 88. Validada a ideia de que estamos num “estado de exceção permanente” nos restaria, como estratégia central, buscar a quebra do atual Estado Democrático de Direito, pois -segundo os referidos críticos- este Estado é em si mesmo um “estado de exceção”.
Entendo que se isso acontecesse, estaríamos perante um tremendo retrocesso da democracia política no Brasil, que assim transitaria de mais liberdades políticas para menos liberdades políticas, de menos elitismo para mais elitismo, de mais coesão social e combate às desigualdades dentro do capitalismo para mais desigualdade e fragmentação social dentro do mesmo sistema do capital.
Parto, na minha análise, das seguintes convicções: é preciso defender e expandir o Estado de Direito no Brasil, mesmo que ele só garanta avanços lentos e moderados para reduzir as desigualdades; não vivemos nenhum “estado de exceção” no Brasil, mas um Estado Democrático de Direito, com democracia política limitada, como em todas as democracias, pela força que o poder do capital exerce sobre as instituições do Estado e sobre a própria política em quaisquer sistemas democráticos do mundo; a democracia atual permite a inclusão de milhões de pessoas na vida produtiva, na sociedade formal, na educação e na política, criando sujeitos sociais novos e novas demandas, que tendem a alargar a democracia econômica e social e bloquear as reformas neoliberais ainda em curso no mundo; finalmente, além de termos sido derrotados na luta pela derrubada da ditadura (o que ocorreu foi uma transição negociada), nosso processo de mudanças institucionais e econômicas é mais difícil, porque enfrentamos um ambiente internacional de derrota das idéias libertárias da esquerda socialista, “queimadas” pela nossa escassa capacidade de renovação e também pelo fracasso das ditaduras burocráticas dos partidos comunistas tradicionais.
Esta transição, que teve como conseqüência altamente negativa as “salvaguardas” para os criminosos civis e militares dos aparatos clandestinos ou institucionalizados da repressão, por outro lado teve o mérito de evitar uma guerra civil de conseqüências certamente brutais para o nosso país e que jogaria, na sua base, brasileiros contra brasileiros, já que as pessoas do povo –de ambos lados- são sempre a “bucha-de canhão” de qualquer guerra ou revolução.
Passo a dar uma outra versão das premissas que sustentam a conclusão da “exceção permanente” em nosso país. Não é verdadeira a tese de que a “elite brasileira branca” permitiu-se molhar a mão de sangue e freqüentar-financiar câmaras de tortura. A “elite brasileira branca” (categoria política e sociológica tipicamente populista, engendrada para cortejar emoções insanas), enquanto a ditadura lhe servia foi majoritariamente indiferente às câmaras de tortura, como foram a classe operária e as camadas médias da sociedade. Parte minoritária da elite branca, empresarial ou não, inclusive não apoiava a ditadura nem a tortura, mas preferia uma oposição acordada, por dentro do regime ou a oposição através do partido consentido, o MDB. Uma minúscula parte da burguesia brasileira (elite branca) financiou ou frequentou câmaras de tortura.
Não é verdadeiro, também, que a ditadura retirou-se porque foi vitoriosa. Ela, na verdade, foi acuada e desenvolveu uma bem estruturada retirada em ordem, sem ser vitoriosa, apoiada por amplos setores da burguesia (a tal “elite branca”), porque o seu projeto não tinha mais condições de ser sustentado social e politicamente. A ditadura recebia uma forte oposição no plano internacional e os cofres começavam a esvaziar-se em função da primeira e da segunda crise do petróleo. Um certo “estatismo” de Geisel -embalado por uma ideologia nacionalista de direita- só poderia ser fulminado pelo empresariado liberal, dentro da democracia, não por dentro de uma ditadura.
A ditadura também sofreu severos golpes, com fortes reflexos internacionais, tanto da esquerda armada como da esquerda que militava dentro do MDB, com grandes repercussões internacionais e no plano interno. O consenso que ela conquistara, com o desenvolvimento industrial e o emprego, dissolveu-se confrontado com uma dura luta política e a resistência armada.
