LAVALLE: Essa ideia de participação como
inclusão e autodeterminação como soberania popular foi mudando progressivamente
para tornar-se participação como incidência em políticas. A participação tinha
um claro viés popular e classista. Era a participação dos que não têm vez e,
portanto, não se refere aos ricos, influentes e já bem representados no poder.
Esse discurso classista foi mudando, e uma nova concepção se consolidou na
Constituição de 1988, porque não se podia instituir um modelo participativo
feito para uma classe específica. A participação popular se tornou, então,
participação cidadã, ampliando-se e abarcando todos os segmentos sociais.
Flávio
Lobo (entrevistador)
Professor do Departamento de Ciência
Política da USP, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento
(Cebrap) e do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), Adrian Gurza Lavalle
afirma, nesta entrevista, que a quantidade e pluralidade de instituições
participativas fazem do Brasil um caso único no mundo.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– Como devemos entender a ideia de
participação social no contexto brasileiro contemporâneo?
ADRIAN GURZA LAVALLE– Como algo
que mudou muito nas últimas décadas. No Brasil, a noção de participação nasceu
atrelada a um conjunto de atores sociais que reivindicavam autonomia em relação
ao Estado e às mediações políticas tradicionais. Na ditadura, a ideia de
participação atraiu progressivamente um conjunto de valores que reuniam tudo
que se desejava para a sociedade (e faltava ao regime militar): democracia,
justiça, liberdade... Então, a ideia de participação, no Brasil, nasceu
normativamente carregada. Muito mais do que simplesmente se exprimir em algum
lugar, “participação” tornou-se uma ideia-força que ordenou um enorme campo de
atores sociais que se opunham a formas institucionalizadas de gestão pública e
ordenação política características de um Estado fechado.
DIPLOMATIQUE– Com o fim da ditadura, essa noção tão ampla de
participação se alterou?
LAVALLE– Os autores e atores que pensaram na
participação nesses termos foram mudando o discurso à medida que a própria
participação foi se transformando. Progressivamente – e a Constituição de 1988
foi um marco nesse sentido – a participação foi entrando na estrutura estatal e
se tornando uma feição do Estado brasileiro. A transição política fez que
aquilo que era uma reivindicação de inclusão social de atores pensados ou identificados
como excluídos fosse se tornando um discurso institucional e uma categoria de
operação do Estado. E essa institucionalização atingiu patamares sem
precedentes na história do Brasil e nas democracias do mundo. Não há outro país
que tenha um arcabouço institucional de instâncias participativas tão
federalizado, diversificado e abrangente quanto o Brasil.
Hoje, a ideia de participação não é mais aquela carregada de energias
utópicas dos anos 1960 e 1970. Não que não existam atores que ainda reivindiquem
inclusão, mas a noção de participação e as práticas a ela associadas passaram a
funcionar também como uma parte da linguagem e das instituições do Estado.
Tanto que na literatura especializada a noção mais abstrata e aberta de
participação foi substituída pelo estudo das chamadas “instituições
participativas”.
DIPLOMATIQUE– Essa institucionalização da participação que vem
acontecendo no Brasil é mesmo um caso único no mundo?
LAVALLE– É sim. Nossos problemas e nossas
reflexões são muito diferentes em relação ao que ocorre na maior parte do mundo
quando se trata de práticas e ideias vinculadas à participação. Na literatura
internacional, quando se remete à participação, ainda está se pensando em
reivindicações de inclusão. Já no Brasil, estamos pensando no que fazer neste
cenário “pós-participativo”, em que a participação se tornou uma realidade
material, institucional; e precisamos dar conta da materialidade que ela
adquiriu.
Aqui a participação se materializa em instituições extremamente
capilares, presentes em quase todos os municípios brasileiros, e não sabemos
direito ainda o que se está produzindo por meio dessas instituições. Hoje
nossas perguntas não são mais sobre a possibilidade ou não de participação ou
sobre como promovê-la, mas sobre o efeito da entrada e da ação dos atores
sociais nessas instituições participativas.
DIPLOMATIQUE– Que instituições são essas e qual é a dimensão da
participação que acontece por meio delas?
