Integrante da Comissão
Nacional da Verdade interpreta a investigação sobre crimes do Estado à luz da
busca psicanalítica por verdades reprimidas. Assim como na teoria freudiana, a
tentativa do Estado totalitário de cassar o direito à informação se mostrou
inútil diante de sintomas sociais que acabaram por revelá-la.
Maria Rita Kehl
Que tudo "continue assim",
isto é a catástrofe.
Walter Benjamin
Walter Benjamin
Hoje se comemora o Dia Internacional do Direito à
Verdade. A data foi escolhida pela ONU em dezembro de 2010 para lembrar o
assassinato do defensor de direitos humanos em El Salvador, monsenhor Oscar
Romero, em 24 de março de 1980. A relação estabelecida pela resolução da ONU
entre dignidade humana e direito à verdade fez com que a Comissão Nacional da
Verdade (CNV) decidisse comemorá-la nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
"A verdade liberta", proclamou ao
telefone meu amigo, o psicoterapeuta Nelson Motta Mello, ao saudar a formação
da CNV, em maio de 2012. Poupo o leitor do debate sobre o estatuto ontológico
da verdade, que nem Cristo (nem Lacan) respondeu a contento.
Se não nos é possível estabelecer com precisão o
que é a verdade, não há dificuldade em entender os efeitos da sua falta --ou da
sua interdição-- tanto na vida psíquica quanto na dinâmica social. A
psicanálise freudiana poderia ser entendida, "lato sensu", como uma
metapsicologia do direito à verdade psíquica.
Foi no final do século 19, quando a moral da nova
classe emergente na Europa impunha o silêncio sobre as representações da vida
sexual, que Freud anunciou sua hipótese a respeito do sofrimento histérico:
"A histérica sofre de reminiscências". As enigmáticas crises de
conversão das histéricas não passavam, para o inventor da psicanálise, de
tentativas de dizer com o corpo verdades que estavam impedidas de recordar em
pensamento e anunciar na fala.
O discurso corporal da histeria é composto de
fragmentos recalcados de lembranças e/ou fantasias sexuais interditadas, que
buscam expressão através do sintoma. Aos poucos, Freud compreendeu que o
estatuto da "verdade" de suas pacientes histéricas nem sempre correspondia
ao senso comum: o que o tratamento psicanalítico revela são fragmentos da
verdade psíquica, cujas conexões com os fatos objetivos da vida passam por
caminhos singulares e tortuosos.
É que o recalcado só pode chegar à consciência
através das formações secundárias, que deformam a marca primordial do vivido
(inacessível ao próprio sujeito) para se adequar às formas corriqueiras da
linguagem. Apesar das dificuldades de interpretação e das limitações da técnica
nos primórdios da psicanálise, a possibilidade de expressar a fantasia
recalcada revelou que a verdade psíquica é capaz de libertar o neurótico das
repetições sintomáticas.
Em 1914 Freud estabeleceu, em "Recordar,
Repetir, Elaborar", uma importante relação entre o esquecimento promovido
pelo recalque e a repetição do sintoma neurótico: a compulsão à repetição seria
a maneira enviesada que o neurótico encontra para tentar trazer à consciência
uma cena, uma fantasia ou um pensamento, recalcado.
O sintoma seria movido pela compulsão à repetição
de um trauma e/ou de um gozo interditado, a cumprir duas funções antagônicas, a
de promover um retorno em ato do que foi esquecido e permitir, ao mesmo tempo,
um simulacro do prazer proibido. Ao dar vazão ao recalcado, os sintomas
constituem o "modo de recordar" encontrado pelo neurótico. Contra a
dobradinha patológica esquecimento/sintoma, Freud propôs a elaboração do
trauma.
Tal necessidade de elaboração pode ser observada
tanto nas modalidades individuais de retorno do sofrimento psíquico individual
quanto nas repetições de fatos violentos e traumáticos que marcam as sociedades
governadas com base na supressão da experiência histórica.
Totalitarismo
Todos os Estados totalitários se apoiam na
supressão do direito à informação. Só assim conseguem silenciar, pelo menos por
um tempo, a propagação das violações, dos abusos, das violências contra o
cidadão praticadas em "nome da ordem", a revelar que na vida social
não há direito perdido que não tenha sido usurpado por alguém. Falta de
liberdades, de direitos e de acesso à informação são elementos fundamentais na
consolidação do terrorismo de Estado.
Se o estabelecimento da verdade histórica, nas
democracias, está sujeito a permanente debate, o direito de acesso a ela deve
ser incontestável. A garantia do direito à verdade opõe-se à imposição de uma
versão monolítica, característica dos regimes autoritários de todos os matizes.
Ela exige a restauração da memória social, estabelecida no debate cotidiano e
sempre exposta a reformulações, a depender das novas evidências trazidas à luz
por ativistas políticos e pesquisadores.
Este é o estatuto da verdade buscada pela CNV: além
da revelação objetiva dos crimes praticados por agentes do Estado contra
militantes políticos, estudantes, camponeses, indígenas, jornalistas, professores,
cientistas, artistas e tantos outros --cuja prova está documentada em arquivos
públicos, muitos deles considerados ultrassecretos--, o relatório final
produzido pela comissão pode restaurar um importante capítulo da experiência
política brasileira.
