segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Na pátria da democracia “pós-participativa”


LAVALLE: Essa ideia de participação como inclusão e autodeterminação como soberania popular foi mudando progressivamente para tornar-se participação como incidência em políticas. A participação tinha um claro viés popular e classista. Era a participação dos que não têm vez e, portanto, não se refere aos ricos, influentes e já bem representados no poder. Esse discurso classista foi mudando, e uma nova concepção se consolidou na Constituição de 1988, porque não se podia instituir um modelo participativo feito para uma classe específica. A participação popular se tornou, então, participação cidadã, ampliando-se e abarcando todos os segmentos sociais.

Flávio Lobo (entrevistador)
Professor do Departamento de Ciência Política da USP, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), Adrian Gurza Lavalle afirma, nesta entrevista, que a quantidade e pluralidade de instituições participativas fazem do Brasil um caso único no mundo.

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL– Como devemos entender a ideia de participação social no contexto brasileiro contemporâneo?
ADRIAN GURZA LAVALLE– Como algo que mudou muito nas últimas décadas. No Brasil, a noção de participação nasceu atrelada a um conjunto de atores sociais que reivindicavam autonomia em relação ao Estado e às mediações políticas tradicionais. Na ditadura, a ideia de participação atraiu progressivamente um conjunto de valores que reuniam tudo que se desejava para a sociedade (e faltava ao regime militar): democracia, justiça, liberdade... Então, a ideia de participação, no Brasil, nasceu normativamente carregada. Muito mais do que simplesmente se exprimir em algum lugar, “participação” tornou-se uma ideia-força que ordenou um enorme campo de atores sociais que se opunham a formas institucionalizadas de gestão pública e ordenação política características de um Estado fechado.

DIPLOMATIQUE– Com o fim da ditadura, essa noção tão ampla de participação se alterou?
LAVALLE– Os autores e atores que pensaram na participação nesses termos foram mudando o discurso à medida que a própria participação foi se transformando. Progressivamente – e a Constituição de 1988 foi um marco nesse sentido – a participação foi entrando na estrutura estatal e se tornando uma feição do Estado brasileiro. A transição política fez que aquilo que era uma reivindicação de inclusão social de atores pensados ou identificados como excluídos fosse se tornando um discurso institucional e uma categoria de operação do Estado. E essa institucionalização atingiu patamares sem precedentes na história do Brasil e nas democracias do mundo. Não há outro país que tenha um arcabouço institucional de instâncias participativas tão federalizado, diversificado e abrangente quanto o Brasil.
Hoje, a ideia de participação não é mais aquela carregada de energias utópicas dos anos 1960 e 1970. Não que não existam atores que ainda reivindiquem inclusão, mas a noção de participação e as práticas a ela associadas passaram a funcionar também como uma parte da linguagem e das instituições do Estado. Tanto que na literatura especializada a noção mais abstrata e aberta de participação foi substituída pelo estudo das chamadas “instituições participativas”.

DIPLOMATIQUE– Essa institucionalização da participação que vem acontecendo no Brasil é mesmo um caso único no mundo?
LAVALLE– É sim. Nossos problemas e nossas reflexões são muito diferentes em relação ao que ocorre na maior parte do mundo quando se trata de práticas e ideias vinculadas à participação. Na literatura internacional, quando se remete à participação, ainda está se pensando em reivindicações de inclusão. Já no Brasil, estamos pensando no que fazer neste cenário “pós-participativo”, em que a participação se tornou uma realidade material, institucional; e precisamos dar conta da materialidade que ela adquiriu.
Aqui a participação se materializa em instituições extremamente capilares, presentes em quase todos os municípios brasileiros, e não sabemos direito ainda o que se está produzindo por meio dessas instituições. Hoje nossas perguntas não são mais sobre a possibilidade ou não de participação ou sobre como promovê-la, mas sobre o efeito da entrada e da ação dos atores sociais nessas instituições participativas.

