sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O modelo finlândes: unanimidade


O sistema de ensino na Finlândia se consolida há anos como um modelo de igualdade no ensino. A condição é atestada pelos excelentes resultados que o país escandinavo apresenta nas pesquisas.

Philippe Descamps
Para entrar na escola primária de Rauma, na costa do Golfo de Bótnia, na Finlândia, não é preciso atravessar portões nem muros. Simplesmente se passa por uma garagem grande com uma bicicleta e jogos. Do ginásio à sala de música, tudo parece ter sido projetado para acolher as crianças. Em 45 minutos de curso, a professora de inglês encadeia cinco atividades diferentes. Ela capta a atenção já nos primeiros segundos, graças a uma bola que circula no mesmo compasso que a palavra. Um dispositivo que não é desconhecido nas salas de aula de outros países, mas, com uma média de 12,4 jovens para um professor finlandês – ou seja, um dos melhores índices para o ensino primário na Europa –, ele parece particularmente eficaz aqui.
Em meados de agosto de 2012, Fanny Soleilhavoup e Fabienne Moisy acompanharam os filhos em um segundo retorno a esse país. Professoras francesas com disponibilidade para acompanhar os maridos, elas não imaginavam que a escolha que fizeram em favor da escola local, em vez do estabelecimento francês à sua disposição, mexeria com sua visão de educação. “Meus três filhos estão se transformando em pessoas de bem”, acrescenta Claire Herpin, decidida a permanecer longe da França. “Nós respeitamos suas diferenças. Eles respeitam os outros. Os professores sabem como incentivá-los e como reforçar o que há de melhor neles.” Dislexia, simples perda de interesse ou precocidade, essas famílias estavam diante de situações até comuns, mas que o sistema francês dificilmente levaria em consideração.
Alguns vão achar difícil acreditar no que elas descrevem: uma escola sem tensão, sem competição entre os alunos, sem concorrência entre as instituições, sem inspetores, sem repetência, até mesmo sem nota nos primeiros anos, e que teria os melhores resultados do mundo.
As pesquisas do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) suscitam grande preocupação na Alemanha e no Reino Unido, enquanto na França e nos Estados Unidos, mais bem classificados, elas são pouco comentadas. Apesar de seus investimentos na educação, esses grandes países aparecem apenas na média da OCDE para as capacidades de jovens de 15 anos em compreensão da escrita, matemática e ciências.1Além do rigor metodológico que visa descartar qualquer viés cultural, essas avaliações têm a vantagem de não tratar do aprendizado de um programa, mas de um conjunto de competências úteis para entender o mundo e resolver problemas nos contextos próximos da vida cotidiana.
Essas investigações revelaram Helsinque como um modelo inesperado. No resultado de 2009, que levava em conta 65 países, assim como nos três anteriores (2000, 2003 e 2006), a Finlândia aparece no grupo dos melhores desempenhos globais, como a Coreia do Sul e muitas cidades asiáticas parceiras da OCDE (Xangai, Hong Kong e Cingapura). É também o país (com a Coreia do Sul) cujos resultados são os mais homogêneos e no qual as correlações entre o meio socioeconômico e os desempenhos escolares parecem as mais fracas. Noventa e três por cento dos jovens finlandeses concluem o ensino médio, contra apenas 80% em média nos países ocidentais.2 O país se destaca, é verdade, por um dos mais baixos níveis de desigualdade social da OCDE.
Os resultados do Pisa atraíram um novo tipo de turista. Após uma visita em agosto de 2011, o então ministro francês da Educação Nacional, Luc Chatel, explicou: “Há uma série de receitas que vi funcionar aqui, que podem ser transpostas”, sobretudo “a grande autonomia dada às escolas”.3 Um ano depois, a revista britânica Socialist Review elogiava um sistema “desprovido de avaliações” e no qual “cada criança recebe um almoço saudável ao meio-dia”.4 Quer venham da direita liberal francesa ou do trotskismo inglês, cada observador estrangeiro vem fazer sua feira, em busca dessa ou daquela inovação que, isolada do resto, validará seu próprio projeto.
Na maioria das vezes, a imprensa internacional ignora as condições específicas da gênese do “modelo”, ao qual várias obras cativantes foram consagradas.5 No entanto, aqui, “descentralização” não é sinônimo de territórios em competição; falar de “envolvimento” dos professores não se resume à vontade de aumentar suas horas de “presença” nas escolas; e promover a “moderação” das despesas não disfarça o desejo de favorecer prestadores privados. “Esqueçam o Pisa!”, dispara Jukka Sarjala, um dos arquitetos da reforma escolar na década de 1970. “É claro que estamos orgulhosos desse reconhecimento do nosso trabalho. Mas temos de olhar para nosso sistema como um todo, e não bicar esse ou aquele aspecto.”
O sucesso finlandês tem suas raízes na tradição política dos países nórdicos, ligada às realizações concretas do Estado de bem-estar social, mais do que a uma doutrina. Instado a revelar a elogiada receita pedagógica em uma mesa-redonda da rede de televisão norte-americana PBS, em 10 de dezembro de 2010, o professor Pasi Sahlberg respondeu com um amplo sorriso: “Você sabe, entre nós a escola é gratuita para todos, desde o curso preparatório até a universidade!”. Com base nesses pressupostos, é difícil levar adiante comparações com o modelo dos Estados Unidos...
Na Finlândia, a gratuidade não se aplica apenas ao ensino. Até os 16 anos, todos os suprimentos são bancados pela comunidade, bem como o apoio escolar, a cantina, as despesas de saúde e o transporte para a instituição. O financiamento vem principalmente dos 336 municípios, mas o Estado central harmoniza a distribuição dos recursos. Se por um lado ele participa com apenas 1% do orçamento da escola no município mais rico, Espoo (perto de Helsinque), por outro, ele garante 33% dos recursos na média dos municípios,6 chegando a até 60% nas comunidades pobres. O governo também desestimula a abertura de escolas privadas. Elas praticamente desapareceram na década de 1970 (menos de 2% dos efetivos, contra 17% na França), com exceção de escolas associativas de pedagogias alternativas, do tipo Steiner ou Freinet.
Esse serviço público unificado não se mostra particularmente caro, muito pelo contrário. Em paridade de poder aquisitivo, a Finlândia gasta menos dinheiro por aluno no ensino primário e secundário do que a média dos países ocidentais, e muito menos do que os Estados Unidos ou o Reino Unido.7 A ênfase foi colocada na qualidade da supervisão, no número e na formação dos professores: a profissão do magistério tornou-se altamente respeitada e muito cobiçada, ainda que exija uma longa formação (pelo menos cinco anos de universidade, em geral mais) e que os salários acompanhem mais ou menos a média ocidental:8 significativamente mais altos do que os salários franceses no início de carreira (36% mais no fundamental, 27% no médio), eles se aproximam no fim da carreira. Apenas um candidato a professor em dez atinge seu objetivo. Também se espera dos docentes um envolvimento tão forte que não é incomum que alguns confiem seu número de telefone ou endereço de e-mail aos pais. Uma boa parte da formação (no mínimo um ano) não é dedicada ao conteúdo a ser transmitido, mas à pedagogia: a maneira de transmitir.

