Após o
recente ciclo de ascensão social dos mais pobres, seria preciso recuperar o
ímpeto para grandes transformações.
Vladimir Safatle
O governo Dilma alcançou a metade de seu mandato.
Eis um bom momento para colocar questões a respeito dos rumos que o Brasil
tomou desde o primeiro governo Lula. Rumos próprios à mais longa experiência de
continuidade programática dos períodos democráticos.
Há tempos, procuramos o tom adequado para
avaliações dessa natureza. A experiência do PT no poder suscita reações muito
apaixonadas e pouco analíticas. Por um lado, vemos aqueles que não se cansam de
assumir um tom laudatório, insistindo na genialidade política de Lula, no novo
protagonismo brasileiro na cena internacional, no caráter bem-sucedido de seu
“capitalismo de Estado” e na inegável constituição de uma nova classe média.
Por outro, temos a negação absoluta na qual as conquistas do governo seriam
meros fenômenos “naturais” advindos de decisões tomadas por governos
anteriores, as negociações políticas teriam alcançado um nível de corrupção
“nunca visto”, assim como o aparelhamento do Estado. Tais análises usam, na
maioria das vezes, esquemas liberais que, em plena crise econômica global,
continuam a ver o Estado como “mau gerente” (como se empresas como Citibank,
Lehman Brothers e GM, salvas pelo Estado, fossem bem gerenciadas) e ter uma
perspectiva, no mínimo, seletiva a respeito das indignações causadas pela
corrupção.
Essas avaliações parciais nos impedem de tentar
compreender o modelo representado por aquilo que o cientista político André
Singer chamou de “lulismo” com seus resultados concretos e suas limitações.
Compreendê-lo é tarefa importante neste momento, porque talvez estejamos
assistindo, com o governo Dilma, ao esgotamento do lulismo. Um esgotamento cujo
sintoma mais evidente é o fato de Dilma Rousseff parecer encaminhar-se para ser
a gerente de um lulismo de baixo crescimento.
Talvez a pergunta que mais se coloque atualmente é:
o que significam esses dois últimos anos de baixo crescimento? Um erro de
dosagem nas políticas macroeconômicas, uma inflexão sem maiores significados
resultante do mal cenário internacional ou a prova de que o modelo em vigor no
panorama brasileiro chegou a um impasse?
Sabemos o que foi o acordo que produziu o lulismo.
Ele consistiu na transformação do Estado em indutor de processos de ascensão
por meio da consolidação de sistemas de proteção social, do aumento real do
salário mínimo e incentivo ao consumo. Na outra ponta do processo, o governo
Lula autocompreendeu-se como estimulador da reconstrução do empresariado
nacional em seus desejos de globalização. Para tanto, a função do BNDES como
grande financiador do capitalismo nacional consolidou-se de vez.
No campo político, o lulismo baseou-se, por um
lado, na transformação de grandes alianças heteróclitas em única condição
possível de “governabilidade”, retirando da pauta dos debates políticos toda e
qualquer modificação estrutural nos modos de gestão do poder. Ele ainda
referendou um modo de gestão de conflitos políticos que encontra suas raízes
brasileiras na Era Vargas. Trata-se da transposição dos conflitos entre setores
da sociedade civil para o interior do Estado. Assim, durante o governo Lula, o
conflito entre os monetaristas e desenvolvimentistas encontrou guarida na briga
entre o Banco Central e o Ministério da Fazenda. A luta entre ruralistas e
ecologistas incrustou-se nos embates entre o Ministério da Agricultura e o
Ministério do Meio Ambiente. Do mesmo modo, as querelas entre os militares e os
defensores dos direitos humanos expressaram-se na colisão entre o Ministério da
Defesa e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos.
O que seria, em situações normais, sintoma de
esquizofrenia política foi, graças à posição de Lula como “mediador universal”,
uma oportunidade para o governo “ganhar em todos os tabuleiros”, sendo, ao
mesmo tempo, o governo e sua própria oposição. Assim, por “fagocitose de
posições” o governo Lula conseguiu o feito de esvaziar tanto as oposições à
direita quanto à esquerda. Contribuiu para isso a inanição intelectual completa
da oposição à direita (PSDB, DEM e PPS) com seus acordos tácitos com os setores
mais atrasados do debate de costumes e suas cruzadas moralizadoras feitas por
frequentadores de escândalos de corrupção.
Mas como o governo Dilma administrou tal nova
situação? No plano -econômico, tudo se passou como se o governo acreditasse que
a continuidade bastasse. No entanto, a despeito dos avanços ligados à ascensão
social de uma nova classe média, o Brasil continuava um país de níveis brutais
de desigualdade. Por isso, seu crescimento só poderia trazer problemas como os
que vemos em outros países emergentes de rápido crescimento (como Rússia,
Angola etc.).
