Ao receber, em sua casa o repórter do New York
Times que o entrevistou, Mujica ofereceu-lhe um trago de cachaça uruguaia,
enquanto demonstrava a sua cultura, citando Spinoza. Lembrou uma passagem de
Dom Quixote e Sancho Pança, que, hóspedes de pastores de cabras, bebem vinho e
comem cabrito assado, com seus anfitriões.
Mauro Santayana
O New York Times publicou, neste fim de semana, um
perfil do presidente do Uruguai, José Mujica. Não é a primeira vez que seus
hábitos modestíssimos ocupam alguns importantes jornais do mundo. Mais
instigante do que o estranho chefe de Estado e de governo, que doa quase todos
os seus subsídios presidenciais aos pobres, e que cultiva crisântemos, é o
próprio Uruguai, que chegou a ser comparado com a Suíça nas primeiras décadas
do século passado.
A comparação foi injusta para com o Uruguai, embora o país meridional
tenha servido também de paraíso fiscal para os meliantes de sempre: lavadores
de dinheiro e ladrões de recursos públicos dos países vizinhos.
O Uruguai se destacou, na América Latina, pela coragem de um grande
presidente, José Battle y Ordoñez. Quando o continente se encontrava sob a
influência reacionária da Igreja Católica, ainda em 1906, o presidente, que era
homem da poderosa oligarquia uruguaia (seu pai foi presidente da República e a
família continuou poderosa até recentemente), mandou retirar os crucifixos dos
hospitais, promoveu a legislação que instituiu o divórcio, e proibiu a evocação
de Deus e dos Evangelhos nos juramentos oficiais.
Mais ainda: determinou o sufrágio universal, reformou, ampliando-o, o
sistema de ensino, na confessada e obstinada decisão de construir uma poderosa
classe média. Em seu segundo mandato, de 1911 a 1915, Battle se declarou contra
o imperialismo, estabeleceu o seguro desemprego, com a lei de compensação
contra a falta de trabalho, ao mesmo tempo em que acabou com os grandes
monopólios privados, estatizando-os.
O Uruguai era, e continua a ser, país privilegiado pela fertilidade de
suas terras, o que o fez um dos maiores exportadores de carne e de lã do
continente. A população sempre foi reduzida, e urbana: no campo só ficavam os
vaqueiros e os cultivadores de trigo. Isso favoreceu a evolução do país, e
contribuiu para que a sua sociedade fosse a menos desigual do continente, até a
onda golpista dos anos 60 e 70 na nossa América Latina, promovida pelos
norte-americanos, e a adesão ao neoliberalismo.
Com os recursos obtidos no comércio internacional, o Uruguai foi o
pioneiro no mais exitoso sistema de bem-estar social do hemisfério. A
aposentadoria era precoce para os trabalhadores mais sacrificados, fosse pelas
condições físicas da atividade, fosse pela sua pressão psicológica (como os
pilotos de aviões, por exemplo).
José Mujica talvez exagere em seus hábitos, ao desprezar a residência
oficial dos chefes de Estado e mesmo, como fez, usá-la como abrigo para os
moradores de rua, que o neoliberalismo está produzindo em seu país. Mas, com
isso, ele – como de alguma forma já fizera seu antecessor, Tabarez Vázquez –
despe o poder de seus ornamentos costumeiros.
Constantino, o grande imperador, vestia roupas novas e cobertas de ouro,
todos os dias. Mujica, o antigo guerrilheiro tupamaro, que passou 14 anos
preso, não usa gravatas.
Ao receber, em sua casa (sem empregados domésticos) o repórter que o
entrevistou, Mujica ofereceu-lhe um trago de cachaça uruguaia, enquanto
demonstrava a sua cultura, citando Spinoza. Lembrou uma passagem de Dom Quixote
e Sancho Pança, que, hóspedes de pastores de cabras, bebem vinho e comem
cabrito assado, com seus anfitriões, e observou que os pastores são os homens
mais pobres da Espanha.
“Provavelmente, por isso mesmo, sejam os mais ricos”, completou o
presidente, que é contra a reeleição, e pretende voltar a plantar flores,
quando seu mandato terminar.
Mauro Santayana – Colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente
na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e
trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo
(1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica
e na África do Norte – 05.01.2013
In Carta Maior –http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5923