Ameaça no horizonte
Enquanto o modelo internacional se baseia em indicadores de desempenho, auditorias e rankings, os pedagogos finlandeses defendem outro uso das avaliações. Elas devem continuar a ser uma ferramenta para ajuste dos meios ou dos métodos a serviço do desenvolvimento de professores e crianças, nunca uma ferramenta de controle ou de competição. É por isso que as avaliações são realizadas por amostragem, e não em nível nacional. Cada um fica sabendo de seus resultados, mas não os de outras escolas. Vários municípios também lutaram contra os jornais que queriam publicar as classificações. E, quando os tribunais deram perda de causa à administração, boa parte da imprensa preferiu guardar silêncio.
“Na década de 1990, encorajou-se a competição entre as escolas, e um conservador eleito de Helsinque chegou a convidá-las a fazer publicidade. Hoje entendemos que foi um erro”, explica Susse Huhta, professor de finlandês em Helsinque. Com a abolição da obrigatoriedade de frequentar a escola de seu bairro, a busca pelas escolas mais conceituadas, até então marginal, tornou-se um fenômeno importante na capital, onde 30% das crianças no oitavo ano (13 anos) não frequentam o estabelecimento da sua região. Isso só fez provocar um rápido crescimento das desigualdades sociais na Finlândia, segundo Tuomas Kurttila, diretor da Associação de Pais: “Nossa política educacional corre o risco de se tornar uma simples vitrine, enquanto nossas políticas sociais se degradam. Os sucessos de hoje foram construídos nas décadas de 1970 e 1980. O sucesso de amanhã se constrói hoje. Ainda há muitas crianças que não vão além da escolaridade obrigatória. Estou otimista, mas temos de permanecer vigilantes diante do crescimento das disparidades”. “Pedimos à escola que responda a todos os problemas da sociedade, algo que ela dificilmente pode fazer”, acrescenta Petri Pohjonen, vice-diretor do Escritório Nacional de Educação.
Depois de ter dirigido por um longo tempo uma escola e em seguida o departamento de ensino da cidade de Vantaa, vizinha a Helsinque, Eero Väätäinen resume um sentimento generalizado entre os professores finlandeses: “Devemos ter em mente que as crianças não estão na escola para passar nas provas. Elas vêm aprender a vida, encontrar seu próprio caminho. É possível medir a vida?”. No país europeu mais bem colocado nos rankings internacionais, as pessoas veem com muita desconfiança... os rankings.


1 OCDE (2011), Résultats du Pisa 2009 [Resultados do Pisa 2009], em seis volumes, Edição OCDE, Paris.
2 Estatística da OCDE, 2010.
3 “En visite en Finlande, Chatel prépare la rentrée et 2012” [Em visita à Finlândia, Chatel prepara o retorno em 2012], Les Échos, Paris, 19 ago. 2011.
4 Terry Wrigley, “Growing up in Goveland: how politicians are wrecking schools” [Crescer em Goveland: como os políticos estão destruindo escolas], Socialist Review, Londres, jul.-ago. 2012.
5 Paul Robert, La Finlande: un modèle éducatif pour la France? Les secrets de la réussite [Finlândia: um modelo educacional para a França? Os segredos do sucesso], ESF Editor, 2008. Pasi Sahlberg, Finnish lessons: what can the world learn from educational change in Finland? [Lições finlandesas: o que o mundo pode aprender com a mudança educacional na Finlândia?], Teachers College Press, 2011. Hannele Niemi, Auli Toom e Arto Kallioniemi, Miracle of education, the principles and practices of teaching and learning in Finnish schools [Milagre da educação: os princípios e práticas do ensino e do aprendizado nas escolas finlandesas], Sense Publishers, 2012.
6 Dados do Escritório Nacional de Educação, agência independente encarregada do acompanhamento dos programas e da avaliação do ensino médio e fundamental.
7 OCDE, Regards sur l’éducation [Olhares sobre a educação], 2010.
8 Idem.


Philippe Descamps – Jornalista – 01.03. 2013
IN Le Monde Diplomatique Brasil – http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1386

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Um pacto pela reforma da segurança pública


há uma enorme dificuldade de se assumir segurança pública como um tema prioritário. Ao contrário do jogo de empurra que tem sido travado, com União, Estados e municípios brigando para saber quem paga a conta e/ou quem manda em quem, segurança pública exige superarmos antagonismos e corporativismos e pactuarmos um projeto de uma nova polícia.

