O voto
no Brasil antecedeu a democracia e conviveu com diversos regimes, inclusive o
militar.
Wilson Tosta
RIO -
De volta a um tema que visitara dez anos antes - a história das eleições
brasileiras -, o pesquisador Jairo Nicolau, pós-doutor em ciência política e
professor titular da disciplina na UFRJ, encontrou um País surpreendentemente
parecido em seu passado político com outros que hoje são festejadas
democracias. Assim como a Inglaterra, o Brasil tinha eleições já no século 18,
quando colonos escolhiam pelo voto vereadores, juízes de paz e procuradores, e,
da mesma forma que os EUA, viveu no século 19 pleitos fraudados. Curiosamente,
esses mesmos países estavam entre os que inspiraram intelectuais e juristas no
desenho legal das instituições brasileiras que foram palco da vida política
nacional desde a Independência. Nicolau descobriu ainda um Brasil que, há mais
de cem anos, desenvolve “tecnologias” na tentativa de tornar mais confiáveis as
disputas. Nosso primeiro título eleitoral nasceu em 1875, quando a República
ainda era apenas uma ideia.
“Os
legisladores brasileiros sempre foram muito criativos”, diz Nicolau, que está
lançandoEleições no Brasil - Do Império aos Dias Atuais, pela editora
Zahar, dez anos depois deHistória do Voto no Brasil, um livro de bolso
pela mesma editora, com a mesma temática, porém mais limitado.
Alguns
pontos se destacam na investigação mais recente de Jairo Nicolau sobre as
eleições. Um é que, ao mesmo tempo que o País atravessou muitas vezes períodos
de instabilidade política, as eleições repetiram-se com regularidade razoável -
ainda que sua validade, como instrumento de representação, fosse muitas vezes
questionável. Outro é que alguns sistemas eleitorais duraram períodos
relativamente longos por aqui.
O voto
censitário (que exigia que o cidadão, para votar, tivesse um certo nível de
renda) marcou todo o Império brasileiro (de 1824 a 1889); a votação indireta
para Câmara e Senado foi abolida apenas em 1881; e diversos tipos de eleição
distrital foram usados durante a monarquia do Brasil. O voto distrital,
inclusive, entrou pela República e só deu lugar ao proporcional em 1932, depois
que a Revolução de 1930 mandou a República Velha para os livros de história.
Então
as eleições no Brasil vieram antes da democracia? Segundo Nicolau, sim, mas
isso não é exclusividade brasileira. O mesmo ocorreu em outros países hoje
vistos como democracias modelo. Muito antes da queda do regime militar, em
1985, assinala, o Brasil já tinha uma exuberante variedade de instituições
eleitorais. Elas existiam até sob a ditadura instaurada em 1964, que, mesmo com
limitações, bipartidarismo imposto, falta de liberdades democráticas e
legislação autoritária, realizou eleições com regularidade, embora para um
Congresso Nacional sem poderes efetivos e constrangido pela força. Em 190 anos
de vida independente, apenas durante 9 - de 1937 a 1945, no Estado Novo - o
País ficou formalmente sem pleitos eleitorais. Uma peculiaridade brasileira,
assim como o surpreendente aumento de participação eleitoral precisamente no
mais duro período de fechamento da política nacional: a ditadura militar.
Wilson
Tosta – As pessoas olham para as eleições hoje, com voto obrigatório, partidos
organizados, TREs, registro prévio de candidatos, campanha eleitoral
regulamentada, e acham que sempre foi assim. No entanto, em termos históricos,
esses são fenômenos relativamente recentes, não?
Jairo
Nicolau – Naturalizamos nossas instituições eleitorais. Mas
cada uma delas tem uma história particular. O Brasil tem uma das mais
duradouras experiências de eleições do mundo, comparável às de importantes
países. Mas a prática eleitoral nos nossos dias é muito diferente da de décadas
atrás. Por exemplo, em meados do século 19 nenhum país tinha adotado o voto
secreto e o alistamento prévio de eleitores, apenas homens da elite tinham o
direito de voto e as fraudes ocorriam em larga escala.
Wilson
Tosta – O Brasil parece ter sido pioneiro em, digamos, tecnologia eleitoral - o
primeiro título eleitoral brasileiro é de 1875. Aqui, inovamos ou imitamos?