LAVALLE– Essas instituições são principalmente
os diversos conselhos e as conferências que tratam de várias áreas da gestão
pública e também os orçamentos participativos. As conferências vêm se tornando
um mecanismo interessante de produção de consenso setorial em várias áreas −
mais de 55 conferências produzidas durante o governo Lula, com um aumento
importantíssimo do número de temas. Ademais, há audiências públicas, produção
de planos plurianuais, planos diretores... Você não consegue entender essa
história sem entender a relação entre essas inovações e o PT. De maneira geral,
os atores sociais que passaram a atuar nas instâncias participativas guardam
uma relação umbilical ou de nascimento com a história que levou ao crescimento
e desenvolvimento do PT.
DIPLOMATIQUE– E os conselhos, quão disseminados estão?
LAVALLE– Segundo o IBGE, existem atualmente
mais de 25 mil conselheiros no Brasil, mas sabemos que o número total é, na
verdade, bem maior. Há conselhos nas áreas consideradas prioritárias,
estratégicas pela Constituição – como educação, assistência social, direitos da
criança e do adolescente e saúde –, mas também em áreas que progressivamente
desenvolveram estrutura “conselhista”, mesmo sem um mandato constitucional
participativo.
Nas áreas com estrutura conselhista obrigatória e que são mais
desenvolvidas, a capilaridade é muito grande. Há conselhos de saúde em 98% dos
municípios do Brasil; de assistência social, em 93%. No caso da educação, essa
presença fica entre 70% e 75%. Nas áreas do trabalho, por exemplo, mesmo não
havendo obrigação constitucional de instituir conselhos participativos, estes
estão presentes em cerca de um terço dos municípios; no caso do turismo, em
mais de um quinto deles. Existem também muitos conselhos do meio ambiente, do
idoso, de combate às drogas, da preservação do patrimônio... A coisa ganhou tal
dimensão que, se você pergunta para um gestor municipal quantos conselhos
existem em seu município, ele não sabe responder. Na cidade de São Paulo, há 35
conselhos funcionando. Em Guarulhos, onde estamos fazendo uma pesquisa, de
acordo com os dados do IBGE haveria 14 conselhos, mas identificamos 32
conselhos ativos.
DIPLOMATIQUE– Até que ponto esses conselhos são atuantes e quais são os
resultados efetivos dessa atuação?
LAVALLE– Varia muito. Temos uma compreensão
ainda muito limitada do que essa proliferação de conselhos de fato significa.
Sabemos que alguma coisa eles estão produzindo por uma inferência sociológica.
Os atores estão lá, e essa presença não se explica pela obtenção de salários ou
qualquer benefício privado do gênero, pois não há verba nem para ajudas de
custo, embora outras formas de benefícios indiretos estejam presentes.
Trata-se, portanto, de um investimento de tempo e de outros recursos feito por
milhares de pessoas que só se explica se supusermos que algum valor ou
utilidade elas atribuem à participação nessas instituições.
Sabemos que alguns conselhos, de maneira geral, são muito ativos, como
os de saúde, porque a política de saúde está unificada no sistema nacional, e
os atores dessa área são historicamente muito organizados e, em muitos casos,
vinculados a movimentos sociais. Os conselhos de assistência social também
costumam ser bem atuantes, pois existem muitas associações desempenhando essa
função, e elas precisam ser cadastradas pelos conselhos. Na área da infância e
da adolescência, também são bastante ativos, porque a atuação do poder público
na resolução de situações e no encaminhamento de processos é, por determinação
legal, condicionada pela participação dos conselhos tutelares. Mas há
surpresas: em Guarulhos, achamos um conselho de saúde pouco atuante e os
conselhos do idoso e de drogas muito ativos.
DIPLOMATIQUE– Então alguns conselhos têm funções garantidas por lei,
predeterminadas e obrigatórias, na articulação e execução das políticas
públicas e outros não?