Renato Sérgio de Lima, Cláudio Beato, José Luiz Ratton, Luiz Eduardo Soares e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
Segurança pública ainda é um tema tabu no Brasil. Avançamos na construção de discursos baseados em princípios de direitos humanos e de cidadania, mas ainda convivemos com um modelo em que a ausência de reformas estruturais obstrui --em termos práticos e políticos-- a garantia da segurança pública verdadeiramente para todos.
Os dados publicados na edição 2013 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública reforçam a sensação de que vivemos em uma sociedade fraturada e com medo; aflita diante da possibilidade cotidiana de ser vítima e refém do crime e da violência.
Não bastasse isso, nosso sistema de Justiça e segurança é ineficiente, paga mal aos policiais e convive com padrões operacionais inaceitáveis de letalidade e vitimização policial, com baixa taxa de esclarecimento de delitos. Sem falar nas precárias condições de encarceramento.
Não conseguimos oferecer serviços de qualidade, reduzir a insegurança e aumentar a confiança nas instituições, nem conseguimos mediar conflitos e conter atos violentos.
No plano da gestão, paradoxalmente, várias iniciativas têm sido tentadas: sistemas de informação, integração das polícias estaduais, modernização tecnológica, mudança no currículo de ensino policial.
Porém, são mudanças incompletas. Ganhos como a reversão do medo provocada pela implantação das UPPs, no Rio, tendem a perder força, na medida em que não são capazes, sozinhos, de modificar culturas organizacionais anacrônicas.
As instituições policiais não experimentaram reformas significativas nas suas estruturas. O Congresso, há 25 anos, tem dificuldades para fazer avançar uma agenda de reformas imposta pela Constituição de 1988, que até hoje possui artigos sem regulação, abrindo margem para enormes zonas de insegurança jurídica.
Para a segurança pública, o efeito dessa postura pode ser constatado na não regulamentação do artigo 23, que trata das atribuições concorrentes entre os entes, ou do parágrafo sétimo do artigo 144, que dispõe sobre as atribuições das instituições encarregadas em prover segurança e ordem pública.
Ou seja, há uma enorme dificuldade de se assumir segurança pública como um tema prioritário. Ao contrário do jogo de empurra que tem sido travado, com União, Estados e municípios brigando para saber quem paga a conta e/ou quem manda em quem, segurança pública exige superarmos antagonismos e corporativismos e pactuarmos um projeto de uma nova polícia.
Isso significa que resultados de longo prazo só poderão ser obtidos mediante reformas estruturais que enfrentem temas sensíveis como a distribuição e a articulação de competências e a criação de mecanismos efetivos de cooperação, a reforma do modelo policial determinado pela Constituição e o estabelecimento de requisitos mínimos para as instituições no que diz respeito à formação dos profissionais, transparência e prestação de contas, uso da força e controle externo.
Tais iniciativas devem conduzir a discussão sobre o significado da necessária desmilitarização das estruturas policiais, com a adoção do ciclo completo de policiamento e a instituição de uma carreira única de polícia, que valorize o policial.
É necessário, também, consolidar o sistema de garantias processuais e oferecer adequadas condições de cumprimento de penas. Até porque não podemos deixar brechas para o crime organizado.
Estamos aqui propondo um pacto suprapartidário em defesa da democracia e da cidadania. Os autores deste artigo reconhecem que se encontram em diferentes posições do quadro político brasileiro. A nossa união objetiva reiterar que a reforma do modelo de segurança pública não pode ser mais adiada.
Se conseguirmos fazer isso, quem ganha são os policiais brasileiros e, sobretudo, ganha a sociedade.


Renato Sérgio de Lima – Membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Cláudio Beato – Professor titular de sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais; José Luiz Ratton – Professor de sociologia e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco; Luiz Eduardo Soares – Ex-secretário nacional de Segurança Pública (governo Lula); Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo – Professor de ciências criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – 03.11.2013
  

domingo, 24 de novembro de 2013

De grão em grão


Além de impedir avanços progressistas no Congresso, os evangélicos replicam, no varejo político local, os mesmos debates. E retrocessos.
(...) 
Para mulheres, gays e adeptos de religiões de matrizes africanas, mais grave do que o avanço sobre o poder público é o impacto social na vida dessas minorias.