Jairo
Nicolau – Os legisladores brasileiros sempre foram muito
criativos com a “tecnologia” eleitoral. Não tenho informações sobre o uso de
documentos de identificação eleitoral em outros países, mas o título de eleitor
brasileiro talvez seja um dos primeiros do mundo. As medidas para garantir o
sigilo do voto, primeiro o envelope oficial e depois a cédula única, foram
decisões importantes. Recentemente, o Brasil se tornou provavelmente o primeiro
país a ter um controle eletrônico do processo de votação, em um ciclo que
começa no alistamento, chega à votação na urna eletrônica e termina com a
apuração.
Wilson
Tosta – Seu livro começa nas eleições da Colônia. Esses pleitos eram
importantes?
Jairo
Nicolau – Desde o século 16 a coroa portuguesa criou um
sistema de eleições para cargos em âmbito municipal. As regras vigoravam tanto
em Portugal como nas colônias. Fiquei impressionado com a sofisticação das
regras eleitorais. Encontrei alguns estudos de caso que mostram que havia
eleições regulares. Mas gostaria de ter achado mais pesquisas sobre o tema para
ter segurança de dizer que as eleições realmente eram uma rotina da governança
colonial.
Wilson
Tosta – Como eram as eleições no Império?
Jairo
Nicolau – De 1825 até o fim do Império, em 1889, foram mais
de seis décadas de eleições. Um fato que chama a atenção é a regularidade dos
pleitos no período. Para dar um exemplo: houve 27 eleições para a Assembleia
Legislativa da Província do Rio de Janeiro. A legislação eleitoral foi muito
alterada nessas seis décadas e não creio que seja possível tratá-la como um
bloco monolítico. Os relatos mostram que as fraudes foram amplamente
utilizadas, mas a partir da década de 1880 elas diminuíram, graças à criação do
título de eleitor e à administração do pleito pelo Judiciário.
Wilson
Tosta – Pode-se fazer um paralelo do Brasil da época com outros países?
Jairo
Nicolau – O Brasil tem uma das mais ricas experiências
eleitorais do século 19. As fraudes eleitorais não eram uma singularidade do
País. Muitos estudos mostram que eram uma prática generalizada na Europa, nos
Estados Unidos e em outros países latino-americanos.
Wilson
Tosta – É interessante notar que, ao longo do Império e da República Velha,
mais de cem anos, o País teve voto distrital. A que podemos atribuir isso?
Jairo
Nicolau – O que chamamos sistema eleitoral majoritário
distrital foi o primeiro a ser adotado nas eleições para o Parlamento dos
países europeus. O sistema proporcional é uma invenção do final do século 19 e
foi adotado pela primeira vez na Bélgica, em 1899. Um dos temas centrais do
debate sobre a reforma eleitoral feito no Império e na Primeira República foi a
ampliação da representação das minorias, entendido na época como os grupos não
dominantes das elites estaduais. Só no século 20 se descobriu que a melhor
forma de fazer isso seria por intermédio da representação proporcional.
Wilson
Tosta – Podemos dizer que somente após a Revolução de 30 as eleições no País
ganharam mais seriedade ou isso é uma simplificação?
Jairo
Nicolau – O grande marco da história eleitoral do Brasil é o
Código Eleitoral de 1932, que aliás faz 80 anos. Ele criou a Justiça Eleitoral,
ampliou o direito de voto para as mulheres, introduziu regras para o sigilo do
voto e adotou a representação proporcional. As duas eleições da década de 1930 (1933
e 1934) são consideradas pelos atores da época como eleições limpas e
competitivas, embora ainda com reduzido número de eleitores.
Wilson
Tosta – Seu livro levanta alguns dados curiosos. Um, mais conhecido, é que o
País teve, por um período curto, representação classista, deputados eleitos por
categorias profissionais, ao lado de representantes gerais. Outro é que chegou
a ser possível o registro de candidaturas de grupos de eleitores e candidaturas
avulsas. Como essas instituições funcionaram?
Jairo
Nicolau – O governo provisório de 1930 inventou um sistema
representativo que combinava um Legislativo tradicional - deputados eleitos
pela população - com uma parte de representantes eleitos pelos sindicatos, de
trabalhadores e patronais. Curiosamente, a representação corporativa não foi
proposta pelo grupo de juristas que criou o Código de 1932. Essa era uma
reivindicação do Clube 3 de Outubro, que apoiava Getúlio Vargas, e foi adotada
sem nenhuma discussão pública. Nos anos 1930 ainda não estava tão claro que os
partidos teriam o monopólio da representação como aconteceria depois. Nas
eleições de 1933 e 1934 concorreram partidos, ligas, associações e candidatos
avulsos. Mas no cômputo geral os candidatos avulsos não foram tão
bem-sucedidos.