Não há, no Brasil, finalmente, nenhum acordo de “não esclarecimento”. Pelo contrário, dentro da transição conciliada este tema tem sido tratado com arrojo e seriedade, sem fazer provocações às corporações da Forças Armadas. Não só pelas organizações que defendem os direitos dos familiares dos mortos e desaparecidos e militam na defesa dos Direitos Humanos, mas também pelo Estado. Este, com as Caravanas da Anistia, que instituímos no Ministério da Justiça (interpretando a Lei da Anistia), anistiou os guerrilheiros do PC do B, Lamarca e Mariguela, além de outras centenas de resistentes ou revolucionários.
Posso testemunhar, como orientador destas políticas de governo naquele período, que isso foi feito com o estímulo e o apoio do Presidente Lula e com a sustentação de parte da base do governo no Congresso. O STF é que, numa decisão lamentável, interpretou a Lei de Anistia como aplicável aos torturadores, acolhendo o sentido que o regime militar em recuo, emprestou à Lei na época da sua aprovação.
Esta interpretação trouxe, sim, para dentro da transição democrática, até agora, a imunização penal dos assassinos e torturadores, fato que não caracteriza um regime de “exceção permanente”, mas uma limitação das democracias que sucedem ditaduras militares e não emergiram de revoluções. Através da Comissão da Verdade e das centenas de comissões que deverão se abrir no país, reabrir-se-á o tema da impunidade dos assassinatos e das torturas, que a ditadura promoveu inclusive fora da sua própria legalidade arbitrária. A continuidade desta luta seria impossível num regime de “exceção permanente”.
Passo a analisar a tese da “exceção permanente”.
Carl Schmitt, jurista e filósofo alemão de formação católica que deu sustentação às teses do nazismo, foi o grande inspirador da teoria do “estado de exceção permanente”. Schmitt, embora não admitisse de forma expressa, deu um estatuto histórico ao “estado da natureza”, de Hobbes. Para Schmitt, a soberania do Estado não consiste no monopólio da coerção ou da dominação - fundamentado e organizado artificialmente pelo Constituinte - mas na capacidade de decidir acima do artifício das instituições criadas pela política. Na sua época, a política liberal-democrática, segundo ele, degradada durante a República de Wheimar.
A soberania é identificada por Schmitt diretamente com a força indiscriminada, ou seja, ela, a soberania, reside na força que permite agir para suspender a própria validade das leis, o que faz do ordenamento uma pendência da própria vontade do soberano que, para Schmitt, está presente no Poder Executivo: através do Presidente, do Ditador, do Líder, o sistema de direito instaurado (o ordenamento), está sempre “à disposição” de quem decide. A exceção, portanto, a capacidade de declarar a exceção, é a regra que define a própria soberania: o uso da exceção é o seu verdadeiro conteúdo e a garantia ou a suspensão do Direito, tanto na normalidade política e na estabilidade social, como na crise e na instabilidade.
No seu famoso e brilhante texto “O Fuhrer protege o Direito” - sobre o discurso de Adolf Hitler no Reichstag em 13 de julho de 1934 - Carl Schmitt, citando o próprio Hitler, faz um esclarecimento lapidar da sua teoria da normalidade e da exceção e, ao mesmo tempo, mostra como promove a exceção à condição de regra e fundamento do Estado soberano: “ O Fuhrer protege o direito do pior abuso, quando ele no instante do perigo cria o direito sem mediações, por força da sua liderança (Fhurertum) e enquanto Juiz Supremo: (e Schmitt cita Hitler) – “Nessa hora fui responsável pelo destino da nação alemã e com isso juiz supremo do povo alemão. O verdadeiro líder (Fuhrer) sempre é também juiz. Da liderança (Fuhrertum) emana a judicatura (Richtertum). Quem quiser separar ambas ou mesmo opô-las ou transforma o juiz no contra-lider (Gegenfuhrer) ou em instrumento do contra-líder e procurar paralisar (aus den Angeln heben) o Estado com a ajuda do Judiciário. Eis um método muitas vezes experimentado, da destruição não apenas do Estado, mas também do Direito.”
