A naturalidade com a qual os magistrados de São
Paulo recebem “presentes” de empresas privadas e com que um ministro do STF
fala do lobby que executou para “conquistar” esse cargo são exemplos de um
problema que nasce com a própria formação do Estado brasileiro. Uma das faces
desse problema é a baixa qualidade intelectual e cultural que atravessa uma
parte importante do Judiciário. Na cultura do bacharelismo, ainda presente, os
futuros magistrados são ensinados que não são servidores públicos, mas sim “membros
do poder”.
Marco Aurélio
Weissheimer
A Associação Paulista de Magistrados (Apamagis)
distribuiu, dia 1º de dezembro, presentes oferecidos por empresas públicas e
privadas para juízes estaduais, numa festa para mais de mil pessoas promovida
no Clube Atlético Monte Líbano, em São Paulo. A revelação foi feita em uma matéria da Folha de S.Paulo nesta
segunda-feira (10).
Segundo a reportagem assinada por Frederico
Vasconcelos, entre os brindes e presentes oferecidos aos juízes havia
“automóveis, cruzeiros, viagens internacionais e hospedagens em resorts, com
direito a acompanhante”. Entre as empresas públicas e privadas que participaram
do evento estão a Volkswagen (houve um sorteio de um Fox zero quilômetro), a
Caixa Econômica Federal (R$ 10 mil para divulgação e infraestrutura do evento),
operadora de Planos de Saúde Qualicorp.
Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Em 2010,
ainda segundo a reportagem da Folha de São Paulo, a festa dos magistrados
contou com o patrocínio do Banco do Brasil, da cervejaria Itaipava, da
seguradora MDS, da Agaxtur (o ministro Sidnei Benetti, do Superior Tribunal de
Justiça, ganhou um cruzeiro de cinco dias para duas pessoas no navio Grand
Mistral, oferecido por essa empresa) e da TAM (que doou duas passagens de ida e
volta para Paris).
Questionados pela reportagem do jornal, o
presidente da Apamagis, desembargador Roque Mesquita, e o ministro Sidnei
Benetti, do STJ, não quiseram se pronunciar sobre o evento e os presentes
recebidos pelos juízes. Já o corregedor nacional de Justiça, ministro Francisco
Falcão, anunciou que levará o assunto ao plenário do CNJ, nesta semana. Falcão
disse à Folha que tentará desengavetar proposta de sua antecessora, Eliana
Calmon, para “regulamentar patrocínios privados em eventos de juízes”. “Saímos
inteiramente dos padrões aceitáveis. Recompensa material de empresas não está
de acordo com a atuação do magistrado, um agente político”, criticou Eliana
Calmon. Na mesma linha, Cláudio Weber Abramo, da ONG Transparência Brasil,
questionou: “Como se pode confiar as decisões de juízes que recebem
presentes?”.
O “sonho” de Luiz Fux
No dia 2 de dezembro deste ano, o ministro do
Supremo Tribunal Federal, Luis Fux, revelou, em entrevista à jornalista Monica Bergamo,
da Folha de S.Paulo, o lobby que executou para garantir o “sonho” de uma vaga
no STF, no último ano do governo Lula. “Fux grudou em Delfim Netto. Pediu carta
de apoio a João Pedro Stedile, do MST. Contou com a ajuda de Antônio Palocci.
Pediu uma força ao governador do Rio, Sergio Cabral. Buscou empresários. E se
reuniu com José Dirceu, o mais célebre réu do mensalão. Eu fui a várias pessoas
de SP, à Fiesp. Numa dessas idas, alguém me levou ao Zé Dirceu porque ele era
influente no governo Lula" – relata a surpreendente entrevista. Fux diz a
Monica Bergamo que não lembra quem foi o “alguém” que o apresentou a José
Dirceu.
O hoje ministro disse ainda à jornalista que, na
época, “não achou incompatível levar currículo ao réu de um processo que ele
poderia julgar no futuro”. E garantiu que nem lembrou da condição de
“mensaleiro” de José Dirceu quando foi pedir o apoio do mesmo para ser indicado
ao STF.
