Ciclo de greves entre 1978
e 1992 foi fundamental para a democratização brasileira.
Carlos Haag
“Pois quem toca o trem pra frente/ também de repente/ pode o trem
parar”, escreveu Chico Buarque em Linha de montagem (1980), uma
homenagem do compositor ao ciclo de greves iniciado em 1978 na principal área
industrial do país, o ABC paulista, após um intervalo de uma década sem nenhuma
paralisação. Uma vez iniciado o movimento, seguiu-se uma onda de 20 anos de
greves, um ciclo cujo pico, entre 1985 e 1992, fez com que o Brasil
apresentasse um dos maiores níveis de paralisações da história dos países
ocidentais. O trem parou mesmo de repente: se em 1977 não há registros de
greves, no ano seguinte seriam 118 e nos próximos 10 anos mais de 2 mil. Para
os economistas, a locomotiva brecou em função de mudanças tecnológicas, PIB,
índices de salários e desemprego. Já os sociólogos viam no maquinista um
proletário que queria tirar o país dos “trilhos” em que ele estava e, mais do
que salário, desejava mudanças estruturais e ideológicas.
“A análise das estatísticas das greves mostra que nenhum dos dois dá
conta do fenômeno. O ciclo brasileiro de paralisações comportou-se de forma
claramente vinculada às características e ao processo de transição política
brasileira para a democracia”, explica o cientista político Eduardo Noronha,
professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e coordenador do
projeto Arquivos das greves no Brasil: análises qualitativas e
quantitativas da década de 1970 à de 2000, feito em parceria com o Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), e apoiado pela
FAPESP, que gerou um banco de dados completo das paralisações, das
reivindicações feitas até o resultado final dos conflitos trabalhistas. Além
disso, foram feitas 50 entrevistas com líderes sindicais desde os anos 1960 e
que irão gerar três volumes a serem lançados em 2013. “Deu-se pouca atenção à
relação entre greves e processos políticos, sobrevalorizando as variáveis
econômicas ou tratando as políticas de forma genérica, seja mostrando as greves
como expressão de conflitos de classe ou político-partidários”, observa.
Segundo ele, a variação do volume de greves não se deve a mudanças menores nos
indicadores de emprego, renda ou inflação, ou, no campo da política, às
oportunidades de ampliação de demandas nos anos eleitorais. “Isso tudo
influencia a explosão de paralisações, mas não basta para explicar os momentos
de rupturas de um ciclo de greves”, diz.
Para Noronha, as greves fazem parte da trajetória brasileira de
democratização, de amadurecimento da sociedade brasileira. “Aqui, as greves não
eram só no espírito do ‘abaixo a ditadura’, mas queriam democracia nos lugares
de trabalho. Claro que a luta por salários melhores era a grande motivação, mas
havia também uma luta pela redução da falta de cidadania dentro das fábricas,
onde operários eram desrespeitados. A ditadura também estava nos lugares de
trabalho.” Há registros de reivindicações grevistas que pediam a liberdade de
ir ao banheiro sem consultar o capataz, entre outros direitos básicos. “As
greves, claro, tinham uma dimensão política, mas não partidária. Os
trabalhadores queriam um novo status na sociedade brasileira.” A democratização
nacional, após um longo período de autoritarismo, instabilidade econômica e
superação do modelo desenvolvimentista, é, nota o pesquisador, a chave para
entender a onda excepcional de greves. Afinal, desde o início do século XX até
o final da democracia populista, os sindicatos brasileiros não foram capazes de
promover um ciclo de greves com impacto econômico.
Em suas pesquisas, Noronha observou a presença de “marcos políticos e
econômicos dos governos federais”, de Geisel a Lula, que mudavam a tendência da
opinião pública independentemente das variáveis econômicas tradicionalmente
valorizadas na análise dos ciclos grevistas, como emprego e inflação. Os dados
mais relevantes para o entendimento do ciclo de greves brasileiro são até certo
ponto inéditos, pois resultaram de expectativas coletivas associadas aos marcos
das gestões governamentais e, secundariamente, às conjunturas políticas e
econômicas de cada ano. “O final da década de 1970 é uma ruptura da história
das relações de trabalho no Brasil. Nada menos provável do que a greve da
Scania em 1978 e, no entanto, foi a mais importante delas, por mostrar que as
greves eram possíveis e por despertar a opinião pública”, diz.
O pesquisador lembra que transições políticas são momentos ideais para
ações coletivas pelo crescimento do interesse da sociedade em geral em
participar de manifestações públicas. Havia, então, uma insatisfação geral com
o governo militar e a mídia comprou o discurso da democracia, incluindo a greve
como um instrumento legítimo da sociedade rumo à democratização. “Isso fez com
que os marcos de alteração do comportamento grevista no país fossem simultâneos
às alterações políticas e institucionais da transição, sendo os principais
momentos de ruptura os de 1978, quando os metalúrgicos do ABC forçaram a sua
incorporação ao projeto de ‘abertura’ dos governos Geisel e Figueiredo, e 1985,
ano da posse do primeiro governo civil do pós-64.” Assim, fatos políticos
abalaram ou incentivaram o movimento sindical.