Rodrigo Martins e Willian Vieira
Na última sexta-feira 12, na sede da Primeira Igreja Batista de Campo Grande (MS), um exército de homens de terno e gravata com Bíblias a tiracolo se reuniu para um evento. Não era propriamente um culto. Entre os 350 pastores havia 25 parlamentares, como a vereadora Rose Modesto (PSDB), liderança da bancada evangélica local e autora da lei que obriga o poder público a apoiar eventos evangélicos. Herculano Borges (PSC), que aprovou projeto para proibir a instalação de máquinas de preservativos nas escolas, e Alceu Bueno (PSL), opositor do reconhecimento de uma associação de travestis como de utilidade pública, também vieram. Mas o nome mais aguardado era o do pastor Wilton Acosta. Ali para abrir o Encontro Estadual de Lideranças Evangélicas, o presidente do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp) prestigiava ao mesmo tempo a criação da Frente Parlamentar Evangélica da cidade. Daí os melhores pastores locais estarem dispostos em fila, como soldados da batalha maior: “Alinhar os evangélicos para disseminar valores cristãos por meio de leis políticas públicas”.
O evento é sinal de um fenômeno bem maior. Enquanto os holofotes da sociedade civil e da imprensa focam na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, desde o mês passado presidida por um pastor, Marco Feliciano (PSC-SP), que já fez declarações homofóbicas, racistas e machistas, um processo mais silencioso se alastra pelo País. Nos moldes da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso, com seus73 parlamentares, o número de bancadas evangélicas em assembleias legislativas e câmaras municipais, em capitais e cidades do interior, tem disparado. Já há frentes parlamentares evangélicas (FPEs) organizadas em 15 estados brasileiros, a maioria criada desde 2012. São mais de cem os deputados estaduais evangélicos organizados. Já o número de FPEs nos municípios é difícil de calcular. “A expectativa é passar de 10 mil vereadores evangélicos”, garante Acosta.
Espécie de tutor do movimento, o pastor coordena um levantamento dos parlamentares ligados à causa em todo o Brasil. Prestes a entrar num voo para o Acre, ele afirma: “O objetivo é verticalizar a pauta parlamentar nacional, aprovando leis em todas as assembleias e câmaras. Todas”. Com oratória fluida e vertida em termos jurídicos, Acosta explica como deve instalar um braço da Associação de Parlamentares Evangélicos do Brasil (Apeb) em cada cidade. “Já temos 15 coordenações estaduais. Logo serão 28. Cada coordenador tem a missão de instalar uma unidade em toda cidade de seu estado. Hoje, quando detectamos um projeto contra nossos valores, contatamos o parlamentar para agir. Mas leva tempo. No futuro será automático.”
A verticalização é levada a sério. Em 30 de novembro, Dia do Evangélico em Brasília, 700 líderes de 20 estados, boa parte parlamentares e juristas, se reuniram para decidir, com toda sua modéstia, os rumos do País. Representantes da Apeb e do Fenasp leram seus relatórios de atividades. Deputados federais da FPE do Congresso falaram de suas experiências. Daí emergiu a "agenda estratégica nacional", que deve pautar as ações de políticos evangélicos nos níveis estadual e municipal. Entre os pontos estão impedir os avanços nos códigos Penal e Civil, envolvendo aborto, posse de maconha, criminaização da homofobia e casamento gay. "Para trazer o nacional para o local, faremos mais encontros em todo o País", afirma o vereador Herculano Borges (PSC), primeiro-secretário da Apeb. "A ide ia é subsidiar os vereadores com fundamentos legais, para que ajam de forma local." Ou seja, lutar contra o "avanço" dos movimentos gays e feministas. "Quando barramos as propostas deles no Congresso, eles tentam implantá-las nas cidades e estados. Aí criam jurisprudência. Não vamos permitir isso."
O mesmo tem ocorrido no âmbito estadual. Ao liderar o movimento que criou, em 2011, a Frente Parlamentar Evangélica da Assembleia de São Paulo, o deputado Carlos Cezar (PSC) deixou claros os objetivos: ser contra a descriminalização da maconha, o casamento gay e o aborto. "Não somos bobos. Sabemos que são temas de competência do Congresso, mas o que falamos aqui repercute em Brasília. Afinal, os deputados federais e senadores se elegem com apoio de deputados estaduais e vereadores. A base tem direito de cobrar uma postura firme deles no Parlamento." Hoje, 15 dos 94 deputados paulistas integram o movimento evangélico.
Atuamente, há duas frentes na batalha dos evangélicos na política. Uma volta-se aos interesses institucionais e simbólicos. O objetivo é conseguir dividendos para as igrejas, como manter o status quo das leis de radiodifusão, arrebanhar pedaços de ruas para templos, não pagar IPTU e instituir leis que reconheçam a cultura evangélica e forcem a abertura dos cofres públicos a tais eventos, assim como conseguir maior espaço simbólico, como nomear praças e logradouros com símbolos religiosos e instituir feriados como o Dia do Evangélico. Exemplos abundam. O próprio Borges ajudou a aprovar um projeto que reconheceu a música gospel como manifestação cultural, o que abriu espaço para a prefeitura financiar a Quinta Gospel e a Marcha para Jesus. "Hoje conseguimos ajuda para contratar os músicos, montar a estrutura." Proposição do vereador João Oscar (PRP) autorizou a prefeitura de Belo Horizonte a vender uma rua para a expansão da igreja que freqüenta. Em São Paulo, a Câmara aprovou em 2012, às vésperas da eleição, um projeto que permite à Igreja Mundial em Santo Amaro ocupar uma rua. Diz-se que a aprovação veio em troca do apoio a José Serra (PSDB). No Recife, foi aprovada a lei que institui a Semana da Cultura Evangélica, obrigando a Secretaria de Cultura a promover (e financiar) debates, "palestras em instituições de ensino" e "apresentações artísticas em praças públicas".
Proibir bares a menos de 300 metros de igrejas foi a proposta do vereador de Sorocaba Benedito Oleriano (PMN). Os fiéis precisavam "de paz para orar". O mesmo levou uma vara de marmelo à Câmara para defender o direito dos pais de bater nos filhos. Com o Livro dos Provérbios em mãos, sentenciou: "Não retires a disciplina da criança, porque, fustigando-a com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás com a vara e livrarás sua alma do inferno". Enquanto isso, os evangélicos de Maringá conseguiram, via projeto de lei, transferir a data da Marcha para Jesus para coincidir com a Parada Gay, e a Câmara do Rio concedeu ao pastor Silas Malafaia a medalha Pedro Ernesto, dada a quem se destaca na sociedade.
