Ao contrário do mito,
parlamentares entram no congresso com experiência.
Josélia Aguiar
Na grande imprensa costuma-se afirmar que o Parlamento brasileiro é
prejudicado pela presença de forasteiros, gente com pouca ou nenhuma experiência
na política: cantores, pastores, atores, apresentadores de TV, jogadores de
futebol, capazes de ganhar votos para depois “desaparecer”. Ainda segundo esse
consenso, há outros tantos políticos novatos que são eleitos e depois usam a
cadeira do Legislativo como trampolim, pois preferem cargos em municípios e
estados, e logo que podem deixam a Casa quando surge uma oportunidade. Ao
cruzar, porém, dados referentes à circulação na Câmara dos Deputados entre 1946
e 2007, a cientista política Mayla Di Martino encontrou resultados bastante
diferentes: no Brasil predomina o político profissional, e o que parece um entra
e sai é, ao contrário, parte de uma estratégia de longo prazo para justamente
se manter na carreira, como ela analisa em A política como profissão, sua
tese de doutorado em ciência política defendida recentemente na Universidade de
São Paulo orientada por Fernando Limongi.
“Para ocupar uma cadeira no Legislativo nacional é preciso ter entrado
no jogo da política e ter tido algum sucesso nele. É preciso se tornar um
profissional, ter vencido eleições ou ter assumido cargos políticos indicados”,
afirma a pesquisadora. Nos últimos 15 anos, segundo ela, os chamados novatos
que entraram na Câmara dos Deputados venceram, em média, anteriormente pelo
menos duas eleições para outros cargos políticos e 80% deles tiveram algum tipo
de experiência política prévia.
À primeira vista, no entanto, há dados que parecem sugerir que o senso
comum está certo. Como explicar por que apenas a metade dos deputados, em
média, se reelege? A comparação com os Estados Unidos aumenta o contraste: lá
são reeleitos 90% dos deputados. No Brasil, também é elevado o número de
deputados que interrompem o mandato antes de sua conclusão. A maioria se
licencia para ocupar uma vaga de ministro de Estado ou de secretário em
governos estaduais. Há um percentual que abandona os dois últimos anos da legislatura:
em média, desde 1986, 17% de todos os deputados que chegaram ao Parlamento
disputaram uma eleição para prefeito enquanto estavam na cadeira de deputado.
Para um parlamentar americano, é impensável trocar uma cadeira em Washington
por uma de prefeito.
A aparente “desistência” do deputado brasileiro, no entanto, tem
explicação de longo prazo, diz Mayla Di Martino, exigências da complexa vida
política brasileira. “O sentido da carreira política no Brasil não é ilógico,
não está situado de ponta cabeça, como fazem crer alguns estudiosos. Se o
deputado abandona a cadeira em Brasília, é porque os caminhos que ele tem de
trilhar para continuar crescendo na vida pública são tortuosos. Muitas vezes é
preciso voltar para uma função regional como meio para prosseguir na carreira
política nacional. Isso tem a ver com a estrutura do recrutamento político para
o Parlamento, que, desde sempre, foi muito regionalizado, ou seja, muito
dependente dos interesses e das eleições locais”, explica.
Quanto à presença de forasteiros, esta pode até ser alardeada e muito
notada, mas não é o padrão. Há, é claro, lugar para os fenômenos midiáticos,
como apresentador de TV, locutor de rádio, cantor e até jogador de futebol,
porém eles são minoria, concorda David Fleischer, Ph.D. em ciência política e
professor da Universidade de Brasília (UnB). O comum é o perfil de deputados
que representam um reduto, uma microrregião, diz. “É o caso de um prefeito que
vira deputado e, não raras vezes, volta a ser prefeito também”, afirma. De modo
similar, o Senado recebe ex-governadores que, mais tarde, podem voltar a
governar estados. Portanto, estar fortalecido em cidades e estados é fator
decisivo – nem que seja elegendo alguém de confiança para os principais cargos
locais.