LAVALLE– Sim, o grau de integração dos
conselhos à estrutura do Estado varia muito. Alguns casos funcionam como
instâncias paralelas, então os efeitos são indiretos ou de recomendação. Só nas
áreas em que há mais tradição e uma presença de atores que ajudaram a construir
os sistemas públicos é que essa conexão com as políticas e a gestão pública se
dá de forma mais clara. Em algum momento será preciso pensar em uma reforma
administrativa porque, se você quiser dar estatuto a essas instâncias, é
preciso articulá-las ao funcionamento do Estado. É bom que se produzam
recomendações públicas, mas, se você quiser mesmo valorizar o que acontece ali,
deve garantir efeitos diretos.
DIPLOMATIQUE– Essa maior articulação institucional entre os conselhos
participativos e o funcionamento do Estado está sendo feita?
LAVALLE– Na esfera federal, há debates e
trabalhos em andamento sobre o chamado “sistema nacional de participação”. O
governo federal encomendou vários estudos para entender a envergadura da
institucionalidade participativa. Existe a percepção de que temos uma
pluralidade de instâncias participativas e precisamos dar a isso um caráter
mais articulado, consolidado, de modo a garantir continuidade e propiciar
avanços. Se isso não for feito, dependendo das circunstâncias políticas, haverá
um grande risco de reversão desses processos participativos. O Pedro Pontual
[diretor de Participação Social da Secretaria-Geral da Presidência da
República] é um dos que estão trabalhando para mudar o patamar de
institucionalização dessas instâncias. Mas a tarefa não é fácil, dadas as
particularidades das diferentes áreas envolvidas e o fato de que,
diferentemente do sistema de políticas públicas, que é setorial, o sistema
nacional de participação deve ser transversal, o que implica outras
complexidades e dificuldades para a consolidação institucional.
DIPLOMATIQUE– Há alguma diferença entre os governos Lula e Dilma no que
tange ao tratamento das questões ligadas à participação social?
LAVALLE– Os atores sociais envolvidos nesse
processo dizem que existia mais abertura e disposição para negociação no
governo Lula. Por meio da Secretaria-Geral da Presidência, muitas discussões e
demandas podiam ser encaminhadas e negociadas. O que tenho escutado de diversos
atores é que, no caso da Dilma, o processo é mais definido por prioridades
prévias de políticas de governo, sobrando menos espaço para a negociação. Mas
existe ainda um compromisso estável.
Não parece que Dilma tenha intenção de regredir em relação ao papel das
instâncias participativas. Além disso, é importante lembrar que foi no governo
dela que se colocou a questão do sistema nacional de participação na agenda do
Estado. Alguma coisa nesse sentido começou a ser cogitada no final do governo
Lula, mas como final de governo é um péssimo momento para tomar decisões, isso
foi postergado. Lula chegou a falar em consolidação das leis sociais: a ideia
de que, assim como houve a consolidação das leis trabalhistas, seria importante
fazer isso também no campo das políticas sociais, o que foi interpretado por
alguns como uma oportunidade para incluir a participação social. No governo
Dilma, essa decisão está sendo articulada com a do marco regulatório das
organizações da sociedade civil, com o que se pretende, entre outras coisas,
tornar mais ágeis as relações entre essas organizações e o governo.
DIPLOMATIQUE– Se no Brasil de hoje os desafios da participação passaram
a priorizar questões relativas a funcionamento, eficácia e nível de
institucionalização de processos já em andamento, isso significa que o antigo
ideário utópico foi substituído por uma visão reformista?
LAVALLE– Essa ideia de participação como
inclusão e autodeterminação como soberania popular foi mudando progressivamente
para tornar-se participação como incidência em políticas. A participação tinha
um claro viés popular e classista. Era a participação dos que não têm vez e,
portanto, não se refere aos ricos, influentes e já bem representados no poder.
Esse discurso classista foi mudando, e uma nova concepção se consolidou na
Constituição de 1988, porque não se podia instituir um modelo participativo
feito para uma classe específica. A participação popular se tornou, então,
participação cidadã, ampliando-se e abarcando todos os segmentos sociais. Uma
parte dos atores que estavam envolvidos no processo resistiu e inicialmente não
aceitou outros atores atuantes nas instâncias participativas, dizendo: “Este
espaço foi conquistado por nós, então deve ficar conosco. Por que aceitar
alguém que vem da direita?”. Mas, de maneira geral, os espaços participativos
foram progressivamente se pluralizando.