DIPLOMATIQUE– Que instituições são essas e qual é a dimensão da participação que acontece por meio delas?
LAVALLE– Essas instituições são principalmente os diversos conselhos e as conferências que tratam de várias áreas da gestão pública e também os orçamentos participativos. As conferências vêm se tornando um mecanismo interessante de produção de consenso setorial em várias áreas − mais de 55 conferências produzidas durante o governo Lula, com um aumento importantíssimo do número de temas. Ademais, há audiências públicas, produção de planos plurianuais, planos diretores... Você não consegue entender essa história sem entender a relação entre essas inovações e o PT. De maneira geral, os atores sociais que passaram a atuar nas instâncias participativas guardam uma relação umbilical ou de nascimento com a história que levou ao crescimento e desenvolvimento do PT.

DIPLOMATIQUE– E os conselhos, quão disseminados estão?
LAVALLE– Segundo o IBGE, existem atualmente mais de 25 mil conselheiros no Brasil, mas sabemos que o número total é, na verdade, bem maior. Há conselhos nas áreas consideradas prioritárias, estratégicas pela Constituição – como educação, assistência social, direitos da criança e do adolescente e saúde –, mas também em áreas que progressivamente desenvolveram estrutura “conselhista”, mesmo sem um mandato constitucional participativo.
Nas áreas com estrutura conselhista obrigatória e que são mais desenvolvidas, a capilaridade é muito grande. Há conselhos de saúde em 98% dos municípios do Brasil; de assistência social, em 93%. No caso da educação, essa presença fica entre 70% e 75%. Nas áreas do trabalho, por exemplo, mesmo não havendo obrigação constitucional de instituir conselhos participativos, estes estão presentes em cerca de um terço dos municípios; no caso do turismo, em mais de um quinto deles. Existem também muitos conselhos do meio ambiente, do idoso, de combate às drogas, da preservação do patrimônio... A coisa ganhou tal dimensão que, se você pergunta para um gestor municipal quantos conselhos existem em seu município, ele não sabe responder. Na cidade de São Paulo, há 35 conselhos funcionando. Em Guarulhos, onde estamos fazendo uma pesquisa, de acordo com os dados do IBGE haveria 14 conselhos, mas identificamos 32 conselhos ativos.

DIPLOMATIQUE– Até que ponto esses conselhos são atuantes e quais são os resultados efetivos dessa atuação?
LAVALLE– Varia muito. Temos uma compreensão ainda muito limitada do que essa proliferação de conselhos de fato significa. Sabemos que alguma coisa eles estão produzindo por uma inferência sociológica. Os atores estão lá, e essa presença não se explica pela obtenção de salários ou qualquer benefício privado do gênero, pois não há verba nem para ajudas de custo, embora outras formas de benefícios indiretos estejam presentes. Trata-se, portanto, de um investimento de tempo e de outros recursos feito por milhares de pessoas que só se explica se supusermos que algum valor ou utilidade elas atribuem à participação nessas instituições.
Sabemos que alguns conselhos, de maneira geral, são muito ativos, como os de saúde, porque a política de saúde está unificada no sistema nacional, e os atores dessa área são historicamente muito organizados e, em muitos casos, vinculados a movimentos sociais. Os conselhos de assistência social também costumam ser bem atuantes, pois existem muitas associações desempenhando essa função, e elas precisam ser cadastradas pelos conselhos. Na área da infância e da adolescência, também são bastante ativos, porque a atuação do poder público na resolução de situações e no encaminhamento de processos é, por determinação legal, condicionada pela participação dos conselhos tutelares. Mas há surpresas: em Guarulhos, achamos um conselho de saúde pouco atuante e os conselhos do idoso e de drogas muito ativos.