O bacharelismo e os ecos do Brasil Colônia
A naturalidade com a qual os magistrados de São
Paulo recebem “presentes” de empresas privadas e com que um ministro do STF
fala do lobby que executou para “conquistar” esse cargo são exemplos de um
problema que nasce com a própria formação do Estado brasileiro. Uma das faces
desse problema é a baixa qualidade intelectual e cultural que atravessa uma
parte importante do judiciário brasileiro. No Brasil, a criação dos cursos
jurídicos foi uma imposição que parece nunca ter sido superada, naquilo que tem
de mais provinciano, autoritário e medíocre. Os cursos de direito de Olinda e
de São Paulo tiveram de ser criados para que o país que acabara de decretar a
independência tivesse a sua própria elite burocrática a administrar e operar o
sistema jurídico do país que acabara de nascer como estado formalmente
soberano.
Não havia escolas públicas ou mesmo boas escolas no
Brasil, no século XIX, quando os primeiros alunos, oriundos das classes altas,
passaram a frequentar as faculdades de direito de Olinda ou de São Paulo, e não
mais as classes da Universidade de Coimbra. Esses jovens, alfabetizados ou formados
sabe-se lá como foram os primeiros juízes, advogados e burocratas que
conformaram o Brasil independente, dos impérios à proclamação da república. A
história não justifica, mas ajuda a entender como mecanismos arcaicos de
apropriação do Estado fincaram raízes e se espalharam pelas instituições
públicas.
O bacharelismo que ainda se vê judiciário
brasileiro parece ecoar o mesmo bacharelismo lá dos anos vinte do século XIX.
Sob vários aspectos, tem-se uma repetição: jovens ou nem tão jovens, muitas
vezes subletrados, pouco formados, preenchem provas de múltipla escolha e de
pouca exigência intelectual e cultural e, da noite para o dia, passam a ganhar
altos salários (no mínimo, em início de carreira, o dobro, em valores líquidos,
do que o que um doutor, isto é, alguém com doutorado, recebe, já com a carreira
em andamento). São ensinados, no mais das vezes, que não são servidores
públicos, mas “membros do poder”. Essas aberrações têm história e um tenebroso
presente.
É claro que há juízes alfabetizados, talvez existam
até juízes leitores de Dostoiévski e Machado de Assis. Mas as exibições ao vivo
das sessões do STF mostraram comportamentos que só podem ser inteligíveis em
função do salário que ganham e do tipo de formação de muitos de nossos
magistrados. Somente salários mais altos do que as qualificações intelectuais
autorizam permitem demonstrações constrangedoras de arrogância e tacanhice.
O magistrado brasileiro não representa, ele julga
Assim como o Executivo e o Legislativo, o
Judiciário tem suas próprias contrapartidas de deveres, e não apenas
prerrogativas. Não há, por exemplo, eleição para juiz. Isso é um fator que em
tese favorece o institucionalismo republicano. Não é necessário que seja assim,
mas no Brasil e em outros países de tradição romano-germânica, no seu sistema
do direito, é assim. Pois bem, como servidores públicos, os juízes não podem
ser qualquer um que, uma vez eleito, tem na sua investidura no cargo a
prerrogativa de representante. O magistrado brasileiro não representa, ele julga.
O cargo é vitalício, no entanto, até mesmo casos em que juízes são acusados de
pedofilia ou de tentativa de homicídio têm como desfecho a aposentadoria
integral, por invalidez, desses senhores.
O problema não é a estabilidade funcional do juiz,
não é o alto salário, não é a exibição pela televisão, ao vivo, de sessões de
tribunais superiores. O problema é o baixo nível intelectual acompanhado de um
alto poder econômico, com prerrogativas de estabilidade imunes às urnas e ao
debate público e político sobre os rumos financeiros, jurídicos e sociais do
país, do estado e da sociedade. O problema é que, quando juízes ferem a lei,
direta ou indiretamente, eles têm de ser questionados e julgados como qualquer
cidadão. E não é isso o que acontece.
O ministro Luis Fux, por exemplo, não foi submetido
a nenhum tipo de investigação em função das declarações que fez a Monica
Bergamo. E nenhum dos magistrados de São Paulo parece se sentir na obrigação de
prestar contas à sociedade a respeito das contrapartidas que as empresas
beneficentes de seus encontros de fim de ano exigem.
O bacharelismo no Brasil e suas profissões
O bacharelismo no Brasil sobrevive em duas
profissões, a do juiz e a do médico. Advogado não precisa falar, porque só
gente muito desqualificada atende ou chama doutor alguém sem doutorado e o meio
da advocacia progressivamente incorpora essas considerações elementares no
trato entre os pares. Mas juízes e médicos seguem dispondo de prerrogativas que
dão a ver um estado de coisas do Brasil colônia. Os médicos, ao contrário dos
juízes, não constituem um dos poderes da República. E os juízes, sim, são parte
do Poder Judiciário (e nem por isso menos servidores públicos), mesmo quando
desconhecem e alegremente arrotam sobre qualquer republicanismo elementar,
quando já chegaram ao STF.