A verdade social não é ponto de chegada, é
processo. Sua elaboração depende do acesso a informações, mesmo as mais
tenebrosas, mesmo aquelas capazes de desestabilizar o poder e que, por isso, se
convencionou que deveriam ser mantidas em segredo. Se o reconhecimento dos
fatos que um dia se tentou apagar não costuma trazer boas notícias, em
contrapartida a supressão da verdade histórica produz sintomas sociais
gravíssimos --a começar pela repetição patológica de erros e crimes passados.
Melhor encarar as velhas más notícias e transformar
a vivência bruta em experiência coletiva, no sentido proposto por Walter
Benjamin. Para isso é preciso construir uma narrativa forte e bem fundamentada,
capaz de transformar os restos traumáticos da vivência do período ditatorial em
experiência coletiva. "Para que se (re)conheça, para que nunca mais
aconteça."
Freud poderia ter lido Marx a respeito das
repetições farsescas dos capítulos mal resolvidos da história. Se o sintoma
neurótico é a verdade recalcada que retorna como uma espécie de charada que o
sujeito não decifra, o mesmo vale para os sintomas sociais. O Brasil ainda
sofre com os efeitos da falta de acesso à verdade dos períodos vergonhosos de
sua história, desde a escravidão até a ditadura militar. O modo como a ditadura
negociou sua dissolução com a sociedade brasileira --uma negociação entre quem
tinha as armas na mão e quem até então estivera sob a mira delas-- funcionou
como um verdadeiro convite ao esquecimento.
O apagamento rápido (e forçado) dos crimes da
ditadura lembra os efeitos perversos do esquecimento dos crimes da escravidão.
No segundo caso, a falta de reconhecimento do estatuto criminoso de três
séculos de escravidão impediu a promoção de políticas de reparação às
populações afrodescendentes recém-libertas do cativeiro. Os sintomas do
esquecimento estão aí até hoje, na perpetuação muitas vezes impune do trabalho
escravo em fábricas e fazendas, a lembrar a advertência de Nabuco de que a
prática continuada da escravidão perverteria a elite brasileira.
Não é absurdo pensar que o Brasil, país do
esquecimento fácil, do perdão concedido antes por covardia e complacência do
que por efeito de rigorosas negociações, seja um país incapaz de superar sua
violência social originária. Os sintomas da brutalidade consentida ressurgem
nas execuções policiais que vitimam jovens nas periferias de São Paulo, nas
favelas do Rio e em todas as outras grandes cidades brasileiras. Ressurge nos
assassinatos de defensores da floresta e pequenos agricultores, por jagunços e
policiais a mando de grandes grileiros de terras.
E se repete como farsa em episódios recentes, como
o da bomba lançada no dia 7 contra a sede da OAB do Rio de Janeiro, acompanhada
das mesmas ameaças sinistras com que agentes da repressão tentaram intimidar os
que articulavam, na década de 1980, a volta do Estado de Direito. Ou nas
acusações de militares da reserva contra investigações conduzidas pela CNV,
como se fosse o trabalho da comissão, e não os abusos cometidos no passado, o
que mancha a imagem das Forças Armadas.
Ou ainda em artigos como os de Contardo Calligaris,
colunista da Folha, que conjeturou sobre a suposta conveniência de torturar
alguém, sem levar em consideração que a comunidade internacional já decidiu que
a tortura é crime de lesa-humanidade.
Arte
Só a arte nomeia os crimes silenciados no Brasil.
As instalações de Cildo Meireles e Nuno Ramos. O teatro da Companhia do Latão,
d'Opovoempé e outros grupos corajosos. O rap de Mano Brown e outros manos;
faixas dos últimos CDs de Caetano Veloso e de Chico Buarque. Os filmes de
Sérgio Bianchi, Rubens Rewald e, recentemente, do pernambucano Kleber Mendonça
Filho.
Muitos comentários elogiosos a "O Som ao
Redor" se referiram ao contato inevitável que a vida urbana promove com os
ruídos emitidos pelos vizinhos, que nem as muralhas protetoras dos grandes
condomínios conseguem isolar. Sim, os barulhos inconvenientes da vida na cidade
geram tensão e desconforto num filme de enredo aparentemente banal.
Mas essa não é a razão da grandeza do filme, que a
crítica foi unânime em elogiar. Poucos críticos compreenderam o tema do retorno
do recalcado, revelado na cena final, em que os dois seguranças da rua são
chamados cordialmente pelo patriarca para executar um desafeto na fazenda --à
antiga maneira dos senhores de engenho-- e, na contramão da lógica da dominação
cordial, revelam ter vindo cobrar o antigo assassinato de seu pai ("por
causa de uma cerca...").
A última cena ilumina as razões da inclusão de uma
foto de representantes das ligas camponesas, organizada nas décadas de 50 e 60
e dizimadas pela ditadura, inserida entre as imagens que compõem a abertura do
filme. No último segundo do filme, um estampido forte --foi tiro ou o rojão da
moça insone contra o cachorro do vizinho?-- vem revelar a verdadeira natureza
do incômodo som ao redor, metáfora de velhas brutalidades, jamais elaboradas ou
reparadas, que estão na origem da história da luta pela terra e na base do
eterno poder do mais forte no Brasil.
Maria Rita Kehl –
Psicanalista e membro da Comissão da Verdade – 24.03.2013
IN Folha de São Paulo – http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/1250962-os-crimes-do-estado-se-repetem-como-farsa.shtml