Fabiano Santos, Ph.D. em ciência política e professor do Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), constata que as novas
pesquisas sobre o Legislativo têm de fato revelado que este tem muito mais
força do que parece. “E estamos mudando para um Congresso mais profissional,
dotado de assessoria extremamente bem qualificada, que tem por base de
recrutamento o mérito”, avalia. Argelina Cheibub Figueiredo, Ph.D. em ciência
política e também professora do Iuperj, lamenta que o senso comum ainda
prevaleça. “Apesar de ser crescente o número de pesquisas sobre o Legislativo
brasileiro, ainda prevalece, especialmente na imprensa, a visão caricata que
dele se tem e as interpretações baseadas em fatos excepcionais, e não nos
processos mais regulares.” Ela lembra que o Parlamento brasileiro já deu várias
provas de maturidade. “Nós esquecemos que, apesar de todas as medidas
restritivas tomadas pelo regime militar durante seus 20 anos de vigência, o
Legislativo brasileiro funcionou, com a interrupção de menos de um ano em 1969,
desde 1946. E durante todo esse período ele teve papel significativo no
processo político, mesmo durante a ditadura, quando, restrito na sua atuação
essencialmente política, se preparou de modo técnico e organizacional.”
Circulação
Se na comparação com os Estados Unidos há grandes diferenças na
circulação parlamentar, a observação do que ocorre na França levou Mayla Di
Martino a encontrar aproximações. Principalmente no que se refere ao “vai e
vem” da carreira parlamentar, que caracteriza o Brasil. Também naquele país, no
ano de 2006, por exemplo, 89% dos deputados nacionais acumulavam o mandato na
Assembleia Nacional com um cargo eletivo regional ou local. “Como no Brasil, os
deputados franceses também precisam manter esse elo com a política local se
quiserem se manter progredindo no mercado político”, explica a cientista
política.
Especialistas franceses dizem que o padrão muito regionalizado de
recrutamento parlamentar na França, aliado à profissionalização dos
parlamentares, levou a essa situação conhecida como cumul des mandats,
acúmulo de mandatos. “Por ser um político profissional, o deputado francês
precisa acumular recursos políticos que o mantenham progredindo na carreira: a
oportunidade de acumular um cargo de prefeito com o cargo de deputado nacional
traz oportunidades óbvias em termos de contato com as bases, influência perante
o partido e recursos para serem usados na campanha de reeleição ao Parlamento
ou na disputa por outros cargos na esfera nacional”, acrescenta a pesquisadora.
Na França como no Brasil, portanto, a procura da parte dos deputados
federais por cargos no âmbito local e regional não implica a falta de
importância da carreira parlamentar na esfera nacional. Trata-se de uma
estratégia de parte dos deputados eleitos de dirimir riscos de derrota
eleitoral em eleições futuras, em sistemas políticos multipartidários e
marcados por uma alta volatilidade eleitoral. “A minha tese tenta desmistificar
esse caráter excepcional que procuram atribuir ao Brasil, mostrando que os
caminhos que levam ao Parlamento, por aqui, como em outros países
desenvolvidos, são bastante parecidos.”
Em seu banco de dados há a trajetória individual de 4 mil deputados
federais, desde 1946 até 2007 – da primeira função pública até a saída
definitiva da Câmara Federal –, incluindo todas as eleições disputadas e
licenças ocorridas durante a vida parlamentar. Para compreender esses números,
usou uma metodologia de análise mais ampla do que a empregada em pesquisas
anteriores. “Foi possível demonstrar que, apesar do aumento do número de
interrupções na carreira parlamentar, para ocupar ministérios ou secretarias,
ou para entrar na disputa por prefeituras, o tempo total de permanência dos
deputados tem aumentado”, afirma.
Prós e contras
A restrição do acesso à própria carreira política é a consequência
imediata de tal profissionalização, constata Mayla Di Martino. Em lugares onde
a política é dominada por profissionais, a entrada de pessoas de fora do jogo é
muito restrita, e os participantes tendem a criar instrumentos para permanecer
com o controle. Basta lembrar que os legisladores votam sobre inúmeros aspectos
que dizem respeito à sua carreira, no interior ou no exterior do Parlamento,
como, por exemplo, as regras eleitorais. “Mas é assim mesmo que tem funcionado
nos países desenvolvidos, seja sob o parlamentarismo ou sob o presidencialismo.
Esse também tem sido o caso do Brasil”, diz a pesquisadora.