Provas da ocupação do discurso e dos espaços públicos pela religião. Assim, era uma vez uma Praça Chico Mendes em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio. Homenagem ao ativista morto na Amazônia, o espaço foi convertido pela prefeita evangélica Aparecida Panisset em Praça da Bíblia. "Antes essa praça era relacionada a crimes e hoje manifesta a palavra de Deus", disse no evento. Igualmente simbólico, o Dia do Evangélico foi aprovado em dezenas de cidades. Mas o que mais preocupa os laicos é a frente da ação voltada para projetos de cunho moral, em prol de um ideário conservador de nação, família e vida. Não foi apenas Carlos Apolinário (DEM) a propor a instituição do Dia do Orgulho Hétero e o banheiro gay em São Paulo. Em Ilhéus (BA), o vereador Alzimário Belmonte (PP) tentou transformar em lei a obrigatoriedade do Pai-Nosso antes das aulas. Projetos mais esdrúxulos pipocam País afora.
Para tal, os evangélicos dependem dos números. E têm conseguido. Há casos emblemáticos, como a pequena São Leopoldo (RS), onde seis dos 13 vereadores São evangélicos (PRB, PSB, PP. PT, PSL e PSDB), um crescimento de 100% em relação à última legislatura. Em cidades maiores, o fenômeno é o mesmo. No Rio eram quatro evangélicos na última gestão: hoje são sete, aumento de 75%. Em São Paulo, o número subiu de oito para 11. Em Aracaju eram dois, agora são quatro. No Recife, eram seis, e agora são 11. Em Curitiba, a bancada surgiu em 2013 com 11 vereadores: quase um terço da casa. A regra é clara: sem maioria para aprovar seus projetos, os evangélicos formam alianças e usam a barganha política para impedir propostas progressistas.
Embalado pelo crescimento da bancada, o vereador sindicalista evangélico Luiz Eustáquio (PT) criou uma FPE na Câmara do Recife. Entre os temas discutidos estão formas de impedir o aborto, a legalização da maconha e o casamento gay, explica o vereador, recém-chegado de um encontro da FPE no Congresso, em Brasília. "Fui lá me inspirar e aproveitei para participar do culto na Câmara." Mas temas do Congresso cabem no âmbito municipal? "E importante replicar os temas aqui para fortalecer o debate nacional." Um exemplo é a Lei do Nascituro. Um projeto tramita na Câmara para estabelecer os direitos dos embriões. "Talvez caiba propor algo municipal." O mesmo Dia do Nascituro foi aprovado em dezenas de cidades, o que leva o poder público a investir em palestras e seminários que ataquem a legalização do aborto.
"A gente tem observado a replicação desses projetos no âmbito do Congresso também nos estados e municípios", diz Kauara Rodrigues, assessora parlamentar do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), ONG que monitora no Congresso Nacional projetos relativos aos direitos das mulheres. Das 33 proposições em tramitação hoje, 30 trazem retrocesso, a maioria de autoria da bancada evangélica, afirma. O mesmo ocorre em , âmbito municipal. "O avanço dos evangélicos tornou a luta muito mais desfavorável." Pois, além de propor leis que impedem o avanço da legislação reprodutiva, as FPEs têm centrado fogo na fonte de recursos das ONGs. Dias atrás, deputados requereram uma CPI para "investigar a existência de interesses e financiamentos internacionais para promover a legalização do aborto no Brasil". Exigir transparência é parte da prática democrática.
"O problema é quando essas ações servem não para punir um grupo, mas para negar políticas públicas para segmentos que legitimamente, por razões históricas, se sentem excluídos", alerta Marilene de Paula, coordenadora de direitos humanos da Fundação Heinrich Bõll.
Para mulheres, gays e adeptos de religiões de matrizes africanas, mais grave do que o avanço sobre o poder público é o impacto social na vida dessas minorias. "Há uma capilaridade grande dessas igrejas nas periferias" diz Rodrigues. "A pauta é sempre conservadora. A mulher vai ao culto e ouve o pastor pregar contra a camisinha, os homossexuais, dizer que lugar de mulher é satisfazendo o marido." C) Censo reitera o crescimento do pente-costalismo na base da pirâmide social: 64% do grupo ganha até um salário mínimo e 42% tem ensino fundamental incompleto. "É nessas periferias desassistidas que essas igrejas acabam servindo como fronteira moral, como fortaleza contra o tráfico de drogas e a violência", diz o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC-RS. "Ao servir de suporte comunitário, ganham espaço para implantar sua agenda moralizante."
Os símbolos do retrocesso em questões de liberdade sexual ligados à religião pululam não apenas nas igrejas como na internet. Há uma miríade de blogs a monitorar projetos de lei e ações do Executivo e vídeos gravados direto do púlpito, como o famoso "Como ser submissa a uma pessoa omissa?" Um exemplo mais radical chegou aos ouvidos de Rodrigues. A jovem Noêmia chegou em casa após ir ao bar com os amigos. O irmão achou que ela estava possuída pelo demônio e chamou três amigos evangélicos da rua, que oraram, arrancaram seus piercings e lhe deram uma surra de Bíblia. A garota procurou o CFEMEA, que encaminhou o caso à Secretaria de Direitos Humanos. Outra cena chocante aconteceu em Olinda. Centenas de evangélicos com faixas protestaram em frente a um terreiro de umbanda. Testemunhas garantem que houve depredação e ameaças de morte.
Mais do que ninguém, os homossexuais têm fatia mais farta desse retrocesso. Não apenas as FPEs travam luta cerrada contra a criminalização da homofobia e associam homossexualismo à pedofilia como o deputado tucano João Campos, presidente da frente evangélica no Congresso, propôs que a resolução do Conselho Federal de Psicologia, que não permite "cura" aos gays, fosse revogada. "Temos de aprovar leis como no México, onde quem exerce função religiosa fica impedido de exercer função governa mental", defende Toni Reis, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. "Assistimos hoje a um aumento visível da homofobia no Brasil, o que tem uma ligação direta com essa onda de incentivo ao ódio e à intolerância." Exemplos da pressão evangélica, diz, foram a suspensão do material educativo do projeto Escola sem Homofobia (o "kit gay") e o veto presidencial à campanha de prevenção da Aids a jovens gays no carnaval.