“Pode-se observar isso na redução das greves entre 1980 e 1982,
explicável não apenas pelo aumento do desemprego, mas também pelo atentado do
Riocentro, que mostrou as rupturas entre os militares com o programa de liberalização
política. Os sindicatos, então, recuaram, pois entenderam que o momento não era
favorável para greves e trocaram o ativismo para a organização interna, que
levou à criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983”, conta
Noronha. Outro exemplo, segundo o autor, ocorreu com a queda dos indicadores de
greve a partir de maio de 1992, quando surgem as denúncias de corrupção do
governo Collor, até o fim do ano, com a queda do presidente. “Isso parece
confirmar a sensibilidade dos sindicatos em face de uma nova instabilidade
política e reforça a hipótese de que as variáveis políticas são essenciais para
se entender uma greve.”
Outro marco importante foram as eleições estaduais em 1982. Após um
longo período sem diálogo com o Estado, os sindicatos não pouparam os novos
governadores oposicionistas eleitos, cobrando-os com greves. “A partir desse
contexto em que os riscos da greve haviam diminuí-
do e as oportunidades de ganho
aumentado, as paralisações não se concentraram mais no setor privado, mas, em
especial, cresceram entre os servidores públicos.” As greves, então, dominam o
cenário nacional, já que a tendência dos governos estaduais em consolidar sua
legitimidade como lideranças democráticas refletiu-se no nível federal: a
disposição à negociação dos governadores era um contraponto à prática
repressiva do governo federal. Alguns segmentos do governo, diante das derrotas
eleitorais, passaram a se aproximar dos sindicalistas com propostas de reformas
da CLT.
O governo Sarney, em 1985, legitimou as lideranças sindicais como
interlocutores válidos para o Estado e as greves ajudaram a consolidar um novo
padrão de relações entre empregados e empregadores com a disseminação das
negociações. Mas as greves brasileiras eram movidas por componentes que fugiam
ao senso comum. “Os salários, em todo o mundo, são a pauta principal das greves
e aqui não foi diferente. No caso brasileiro, porém, as greves aumentam não
quando os salários caem, mas quando podem subir. Ou seja, as greves são
deflagradas quando os trabalhadores acreditam que seja possível obter ganhos
salariais, não importando o quanto os salários são percebidos como baixos ou
adequados”, explica. Assim, entre 1988 e 1991, apesar de o rendimento real não
ter caído, as greves crescem nos dois setores que, somados, ultrapassaram a
marca de 2 mil greves e cerca de 185 milhões de jornadas não trabalhadas.
Apesar disso, segundo Noronha, foram raras as paralisações que
apresentaram demandas políticas, embora a evolução do nível e do padrão de
conflitos estar claramente marcada pelos principais momentos políticos da
década de 1980, o que lhes dá outra dimensão além da corporativa. “A flutuação
do conflito trabalhista no Brasil seguiu de perto os passos da transição
brasileira. Primeiro, porque o movimento sindical avançou (e soube recuar) a
cada etapa do processo de liberalização do regime autoritário. Depois, porque a
incorporação da classe trabalhadora e da liderança sindical no processo de
transição se deu por meio das possibilidades abertas para a expressão de suas
demandas, e não pela sua participação nos pactos políticos que definiram a
transição. Se a greve não foi o único canal de manifestação desses segmentos,
foi a forma mais eficaz de expressão de descontentamento social e político”,
avalia. À medida que a classe trabalhadora se tornou capaz de ganhar força
sobre os empresários, pegos de surpresa nas primeiras greves, o conflito de
interesses entre capital e trabalho cresceu cada vez mais na arena política e
menos na industrial.
“A eclosão de greves é
determinada pela percepção da injustiça associada ao entendimento de que o
momento é oportuno para obtenção de ganhos. Houve momentos, por exemplo, em que
lideranças tentaram pressionar os trabalhadores à greve sem ressonância e
outros em que ocorreu o oposto.” No Brasil, a dispersão sindical e a baixa
capacidade das centrais sindicais de coordenar as negociações levam a que a
lógica dos sindicatos isolados seja aproveitar os momentos favoráveis de ganho
e retrair-se quando as reduções salariais pareçam ser dificilmente reversíveis.
“O fim do grande ciclo se liga aos indicadores econômicos mais recentes,
desfavoráveis às greves (inflação sob controle e desemprego em alta), à adesão
parcial à ortodoxia liberal e à superação do modelo desenvolvimentista no
governo FHC. E também a mudança da percepção pública sobre a pertinência e
eficácia das ações coletivas após a democracia brasileira atingir a sua
maturidade”, fala Noronha. Hoje, segundo o pesquisador, é provável que novos
ciclos ocorram, mas as greves no Brasil entraram na “normalidade”.