DIPLOMATIQUE– Então alguns conselhos têm funções garantidas por lei, predeterminadas e obrigatórias, na articulação e execução das políticas públicas e outros não?
LAVALLE– Sim, o grau de integração dos conselhos à estrutura do Estado varia muito. Alguns casos funcionam como instâncias paralelas, então os efeitos são indiretos ou de recomendação. Só nas áreas em que há mais tradição e uma presença de atores que ajudaram a construir os sistemas públicos é que essa conexão com as políticas e a gestão pública se dá de forma mais clara. Em algum momento será preciso pensar em uma reforma administrativa porque, se você quiser dar estatuto a essas instâncias, é preciso articulá-las ao funcionamento do Estado. É bom que se produzam recomendações públicas, mas, se você quiser mesmo valorizar o que acontece ali, deve garantir efeitos diretos.

DIPLOMATIQUE– Essa maior articulação institucional entre os conselhos participativos e o funcionamento do Estado está sendo feita?
LAVALLE– Na esfera federal, há debates e trabalhos em andamento sobre o chamado “sistema nacional de participação”. O governo federal encomendou vários estudos para entender a envergadura da institucionalidade participativa. Existe a percepção de que temos uma pluralidade de instâncias participativas e precisamos dar a isso um caráter mais articulado, consolidado, de modo a garantir continuidade e propiciar avanços. Se isso não for feito, dependendo das circunstâncias políticas, haverá um grande risco de reversão desses processos participativos. O Pedro Pontual [diretor de Participação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República] é um dos que estão trabalhando para mudar o patamar de institucionalização dessas instâncias. Mas a tarefa não é fácil, dadas as particularidades das diferentes áreas envolvidas e o fato de que, diferentemente do sistema de políticas públicas, que é setorial, o sistema nacional de participação deve ser transversal, o que implica outras complexidades e dificuldades para a consolidação institucional.

DIPLOMATIQUE– Há alguma diferença entre os governos Lula e Dilma no que tange ao tratamento das questões ligadas à participação social?
LAVALLE– Os atores sociais envolvidos nesse processo dizem que existia mais abertura e disposição para negociação no governo Lula. Por meio da Secretaria-Geral da Presidência, muitas discussões e demandas podiam ser encaminhadas e negociadas. O que tenho escutado de diversos atores é que, no caso da Dilma, o processo é mais definido por prioridades prévias de políticas de governo, sobrando menos espaço para a negociação. Mas existe ainda um compromisso estável.
Não parece que Dilma tenha intenção de regredir em relação ao papel das instâncias participativas. Além disso, é importante lembrar que foi no governo dela que se colocou a questão do sistema nacional de participação na agenda do Estado. Alguma coisa nesse sentido começou a ser cogitada no final do governo Lula, mas como final de governo é um péssimo momento para tomar decisões, isso foi postergado. Lula chegou a falar em consolidação das leis sociais: a ideia de que, assim como houve a consolidação das leis trabalhistas, seria importante fazer isso também no campo das políticas sociais, o que foi interpretado por alguns como uma oportunidade para incluir a participação social. No governo Dilma, essa decisão está sendo articulada com a do marco regulatório das organizações da sociedade civil, com o que se pretende, entre outras coisas, tornar mais ágeis as relações entre essas organizações e o governo.