No governo, o assunto é tabu. Não apenas a presidenta Dilma Rousseff tem se mantido silente diante da polêmica a envolver Marco Feliciano como presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias como a Secretaria de Políticas para as Mulheres não se pronuncia sobre o tema. A titular da pasta, Eleonora Menicucci, é abertamente a favor do aborto. Sua indicação foi vista como afronta pelos evangélicos. Mas seu silêncio incomoda ainda mais as feministas. A Secretaria de Diretos Humanos tampouco respondeu a questões sobre o tema. O silêncio é total.
Mas qual é, afinal, o poder de fato dos parlamentares evangélicos sobre o futuro moral do País? "Não dá para subestimar o voto evangélico nem a organização política das igrejas", diz Ari Oro, professor de antropologia da religião da UFRGS e autor de Os Votos de Deus: Evangélicos, política e eleições no Brasil. "Se esse crescimento vai continuar dependerá da organização das próprias igrejas." O professor cita o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, tratado por outras como modelo de gestão política. Sua cúpula dirigente decide, verticalmente, quais os candidatos em cada eleição e quantos, para evitar a repartição de votos. "Já ouvi pastores de igrejas menores dizendo que é preciso adotar o modelo da Universal." Se outras igrejas se organizarem de modo a garantir a transformação dos fiéis em candidatos eleitos, a tendência é uma participação cada vez maior de evangélicos na política.
Igreja com a maior representação evangélica no Congresso (24 deputados), a Assembleia de Deus preparou, em 2010, uma ofensiva para as eleições municipais. Queriam eleger um vereador em cada um dos 5.570 municípios. "Infelizmente, não atingimos a meta. Mas 60% das cidades têm ao menos um vereador ligado à nossa igreja", afirma o pastor Lélis Washington Marinhos, presidente do conselho político da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Para o Censo, há 12 milhões de fiéis da Assembleia, igreja que mais cresceu nos últimos dez anos: 4 milhões de novos adeptos. "Mas somos entre 18 milhões e 20 milhões. Por isso entendemos que estamos sub-representados. Deveríamos ter ao menos 50 deputados federais/" Isso porque o engajamento político dos assembleianos começou há menos de 20 anos. A igreja existe desde 1910. "Os pastores eram refratários à política, mas as igrejas dependem do poder público para ter alvarás, licenças para obras, verbas para tocar projetos sociais", lista. "Sem falar dos projetos que ameaçam a família."
Não que essa guinada moral seja prerrogativa exclusiva dos evangélicos. "Eles vocalizam esse conservadorismo que acaba pulverizado na sociedade e no Congresso", pondera a professora Maria das Dores Machado, da UFRJ. Oro, da UFRGS, concorda. "Desde a Constituinte de 1988, a Igreja Católica tentou formar um bloco parecido, nos mesmos moldes." A Renovação Carismática tem eleito políticos todos os anos, ainda que menos do que a Universal, por exemplo. "Sempre que a discussão tem base moral, se envolve a vida, a família e os costumes, evangélicos e católicos se unem." Exemplo é a criação das chamadas "frentes da família", com católicos e evangélicos lado a lado.
Mas a política dita laica também tem responsabilidade. "A esquerda, desde 2002, fez alianças fortes com os neopentecostais, misturando grupos feministas e pró-homossexuais com segmentos religiosos ultraconservadores, o cúmulo do pragmatismo", diz Mariano. Um cenário difícil de mudar. De 2000 a 2010, a população evangélica arrebanhou 16,1 milhões de fiéis, somando 42,3 milhões de brasileiros. Uma multidão encabeçada por dezenas de igrejas, cada uma com seus canais de rádio e tevê. Só a Universal, estima-se, é dona de 20 canais de tevê e 40 emissoras de rádio.
"Não por acaso, parlamentares temem irritar esses grupos e provocar um boicote ou reação desse poderio midiático", avalia Mariano. Assim, a influência evangélica na política se dá não apenas pelo confronto direto nas sessões, mas por meio de uma espécie de tática de não agressão. "Daí você entender por que RR Soares e José Wellington têm sempre os tapetes vermelhos dos executivos de estados e municípios e mesmo do Planalto. Isso cristalizou a legitimação do ativismo político religioso no Brasil."
Uma das últimas vitórias do segmento foi o projeto de lei que prevê o pagamento de um salário por 18 anos a mulheres estupradas, batizado de "Bolsa Estupro". Pelo projeto, psicólogos cristãos atenderiam as vítimas para convencê-las "sobre a importância da vida". Tudo pago pelo Estado. Pensando nisso, a procuradora do município de São Paulo, Simone Andréa Barcelos Coutinho, defende uma reforma no código eleitoral que acabe com as bancadas religiosas. "Se tivéssemos uma Constituinte hoje, o texto dela resultante seria certamente muito mais conservador, em nada parecido com a Constituição Cidadã que hoje temos e com a qual o STF nos tem socorrido."
Na avaliação do pastor Ricardo Gondim, líder da Igreja Betesda, a corrida política dos evangélicos é reflexo da disputa entre as igrejas no mercado religioso. "Elas querem ter cada vez mais fiéis e mais representantes políticos. Mas parecem esquecer que a expansão do protestantismo só foi possível com a conquista do Estado laico." Acusado pelo mainstream evangélico de ser "herege" por defender que temas como o casamento gay e o aborto devem ser vistos como questão de direitos civis e saúde pública, respectivamente, Gondim teme que o radicalismo evangélico ameace a liberdade religiosa no País. "Assim como não quero um burocrata de Brasília dizendo o que posso dizer em meu púlpito, o Legislativo e o Judiciário não podem tomar uma decisão para agradar a este ou àquele grupo religioso. Queremos ter uma teocracia?"
Mas há limites à ascensão conservadora. Primeiro, porque os evangélicos mais radicais tendem a não emplacar candidatos em eleições majoritárias, visto a rejeição da sociedade laica a pautas morais extremas. Segundo, porque o voto dos evangélicos já não está mais confinado na direita como outrora. "Hoje, os votos dos evangélicos estão distribuídos em diversos partidos, algo que tende a prosseguir", diz o sociólogo André Ricardo Souza, da UFS-Car. "Com maior acesso a programas sociais, renda e educação, a autonomia dessas pessoas tende a aumentar. Por isso, não vejo um futuro teocrático fundamentalista evangélico."