Juiz pode, sim, escutar seriamente uma dupla
sertaneja e encher os olhos de lágrimas, sonhando com aquela noite romântica em
Orlando, naquele restaurante com neon azul e palmeiras de plástico. Mas não
pode aceitar carro, nem passagem aérea, nem apartamento de amigo advogado
emprestado, em Nova York. É uma situação bastante pior que aquela do
psicanalista que vive escrevendo em jornal e frequentando vernissage de seus
pacientes neuróticos ou psicóticos. Porque, ao contrário dos psicanalistas que
eventualmente, como cidadãos, ultrapassem a esfera da tal da transferência, o
juiz é um servidor público, no caso brasileiro, de um Estado republicano. Não é
mais um bacharel tapa buraco de uma ex-colônia. Pelo menos não com esses salários.
Não com esses salários bacharelescos.
Marco Aurélio
Weissheimer –
13.12.2012
IN
“Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21394&boletim_id=1462&componente_id=24794
Juízes resistem a norma que restringe patrocínio
a eventos
a eventos
Frederico Vasconcelos
Crítico da participação de juízes em
eventos patrocinados por empresas em hotéis luxuosos, o corregedor nacional de
Justiça, ministro Francisco Falcão, foi chamado recentemente por magistrados de
Pernambuco para fazer uma palestra sobre o tema. Local escolhido: um resort na
ilha de Fernando de Noronha.
Falcão recebeu o convite como se
fosse uma provocação e pediu que o encontro, marcado para um fim de semana de
maio, fosse realizado em local mais adequado a um congresso jurídico. O evento
foi transferido então para um hotel no Recife, mas o corregedor não compareceu.
O episódio foi narrado pelo próprio
Falcão ao ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, como exemplo da
resistência imposta pelos juízes diante das tentativas do Conselho Nacional de
Justiça de controlar a realização desses eventos.
Mello é relator de dois mandados de
segurança impetrados por associações de magistrados que querem derrubar a
Resolução nº 170 do CNJ. Aprovada em fevereiro, a resolução impõe limites às
contribuições das empresas às associações e restringe a participação de juízes
em eventos com financiamento privado.
As associações alegam que a norma
viola os direitos de seus associados à liberdade de atividade intelectual e
científica, e ofende a liberdade de associação sem interferência estatal. Não
há data prevista para o julgamento dos dois mandados pelo STF.
Tempo livre
Antes de cancelar o evento de
Fernando de Noronha, a Escola Superior da Magistratura de Pernambuco havia
feito reservas para 60 pessoas no Dolphin Hotel -que cobra diárias de até R$
1.200 - e mais duas pousadas da ilha.
O programa do encontro, para o qual
foram convidados juízes de vários Estados, previa reuniões de trabalho apenas
entre 16h e 19h, deixando os participantes livres para fazer o que quisessem na
ilha no restante dos dias.
A Folha apurou que o gerente de uma
agência de um banco oficial no Recife foi consultado sobre a possibilidade de
contribuir com R$ 100 mil para o evento. A instituição recusou o pedido.
Falcão também apresentou a Celso de
Mello documento que sugere a presença de juízes no Festival Folclórico de
Parintins, realizado em junho no Amazonas, a convite do governo estadual, que
teria oferecido lugar em camarotes exclusivos e o pagamento de despesas com
hospedagem, transporte e alimentação.
Em abril, a Associação dos
Magistrados Brasileiros promoveu em São Paulo a sexta edição dos Jogos
Nacionais da Magistratura, com patrocínio da operadora de planos de saúde
Qualicorp, que ofereceu carros e aparelhos eletrônicos como brindes em eventos
anteriores de juízes.
As associações que foram ao STF
contra a resolução do CNJ queriam uma liminar para suspender os efeitos da
norma, mas o ministro Celso de Mello rejeitou o pedido.
Em sua decisão, o ministro considerou
inaceitável a "transgressão a uma expressa vedação constitucional que não
permite, qualquer que seja o pretexto, a percepção, direta ou indireta, de
vantagens ou de benefícios inapropriados", e recomendou vigilância sobre
os juízes.
Frederico Vasconcelos – 29.07.2013