“As novas condições dos anos 1990 e o avanço das instituições
democráticas vão tirar a greve do centro das estratégias dos sindicatos.
Atualmente, elas só ocorrem quando os mecanismos de negociação não funcionam,
como no setor público, onde há paralisações violentas e longas”, analisa o
economista Claudio Dedecca, professor da Universidade Estadual de Campinas, e
coordenador do projeto Brasil século XXI, população, trabalho e sociedade.
“Não temos mais uma cultura de conflito no mundo do trabalho. A greve dos policiais
na Bahia mostrou isso ao não se nacionalizar como era o objetivo dos
grevistas”, diz. Para o pesquisador, a greve no Brasil sempre foi complexa. “É
possível vivermos numa situação com grande número de empregos e não haver
greve, porque as instituições estão funcionando em prol do trabalhador.” O
economista lembra ainda que os grandes setores sempre balizaram as greves no
passado e como a paralisação deixou de ser uma estratégia, os setores menos
organizados têm ainda menos estímulo para parar.
“O que faz ainda o Brasil parar é um crescimento nacional que não seja
redistribuído corretamente. Logo, a greve só acontece quando os canais de
comunicação são limitados e não há diálogo entre as partes”, nota. O
aprendizado do diálogo, aliás, foi fundamental para a criação da cultura
democrática nacional. “A greve acabou se transformando num elemento de
democratização e foram as paralisações que alimentaram a transição política e
vice-versa. O Brasil mobilizado nas ruas, nas Diretas ou mais tarde no impeachment de
Collor nasceu com as greves do ABC. As greves foram uma escola de como
mobilizar as massas, bem como introduziram os trabalhadores e suas lideranças
no cenário político nacional”, nota Noronha.
Essa novidade política, porém, não foi acompanhada diretamente pela
renovação dos mecanismos de negociação. “A partir da redemocratização, as
relações trabalhistas passaram a se caracterizar pelo descompasso entre as
instituições trabalhistas e legislativas, ainda arcaicas, e a modernização
econômica e social do país. Há setores que fogem a essa regra, como o
metalúrgico e o siderúrgico, de sindicatos fortes, que obrigaram as empresas a
modernizar a sua gestão de RH se antecipando às necessidades dos trabalhadores.
Mas são exceções”, nota o economista Hélio Zylbers-
tajn, professor da USP e
presidente do Instituto Brasileiro de Relações de Emprego e Trabalho. “O setor
público está muito longe dessa realidade, ainda imperando um modelo de greves
longas graças a um sistema de negociação que favorece o impasse. Como o setor
não mexe no capital e não impõe custos diretos às duas partes, mas se volta
para o público, há pouco interesse em estabelecer mecanismos mais modernos de
negociação ou arbitragem.” Segundo Hélio, o país negligenciou a importância
estratégica da gestão das relações de trabalho, preferindo o litígio na
Justiça.
“Há pouco espaço para a
negociação prévia e o resultado são as crises como as greves recentes de
serviços essenciais, cuja legislação é sempre adiada pelo Congresso. Mas não há
interesse nessa regulamentação no setor público em qualquer instância. Afinal, a
Justiça do Trabalho não pode obrigar prefeitos e governadores a sentar a uma
mesa de negociação com grevistas e arbitrar, como ocorre no setor privado”, diz
o cientista político Armando Boito, da Unicamp, coordenador da pesquisa Neoliberalismo
e trabalhadores no Brasil: política, ideologia e movimentos sociais. Para o
pesquisador, esse movimento é essencial, pois, assegura, o sindicalismo não
está em crise, como se apregoou nos anos 1990, mas ativo e grevista. “Em 2003,
de todos os acordos fechados, apenas 18% deles resultaram em aumentos
superiores à inflação. Em 2009 esse número cresceu para quase 90% em função do
aumento de greves com resultados. “São greves amplas, com presença massiva de
grevistas, por vezes entre 170 mil e 200 mil, com passeatas por São Paulo.
Houve mesmo ocupação de fábricas, um recurso extremo”, avisa. Para Boito, isso
ocorre a despeito da estrutura sindical deficiente do país, ligada ao Estado e
que vem provocando uma pulverização dos sindicatos em suas bases. “Há um
pluralismo na cúpula e unicidade na base. Os líderes sindicais têm grande
dependência do Estado e uma relação frouxa com os trabalhadores, com um caráter
ainda populista. Há muita greve forçada.” Na contramão de quem acha que o trem
não para mais, Boito adverte que o maquinista ainda tem o freio na mão. Mas é
preciso, rapidamente, modernizar a locomotiva.
Carlos Haag – Março de 2012
IN Revista Fapesp , Ed. 193–
http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/03/29/quando-parar-%C3%A9-ir-para-a-frente/