Como efeito negativo da profissionalização, entendida com restrição da
circulação nas elites políticas, constrói-se, assim, uma barreira que distancia
cada vez mais os eleitos daqueles que os elegeram. Resguardados em suas
posições, os parlamentares não se sentem tão obrigados a responder às demandas
dos seus eleitorados. Os escândalos, assim, podem se tornar comuns e alcançam
até mesmo instituições prestigiosas como o Parlamento britânico, que, em 2009,
teve seus representantes flagrados usando verbas de gabinete em benefício
próprio.
A capacidade organizacional dos Parlamentos é a consequência positiva da
profissionalização, explica. “Estudos sobre o Congresso norte-americano indicam
que parlamentares mais adaptados e experientes têm maior capacidade de aprovar
leis”, explica a pesquisadora. Também naquele país existe uma carreira interna
no Legislativo Federal, o que torna a vida parlamentar um objetivo em si mesma
– alguns legisladores podem angariar votos, ou posições de poder junto ao seu
partido, por meio de seu trabalho nas comissões parlamentares, uma vez que
muitas dessas posições internas do Congresso têm prestígio e visibilidade
nacional. “Isso faz com que o Congresso dos Estados Unidos seja muito ativo e
autônomo perante o Executivo”, acrescenta.
Ainda não está respondido, porém, segundo ela, se a profissionalização
da política parlamentar é capaz de ensejar a configuração dos Parlamentos nos
moldes dos Estados Unidos, com esse modelo de carreira política interna.
“Muitos especialistas gostariam de ver funcionando no Brasil um modelo parecido
com o norte-americano, na esperança de que o Legislativo brasileiro seja menos
dependente da agenda política ditada pelo Executivo.”
O desprestígio do Parlamento brasileiro, para David Fleischer, da UnB,
está ligado não somente à sequência de escândalos que constantemente o paralisa
como também ao poder reduzido que tem em relação ao Executivo. “O presidente
aqui tem poderes imperiais, o que tira a autonomia das duas Casas. Pode, por
exemplo, fazer mudanças no Orçamento a qualquer hora e fazer nomeações sem
precisar da aprovação. Nos EUA não é assim”, pondera. Não é à toa que em
pesquisas de opinião pública o Congresso brasileiro apareça como a instituição
de menos confiabilidade, lembra o professor da UnB.
Fabiano Santos, do Iuperj, diz que é preciso avançar na capacidade de
iniciar agendas próprias, independentemente do Executivo, em especial nas áreas
econômica, financeira e administrativa. “Na América Latina estamos bem à
frente, não só em termos de institucionalização de procedimentos, capacidade de
armazenar e distribuir informações sobre a atividade parlamentar, como também
em dados para processar decisões. Em relação aos EUA e demais países
desenvolvidos, nos saímos bem em certos aspectos e não tão bem em outros”,
compara. A responsabilidade dos partidos na política nacional é um dos pontos
que merecem ser explorados em futuras pesquisas e debates. “É muito fácil
expulsar o membro de um partido diante de denúncias da corrupção, e é muito
difundida a tese de que, no Brasil, o partido político tem pouca influência
sobre o resultado das eleições e que a vitória se deve mesmo ao carisma ou ao
currículo de cada candidato, ou seja, a tese do personalismo político”, afirma
Mayla Di Martino.
Desse modo, o paradigma da profissionalização permite enxergar a situação
por outro prisma, acrescenta: para permanecer no jogo, os candidatos dependem
do partido político: precisam ganhar indicações para cargos eletivos ou cargos
de confiança; precisam de abrigo nos tempos de infortúnio eleitoral – quando
perdem as eleições, afinal, a maioria dos políticos teve que interromper ou
deixar em segundo plano a sua profissão original. “É preciso uma mudança de
paradigma na maneira como se analisam os partidos políticos no Brasil: a partir
do momento em que os próprios analistas políticos passarem a acreditar que eles
realmente influenciam a vida política brasileira, quem sabe consigam fazer a
população atentar para o fato de que, no momento da eleição, é importante punir
o partido pelo erro de seus candidatos”, afirma a pesquisadora da USP.
Josélia Aguiar – Março de 2010
IN Revista Fapesp, ed. 169 – http://revistapesquisa.fapesp.br/2010/03/28/deputado-profissional/
- See more at: http://revistapesquisa.fapesp.br/2010/03/28/deputado-profissional/#sthash.oBZ406rG.dpuf