Rodrigo Martins e Willian Vieira – 19.04.2013

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A desinformação deliberada


A Lei de Meios da Argentina resulta de um longo processo de construção que mobilizou os mais diversos setores da sociedade civil e do governo. (...) busca impedir a continuidade de um mercado oligopolizado de mídia, historicamente excludente de vozes, corruptor da opinião pública e protetor da liberdade de expressão de apenas uns poucos.

Venício A. de Lima
A Lei de Meios da Argentina resulta de um longo processo de construção que mobilizou os mais diversos setores da sociedade civil e do governo. Néstor Busso e Diego Jaimes organizaram um livro – La Cocina de la Ley. El Processo de Incidencia em la elaboración de la ley de servicios de comunicación audiovisual em Argentina (Foro Argentino de Radios Comunitárias; 2011) – que, além de descrever todo o processo, reúne os principais documentos que deram origem ao projeto original (disponível aqui).
Depois de tramitar e receber mais de duzentas emendas no Congresso Nacional, a lei foi finalmente aprovada por ampla maioria e sancionada pela presidente da República em outubro de 2009, substituindo um decreto-lei da ditadura militar, promulgado em 1981 (ver aqui o texto integral da lei).
A Lei de Meios busca impedir a continuidade de um mercado oligopolizado de mídia, historicamente excludente de vozes, corruptor da opinião pública e protetor da liberdade de expressão de apenas uns poucos. Para isso, estabelece limites – em nível nacional e local – para o número de concessões de emissoras de rádio e de televisão a ser controlado por um mesmo grupo.
Na prática, nenhum dos três setores prestadores dos serviços de comunicação audiovisual – de gestão estatal, de gestão privada com fins lucrativos e de gestão privada sem fins lucrativos – poderá controlar mais de um terço das concessões que serão outorgadas por um prazo máximo de dez anos.
Impede-se assim a concentração da propriedade e garante-se a liberdade de expressão de setores até aqui excluídos do “espaço público da mídia” – povos originários, sindicatos, associações, fundações, universidades, isto é, entidades privadas sem fins lucrativos.
São também garantidas cotas de exibição para o cinema argentino, para a produção independente nacional, o fomento à produção de conteúdos educativos e para a infância, e o acesso universal à transmissão de eventos esportivos. As novas concessões e as renovações de concessões terão que passar por audiências públicas e foi criada uma Autoridade Federal de sete membros e um Conselho Federal de quinze membros, ambos colegiados plurais e representativos, que zelarão pelo cumprimento da lei.
Uma das inovações da Lei de Meios é que foram nela didaticamente incluídas trinta e sete “Notas Explicativas” (NE) sobre a origem e/ou as razões para a adoção de princípios e normas. Essas NE são descrições que não só especificam os documentos de organismos multilaterais (ONU, Unesco, União Europeia, OEA, Cepal, UIT, dentre outros) que recomendam a adoção das normas e princípios, como também oferecem uma análise comparada de regulações praticadas em outras democracias representativas (Estados Unidos, Canadá, França, Espanha, Reino Unido, Austrália, dentre outros). Além disso, a lei traz quase uma centena de “notas de rodapé” que remetem para entidades, pessoas, referências bibliográficas e/ou propostas que estão na origem e fundamentam vários artigos.

Quem alegava a inconstitucionalidade de que?
Imediatamente após sua promulgação, quatro dos 166 artigos da lei foram questionados na Justiça pelo maior grupo privado oligopolista de comunicação argentino: o Grupo Clarín. Liminares e medidas protelatórias diversas impediram o cumprimento pleno da lei ao longo de mais de quatro anos, até que se chegasse a uma decisão da Suprema Corte argentina.
O Grupo Clarín, alegava a inconstitucionalidade dos artigos 41, 45, do parágrafo 2º do artigo 48 e do artigo 161. São as normas que tratam da transferência de concessões; da multiplicidade de concessões; da impossibilidade de se evocar o “regime de multiplicidade de concessões” previsto na lei como direito adquirido e a obrigatoriedade de adequação à lei, em prazo de um ano a partir da definição dos mecanismos de transição, por parte de grupos já detentores de concessões.
Veja abaixo o texto (traduzido) dos artigos questionados:
>> ARTIGO 41. – Transferência das concessões. As autorizações e concessões de serviços de comunicação audiovisual são intransferíveis. (...)
>> ARTIGO 45. – Multiplicidade de concessões. A fim de garantir os princípios da diversidade, pluralidade e respeito pelo que é local, ficam estabelecidas limitações à concentração de concessões.
Nesse sentido, uma pessoa de existência física ou jurídica poderá ser titular ou ter participação em sociedades titulares de concessões de serviços de radiodifusão, de acordo com os seguintes limites:
1. No âmbito nacional:
a) Uma (1) concessão de serviços de comunicação audiovisual sobre suporte de satélite. A titularidade de uma concessão de serviços de comunicação audiovisual via satélite por assinatura exclui a possibilidade de titularidade de qualquer outro tipo de concessão de serviços de comunicação audiovisual;
b) Até dez (10) concessões de serviços de comunicação audiovisual mais a titularidade do registro de um sinal de conteúdo, quando se trate de serviços de radiodifusão sonora, de radiodifusão televisiva aberta e de radiodifusão televisiva por assinatura com uso de espectro radioelétrico;
c) Até vinte e quatro (24) concessões, sem prejuízo das obrigações decorrentes de cada concessão outorgada, quando se trate de concessões para a exploração de serviços de radiodifusão por assinatura com vínculo físico em diferentes localidades. A autoridade de execução determinará os alcances territoriais e de população das concessões.
A multiplicidade de concessões – em nível nacional e para todos os serviços –, em nenhuma hipótese, poderá implicar na possibilidade de se prestar serviços a mais de trinta e cinco por cento (35%) do total nacional de habitantes ou de assinantes dos serviços referidos neste artigo, conforme o caso.
2. No âmbito local:
a) Até uma (1) concessão de radiodifusão sonora por modulação de amplitude (AM);
b) Uma (1) concessão de radiodifusão sonora por modulação de frequência (FM) ou até duas (2) concessões quando existam mais de oito (8) concessões na área primária do serviço;
c) Até uma (1) concessão de radiodifusão televisiva por assinatura, sempre que o solicitante não seja titular de uma concessão de televisão aberta;
d) Até uma (1) concessão de radiodifusão televisiva aberta sempre que o solicitante não seja titular de uma concessão de televisão por assinatura;
Em nenhuma hipótese, a soma do total das concessões outorgadas na mesma área primária de serviço ou o conjunto delas que se sobreponham de modo majoritário, poderá exceder a quantidade de três (3) concessões.
3. Sinais:
A titularidade de registros de sinais deverá se conformar às seguintes regras:
a) Para os prestadores designados no item 1, subitem “b”, será permitida a titularidade do registro de um (1) sinal de serviços audiovisuais;
b) Os prestadores de serviços de televisão por assinatura não poderão ser titulares de registro de sinais, com exceção de sinal de geração própria.
Quando o titular de um serviço solicite a adjudicação de outra concessão na mesma área ou em uma área adjacente com ampla superposição, ela não poderá ser concedida se o serviço solicitado utilizar uma única frequência disponível na referida zona.
>> ARTIGO 48. – (...)
O regime de multiplicidade de concessões previsto nesta lei não poderá ser invocado como direito adquirido frente às normas gerais que, em matéria de desregulamentação, desmonopolização ou de defesa da concorrência, sejam estabelecidas pela presente lei ou que venham a ser estabelecidas no futuro.
>> ARTIGO 161. – Adequação. Os titulares de concessões dos serviços e registros regulados por esta lei, que até o momento de sua sanção não reúnam ou não cumpram os requisitos previstos por ela; ou as pessoas jurídicas que, no momento de entrada em vigor desta lei sejam titulares de uma quantidade maior de concessões, ou com uma composição societária diferente da permitida, deverão ajustar-se às disposições da presente lei num prazo não maior do que um (1) ano, desde que a autoridade de execução estabeleça os mecanismos de transição. Vencido tal prazo, serão aplicáveis as medidas que correspondam ao descumprimento, em cada caso.
Apenas para efeito da adequação prevista neste artigo, será permitida a transferência de concessões. Será aplicável o disposto pelo último parágrafo do Artigo 41.
A leitura desses artigos evidencia que, ao questioná-los, o Grupo Clarín procurava se excluir do âmbito da lei e manter o seu enorme oligopólio.
Em 29 de outubro de 2013, todavia, a Suprema Corte declarou a constitucionalidade de todos os artigos questionados reconhecendo a legitimidade do Congresso Nacional em legislar sobre o tema e, sobretudo, a garantia da liberdade de expressão e da liberdade da imprensa (ver aqui a íntegra da decisão).