Wilson Tosta – Quando o voto proporcional entra em cena no Brasil?
Uma primeira versão de voto proporcional foi adotado em 1932. Mas nesse caso ainda em combinação com um sistema majoritário. A representação proporcional de lista (modelo ainda em vigor) começou a ser utilizada em 1945. A defesa da representação proporcional não foi uma causa de partidos ou movimentos sociais, mas praticamente de um único homem: Joaquim de Assis Brasil, um político gaúcho. Durante toda a Primeira República, ele defendeu quase solitariamente a representação proporcional. Coube a ele a presidência da comissão responsável por elaborar o Código de 1932. O que facilitou a escolha por esse sistema.
Wilson Tosta – Quando o voto proporcional entra em cena no Brasil?
Uma primeira versão de voto proporcional foi adotado em 1932. Mas nesse caso ainda em combinação com um sistema majoritário. A representação proporcional de lista (modelo ainda em vigor) começou a ser utilizada em 1945. A defesa da representação proporcional não foi uma causa de partidos ou movimentos sociais, mas praticamente de um único homem: Joaquim de Assis Brasil, um político gaúcho. Durante toda a Primeira República, ele defendeu quase solitariamente a representação proporcional. Coube a ele a presidência da comissão responsável por elaborar o Código de 1932. O que facilitou a escolha por esse sistema.
Wilson
Tosta – Houve algum motivo especial para adoção do voto proporcional em 45?
Jairo
Nicolau – Na realidade, ele foi criado como uma mudança no
sistema misto inventado em 1932. O sistema era tão complexo - havia a opção de
o eleitor votar em mais de um nome - que causou enorme confusão. Em alguns
Estados a apuração dos votos demorou semanas. Quando o País se redemocratizou,
em 1945, foi feita a proposta de votar em um único nome, com votos
contabilizados apenas para os partidos. Os legisladores não copiaram esse
modelo de nenhum outro país. Até porque, entre os casos que consegui estudar,
ele não estava em vigor em nenhum lugar do mundo.
Wilson
Tosta – Onde mais podemos encontrá-lo?
Jairo
Nicolau – Outros países chegaram ao voto proporcional por
caminhos próprios. Depois os estudiosos passaram a chamá-lo de lista aberta. A
Itália utilizou um sistema muito parecido entre 1945 e 1992; o Chile, entre
1958 e 1973. Outro país que utiliza a lista aberta há muitos anos é a
Finlândia. Entre as novas democracias, o Peru, a Polônia e a Letônia usam.
Wilson Tosta – O regime militar brasileiro teve, entre suas peculiaridades, eleições para cargos de pouco poder. Por que essa obsessão?
Wilson Tosta – O regime militar brasileiro teve, entre suas peculiaridades, eleições para cargos de pouco poder. Por que essa obsessão?
Jairo
Nicolau – O regime militar manteve eleições para o Congresso,
ainda que com muitas restrições, para as câmaras municipais e para prefeitos da
maioria das cidades, com exceção das capitais e cidades consideradas de
segurança nacional. A suspensão plena foi da eleição para presidente e
governadores. Creio que a “invenção” do bipartidarismo, em 1966, com forte
domínio de um partido governista, a Arena, deu segurança para que os dirigentes
militares mantivessem o calendário eleitoral. Pesquisando o material da época,
não lembro de encontrar personagens relevantes defendendo a organização de um
sistema político completamente sem eleições.
Wilson
Tosta – Seu livro também aponta um dado intrigante: o aumento na participação
eleitoral durante a ditadura, apesar da redução de opções. Por que isso?
Jairo
Nicolau – Os dirigentes militares alteraram profundamente o
processo eleitoral, com medidas que iam das cassações e uso da violência até
alterações oportunistas das regras para favorecer a Arena, mas não fizeram nada
para mudar o processo de alistamento eleitoral. As regras vindas da República de
1946 se mantiveram: cidadãos alfabetizados que completassem 18 anos eram
obrigados a se alistar. O crescimento do eleitorado deve-se em larga medida ao
crescente contingente de adultos alfabetizados no País. Não vejo muitos sinais
de que o eleitorado tenha crescido como fruto da mobilização política. Para o
cidadão, o que conta é o medo das punições decorrentes do fato de ele não tirar
o título.