Mais adiante, Schmitt assevera dois fundamentos importantes da definição da exceção, como base da soberania estatal, ao criticar os juristas democráticos de Wheimar. Primeiro argumento: “Do mesmo modo o Direito Constitucional tornou-se, nessa corrente de pensamento, a Magna Carta dos que cometem alta traição e traem a pátria. Com isso o Judiciário se transforma em uma engrenagem de imputações (Zurechnungsbetrib), sobre cujo funcionamento previsível e por ele calculável o criminoso tem um direito subjetivo adquirido.” (Neste argumento, Schmitt fundamenta que a exceção deve estar disponível à vontade do líder, porque as garantias constitucionais do Estado de Direito Liberal Democrático, permitem que os criminosos contra o Estado -os revolucionários ou sociais-democratas, que apoiavam as conquistas de Wheimar - teriam a proteção do Judiciário, como guardião da Constituição, pois só ele poderia definir a “exceção”, segundo aquele ordenamento “artificial” do Estado de Direito).
Segundo argumento: “Todo o direito tem a sua origem no direito do povo à vida. Toda a lei do Estado, toda a sentença judicial contém apenas tanto direito quanto lhe aflue dessa fonte (o Líder, o Fuhrer). O resto não é direito, mas ‘um tecido de normas coercitivas, do qual um criminoso hábil zomba’.” (Neste argumento, ele identifica sem mediações o Líder com o Povo, depois de mostrar que esta vigilância dos interesses do povo –que é uma “comunidade concreta” como teorizava Schmitt- está na soberania do Estado, que , por seu turno é realizada pelo Líder (“fonte superior” do Direito).
Schmitt deixa claro, nesta parte do seu discurso teórico - sem nenhuma sofisticação diga-se de passagem - porquê o “Fuhrer protege o direito” e, principalmente, de quem ele protege: daquele povo concreto em movimento contra o Estado e contra o seu Líder. Assim, o “estado de exceção permanente” é a regra do ditador unipessoal, como executivo que comanda o Estado e como Juiz que decide sobre a suspensão das leis e do Direito – do ordenamento.
Dizer que no Brasil vivemos num estado de “exceção permanente” é um arroubo esquerdista e não uma formulação teórica séria. Tanto pode ser uma idealização de um regime democrático, que está num horizonte improvável, como uma abstração dos seus ideais de origem, plebeus e revolucionários. Também pode ser uma provocação à margem da História, para estimular que não se faça política dentro da democracia, pois num regime de exceção o que se deve perseguir, conscientemente, é a sua derrubada. Sim, a sua derrubada, pois a “exceção permanente” extingue a política e o crime, absorvendo ambos, internalizando-os no Estado, monopolizando, tanto a fabricação das leis como a sua violação impune.
A “exceção permanente” é, pois, a supressão radical das condições do Estado minimamente público, pois este se torna um grande ente privado, propriedade de um Líder, cuja força está na transformação do poder de polícia e do poder do sistema repressivo em força política, capaz de promover a sua aparente legitimação pelo terror e pelo silêncio.
O sucedâneo da Constituição de 88 é a democracia política, a inclusão social e educacional massiva. É o início da revolução democrática no Brasil, que tanto pode retroceder como avançar, aí restaurando a idéia do socialismo, conjugada com a democracia, a pluralidade política e a inserção soberana do país num mundo hostil e globalizado. A “exceção permanente” faria todos os democratas, socialistas ou não, comunistas ou não, esquerdistas ou não, encontrarem-se no fundo dos cárceres, para novamente revisar as concepções que lhes levaram à divisão ou à impotência.
Tarso Genro – Governador do Estado do Rio Grande do Sul – 24.07.2012
IN “Carta
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