DIPLOMATIQUE– Se no Brasil de hoje os desafios da participação passaram a priorizar questões relativas a funcionamento, eficácia e nível de institucionalização de processos já em andamento, isso significa que o antigo ideário utópico foi substituído por uma visão reformista?
LAVALLE– Essa ideia de participação como inclusão e autodeterminação como soberania popular foi mudando progressivamente para tornar-se participação como incidência em políticas. A participação tinha um claro viés popular e classista. Era a participação dos que não têm vez e, portanto, não se refere aos ricos, influentes e já bem representados no poder. Esse discurso classista foi mudando, e uma nova concepção se consolidou na Constituição de 1988, porque não se podia instituir um modelo participativo feito para uma classe específica. A participação popular se tornou, então, participação cidadã, ampliando-se e abarcando todos os segmentos sociais. Uma parte dos atores que estavam envolvidos no processo resistiu e inicialmente não aceitou outros atores atuantes nas instâncias participativas, dizendo: “Este espaço foi conquistado por nós, então deve ficar conosco. Por que aceitar alguém que vem da direita?”. Mas, de maneira geral, os espaços participativos foram progressivamente se pluralizando.
DIPLOMATIQUE– Essa “resistência” de alguns atores, nesse contexto, expressa uma postura política mais ampla, de matriz revolucionária, utópica, de quem se contrapõe frontalmente ao regime e ao sistema?
LAVALLE– Sim. A participação cidadã se tornou cada vez mais participação em espaços participativos, nos quais a agenda se pauta pelo controle social sobre as políticas. Algo bem diferente da ascensão popular no front da luta de classes. Isso traz certa ambiguidade para os setores que vêm dessa trajetória ideológica da esquerda. Há quem, como eu, faça balanço positivo disso, mas muitos ainda se perguntam: “Não será tudo isso um engodo? Não estamos abandonando os princípios e a causa que nos moveram a lutar por participação?”.
Eu diria que, afortunadamente, a maior parte desses atores foi mudando sua própria percepção do papel das instâncias participativas. A literatura produzida sobre o tema nos anos 1990 e no começo da década passada é praticamente uma denúncia do “engodo” da participação institucional. Afirmava-se que as instâncias participativas não estavam produzindo nada. Hoje muita gente percebe que não se estava fazendo o que os teóricos e muitos atores queriam que fosse feito, mas algo de importante estava acontecendo, sim, inclusive porque uma significativa quantidade e diversidade de atores era atraída e se mantinha ativa nessas instâncias.
É preciso levar os atores sociais a sério. Eles próprios foram, então, mudando suas perspectivas e entendendo que talvez não fosse possível fazer o que esperavam inicialmente, mas que essas instâncias traziam possibilidades que não deveriam ser jogadas fora. Perceberam que a sociedade era melhor com a existência desses arranjos participativos do que sem eles. Isso foi uma inflexão, porque, no começo da metade da década passada, uma parte importante desses atores estava avaliando a possibilidade de sair em massa dessas instâncias que consomem recursos e energia sem trazer os resultados inicialmente almejados.

DIPLOMATIQUE– Já que ainda não há informações suficientes para uma avaliação abrangente, seria possível dar um exemplo, mesmo que pontual, de efeitos políticos das instituições participativas?
LAVALLE– Em São Paulo, por exemplo, o conselho de habitação foi inicialmente ocupado pelo movimento de moradia, um movimento social muito atuante. Até que a prefeitura percebeu que, se não ocupasse o conselho, teria uma série de transtornos, porque alguma capacidade ele tinha de emperrar a execução de políticas de governo. Então, no governo Kassab, a prefeitura começou a disputar as cadeiras do conselho, mobilizou a parte da sociedade civil a seu favor e acabou conquistando o domínio dessa instituição.
Ao perder o domínio sobre o conselho, o movimento de moradia reparou que era importante produzir algum tipo de acordo para modificar a representatividade e o funcionamento da instituição. Houve, então, um acordo para reformar as regras eleitorais para permitir chapas fechadas. Quando você fecha a chapa, só os grandes grupos têm possibilidade de vitória, o que obrigou os vários atores do movimento por moradia a construir uma posição unificada. Perde-se pluralismo, mas se reforça a necessidade de uma representatividade mais ampla e de maior capacidade de articulação. Nesse processo, o conselho de habitação tornou-se um espaço alinhado à clivagem da política nacional, em que o movimento de moradia, quando unificado, consegue mobilizar a estrutura e o apoio do PT, enquanto, do outro lado, mobilizam-se as estruturas do DEM, do PSDB e agora também do PSD. As bases sociais, dessa forma, operam uma clivagem partidária, que é um fenômeno imprevisto e interessante, inclusive por seu potencial de formação de novos quadros políticos e de renovação partidária.


Adrian Gurza Lavalle – Professor de Ciência Política da USP – 03.07.2012
Flavio Lobo – Jornalista, é editor de “[em] Revista”.
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” –  http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1213