Wilson
Tosta – Em 2010, tínhamos 95% da população adulta alistada como eleitora, e 78%
dos eleitores votaram, mantendo-se perto da média de anos anteriores. Isso não
é contraditório com os discursos de “desilusão com a política”? Afinal,
desiludida ou não, a maioria vota. Como explicar essa contradição?
Jairo
Nicolau – Esses números são estimativas com bases em
projeções que fiz. Na verdade, não sabemos ao certo quantos adultos não estão
inscritos como eleitores atualmente. Uma parte deles, como eleitores com mais
de 70 anos e analfabetos, tem o direito de fazê-lo. Outros podem ter se
autoexcluído por motivos políticos. Somente uma nova pesquisa sobre
participação política poderia dar um quadro completo dos eventuais excluídos do
processo eleitoral brasileiro. Com relação ao comparecimento eleitoral, os
números são estáveis: cerca de 80% dos inscritos comparecem para votar. Entre
os 20% que não comparecem, em torno da metade justifica seu voto. Não há nenhum
sinal de que qualquer desilusão política se traduza em aumento da abstenção.
Sem contar que os votos em branco e nulos caíram na última década.
Wilson
Tosta – O sistema proporcional de lista aberta tem 50 anos e sofreu apenas duas
alterações. Uma delas mudou a fórmula de calcular as cadeiras, excluindo os
votos em branco do quociente eleitoral. Outra foi a volta das coligações
proporcionais. As duas mudanças beneficiaram partidos pequenos, entre eles
algumas máquinas nanicas, voltadas para práticas pouco republicanas, como a
venda de apoio parlamentar em troca de cargos, verbas e outros favores. Por que
essas mudanças ocorreram? A volta das coligações veio com o fim do regime
militar, mas a exclusão dos em branco ocorreu já em 1994...
Jairo
Nicolau – A contagem dos votos em branco no cálculo eleitoral
vinha desde de 1945 e realmente prejudicava os pequenos partidos. Seu fim foi
aprovado no Congresso com o apoio dos grandes partidos, que perderam com a nova
regra. É difícil entender as razões. Talvez o fato de que o que conta para cada
partido seja o seu tamanho nos Estados. Uma legenda pode ser grande
nacionalmente e pequena em um determinado Estado. Nesse caso, teria todo o
interesse em aprovar a medida. Quanto às coligações para cargos proporcionais,
elas existiram na República de 1946 e voltaram com a redemocratização, em 1986.
Elas geram distorções graves e deveriam ser abolidas. A comissão de reforma
presidida pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS) propôs, em 2011, abolir as
coligações. Mas a proposta não avançou.
Wilson Tosta – Se olharmos a história brasileira, veremos pouco mais de 40 anos de eleições com um grau razoável de confiabilidade, de 1946 a 64 e após o fim do regime, sobretudo a partir de 1986. É praticamente um quarto do período que o senhor pesquisou, de quase 200 anos. Podemos dizer que no Brasil eleições e democracia, na maior parte do tempo, não caminharam juntas?
Wilson Tosta – Se olharmos a história brasileira, veremos pouco mais de 40 anos de eleições com um grau razoável de confiabilidade, de 1946 a 64 e após o fim do regime, sobretudo a partir de 1986. É praticamente um quarto do período que o senhor pesquisou, de quase 200 anos. Podemos dizer que no Brasil eleições e democracia, na maior parte do tempo, não caminharam juntas?
Jairo
Nicolau – Na história, as eleições antecedem a democracia. O
caso clássico é o da Inglaterra, que, embora escolha os membros da Casa dos
Comuns pelo voto desde o século 18, só organizou um sistema democrático
moderno, com sufrágio feminino, no início do século 20. No Brasil não foi
diferente, as eleições também antecederam à democracia. O que tento mostrar é a
riqueza das instituições eleitorais no País antes de consolidarmos um regime
plenamente democrático, a partir de 1985. O que chama a atenção no caso
brasileiro é que as eleições conviveram com diversas formas de regime político,
inclusive o regime militar. Vale a pena lembrar que elas só foram formalmente
suspensas durante o Estado Novo, de 1937 a 1945.
Jairo
Nicolau
– Cientista político professor titular da UFRJ– 26.08.2012
Wilson Tosta –
Jornalista
IN
“O Estado de São Paulo”, caderno “Aliás” – http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,nao-e-por-falta-de-eleicoes,921611,0.ht