Como uma larga parcela da nova riqueza circula pelas mãos de um grupo bastante restrito com demandas de consumo cada vez mais ostentatórias, como o governo foi incapaz de modificar tal situação por meio de uma rigorosa política de impostos sobre a renda (impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo, sobre herança etc.), criou-se uma situação na qual a parcela mais rica da população pressiona o custo de vida para cima. Não por acaso, entre as cidades mais caras do mundo encontramos atualmente: Luanda, Moscou e São Paulo. Ou seja, o governo parou de pensar a desigualdade como o problema central da sociedade brasileira.
Como uma larga parcela da nova riqueza circula pelas mãos de um grupo bastante restrito com demandas de consumo cada vez mais ostentatórias, como o governo foi incapaz de modificar tal situação por meio de uma rigorosa política de impostos sobre a renda (impostos sobre grandes fortunas, sobre consumo conspícuo, sobre herança etc.), criou-se uma situação na qual a parcela mais rica da população pressiona o custo de vida para cima. Não por acaso, entre as cidades mais caras do mundo encontramos atualmente: Luanda, Moscou e São Paulo. Ou seja, o governo parou de pensar a desigualdade como o problema central da sociedade brasileira.
Acrescenta-se a isso o fato de os salários brasileiros
continuarem baixos e sem previsão de grandes modificações. A maioria absoluta
dos novos empregos criados nos últimos dez anos tem salários de até um e meio
salário mínimo. Uma opção para a melhoria dos salários seria a diminuição dos
itens que devem ser pagos pelas famílias. Uma família da nova classe média
brasileira deve gastar, porém, quase metade de seus rendimentos com educação e
saúde privada. Se o governo tivesse um programa para a universalização da
educação e saúde pública de qualidade, poderia contribuir, por meio do
fortalecimento do serviço público, para a minimização dos efeitos perversos da
desigualdade. Mas o governo Dilma será lembrado, em 2012, pela sua
desconsideração soberana com os professores em greve por melhores condições de
trabalho e infraestrutura. Diga-se de passagem, é notória a relação
problemática do governo com os sindicatos.
Como se não bastasse, a política lulista de
financiamento estatal do capitalismo nacional levou ao extremo as tendências
monopolistas da economia brasileira. O capitalismo brasileiro é hoje um
capitalismo monopolista de Estado, onde o Estado é o financiador dos processos
de oligopolização e cartelização da economia. Exemplo pedagógico nesse sentido
foi a incrível história da transformação do setor de frigoríficos em um
monopólio no qual uma empresa comprou todas as demais se utilizando de dinheiro
do BNDES. Em vez de impedir o processo de concentração, o Estado o estimulou.
Como resultado, atualmente não há setor da economia (telefonia, aviação,
produção de etanol etc.) que não seja controlado por cartéis, com seus serviços
de péssima qualidade e seus preços extorsivos.
Ou seja, economistas pagos regiamente por bancos e
consultorias entoam, de maneira infinita, o mantra do alto custo da produção
por causa dos impostos, do alto custo da mão de obra em razão dos direitos
trabalhistas e da intervenção estatal (como se esquecessem de que as nações que
mais crescem, como China, Rússia e Índia, são países de forte intervenção
estatal na economia). Melhor seria se eles se perguntassem sobre o impacto da
desigualdade e dos processos de oligopolização no baixo crescimento brasileiro.
No plano político, a situação é também digna de
profunda preocupação. Por não poder encarnar o papel de “mediadora universal”,
Dilma optou por um governo com menos bipolaridade e mais centralizado. Com
isso, selou-se de vez a incapacidade do governo em formular e discutir
alternativas. Todos falam em uma única voz, mas ela não diz muito mais do que
se espera na gestão cotidiana. Por isso, os quadros do governo são marcados por
uma tendência a certo “gerencialismo”, onde grandes modificações saíram
completamente do debate. Contribuiu para isso a trajetória do PT de afastamento
definitivo dos núcleos de debate da sociedade civil (universidades, movimentos
sociais etc.).
Essa saída de cena das grandes modificações
encontra, na vida partidária brasileira, sua expressão mais bem-acabada. No
governo Dilma consolidaram-se dois partidos que têm, como grande
característica, não ter característica alguma. PSD e PSB são
“partidos-curinga”, ou seja, podem estar em qualquer jogo, fazer qualquer tipo
imaginável de alianças, até porque não representam, de maneira estruturada,
setor algum da sociedade civil. Eles parecem indicar o futuro da política
brasileira, isso enquanto não ocorrer uma radicalização paulatina dos extremos,
talvez a única condição para que voltemos a pensar politicamente.
Vladimir Safatle – Filósofo professor da FFLCH/USP – 06.01.2013
IN
“Carta Capital” – http://www.cartacapital.com.br/politica/os-impasses-do-lulismo/?autor=961