DIPLOMATIQUE– Essa “resistência” de alguns atores, nesse contexto,
expressa uma postura política mais ampla, de matriz revolucionária, utópica, de
quem se contrapõe frontalmente ao regime e ao sistema?
LAVALLE– Sim. A participação cidadã se tornou
cada vez mais participação em espaços participativos, nos quais a agenda se
pauta pelo controle social sobre as políticas. Algo bem diferente da ascensão
popular no front da luta de classes. Isso traz certa ambiguidade
para os setores que vêm dessa trajetória ideológica da esquerda. Há quem, como
eu, faça balanço positivo disso, mas muitos ainda se perguntam: “Não será tudo
isso um engodo? Não estamos abandonando os princípios e a causa que nos moveram
a lutar por participação?”.
Eu diria que, afortunadamente, a maior parte desses atores foi mudando
sua própria percepção do papel das instâncias participativas. A literatura
produzida sobre o tema nos anos 1990 e no começo da década passada é
praticamente uma denúncia do “engodo” da participação institucional.
Afirmava-se que as instâncias participativas não estavam produzindo nada. Hoje
muita gente percebe que não se estava fazendo o que os teóricos e muitos atores
queriam que fosse feito, mas algo de importante estava acontecendo, sim,
inclusive porque uma significativa quantidade e diversidade de atores era
atraída e se mantinha ativa nessas instâncias.
É preciso levar os atores sociais a sério. Eles próprios foram, então,
mudando suas perspectivas e entendendo que talvez não fosse possível fazer o
que esperavam inicialmente, mas que essas instâncias traziam possibilidades que
não deveriam ser jogadas fora. Perceberam que a sociedade era melhor com a
existência desses arranjos participativos do que sem eles. Isso foi uma inflexão,
porque, no começo da metade da década passada, uma parte importante desses
atores estava avaliando a possibilidade de sair em massa dessas instâncias que
consomem recursos e energia sem trazer os resultados inicialmente almejados.
DIPLOMATIQUE– Já que ainda não há informações suficientes para uma
avaliação abrangente, seria possível dar um exemplo, mesmo que pontual, de
efeitos políticos das instituições participativas?
LAVALLE– Em São Paulo, por exemplo, o conselho
de habitação foi inicialmente ocupado pelo movimento de moradia, um movimento
social muito atuante. Até que a prefeitura percebeu que, se não ocupasse o
conselho, teria uma série de transtornos, porque alguma capacidade ele tinha de
emperrar a execução de políticas de governo. Então, no governo Kassab, a
prefeitura começou a disputar as cadeiras do conselho, mobilizou a parte da
sociedade civil a seu favor e acabou conquistando o domínio dessa instituição.
Ao perder o domínio sobre o conselho, o movimento de moradia reparou que
era importante produzir algum tipo de acordo para modificar a
representatividade e o funcionamento da instituição. Houve, então, um acordo
para reformar as regras eleitorais para permitir chapas fechadas. Quando você
fecha a chapa, só os grandes grupos têm possibilidade de vitória, o que obrigou
os vários atores do movimento por moradia a construir uma posição unificada.
Perde-se pluralismo, mas se reforça a necessidade de uma representatividade
mais ampla e de maior capacidade de articulação. Nesse processo, o conselho de
habitação tornou-se um espaço alinhado à clivagem da política nacional, em que
o movimento de moradia, quando unificado, consegue mobilizar a estrutura e o
apoio do PT, enquanto, do outro lado, mobilizam-se as estruturas do DEM, do
PSDB e agora também do PSD. As bases sociais, dessa forma, operam uma clivagem
partidária, que é um fenômeno imprevisto e interessante, inclusive por seu
potencial de formação de novos quadros políticos e de renovação partidária.
Adrian Gurza Lavalle – Professor de Ciência Política
da USP – 03.07.2012
Flavio Lobo – Jornalista, é editor de “[em]
Revista”.