Interditar o debate e falsear a verdade
Reduzir a Lei de Meios e a decisão da Suprema Corte argentina apenas a uma disputa entre o governo de Cristina Kirchner e o Grupo Clarín e/ou “a mais um episódio da ascendente violação da liberdade de imprensa na América Latina” – como afirma o editorial de um jornal brasileiro –, é faltar deliberadamente com a verdade e sonegar informação de interesse público.
Diante da constrangedora omissão do poder público, que se recusa a enfrentar abertamente a questão, o que reiteradamente vem ocorrendo entre nós é a omissão e o falseamento descarados de informações referentes à regulação da mídia – refiram-se elas ao Brasil, à Argentina, à Inglaterra ou a qualquer outro país –, sempre e paradoxalmente em nome da liberdade de expressão e da liberdade da imprensa.
No que se refere à regulação democrática da mídia, o Brasil continua no século passado.


Venício A. de Lima - Jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor deConselhos de Comunicação Social – A interdição de um instrumento da democracia participativa (FNDC, 2013), entre outros livros – 05.11.2013
  

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Alimentando a desumanidade


Condenados à prisão em regime semiaberto, José Genoino e José Dirceu enfrentam tratamento inadequado. (...) O abuso e a falta de respeito não apontam para o progresso. Ajudam a estimular e saciar o ressentimento.


Paulo Moreira Leite
A prisão de 11 condenados do mensalão foi acompanhada de momentos preocupantes. Procurando as raízes do que está acontecendo, é possível chegar a articulações conservadoras que se mobilizavam contra os direitos humanos e garantias individuais – quando a democratização do país sequer completara seu curso. Vamos contar a história pelo começo, porém.
Os prisioneiros foram conduzidos ao presídio da Papuda, em Brasília, sem documentos que formalizem seu direito ao regime semiaberto, como definiu o STF.
A medida já provocou protestos formais dos advogados.
Em condições normais, me diz um dos advogados dos réus, uma atitude desse tipo se resolveria com um habeas-corpus, capaz de levar a libertação imediata dos prisioneiros.
Mas é difícil pensar que vivemos tempos normais quando o presidente do Supremo afirma que “quando as instituições se degradam, o País se degrada”, não é mesmo?
Outro drama envolve a saúde de Genoíno. Ele sofre de cardiopatia grave. Recentemente ficou no limite entre a vida e a morte, da qual escapou, segundo médicos, por uma questão de minutos, a bordo de uma ambulância que o conduziu a um hospital. Com base na avaliação médica, Genoíno já entrou com pedido de aposentadoria na Câmara de Deputados.
Transportado de São Paulo para Brasília, o deputado enfrentou situações complicadas, descreve uma reportagem do UOL:
“Ainda no aeroporto de Congonhas (SP), minutos antes de entrar na aeronave, o ex-presidente do PT foi examinado por um médico da PF que emitiu um laudo informando que ele tinha plenas condições de fazer a viagem.
No entanto, antes de chegar a Belo Horizonte, onde embarcaram mais sete presos, entre eles o empresário Marcos Valério, Genoíno se sentiu mal devido à pressão alta. Quando a aeronave pousou em BH, às 15h17, uma ambulância ficou estacionada na pista e Genoíno foi medicado. Por essa razão, o voo decolou para Brasília com um pequeno atraso.
Procurado para comentar o ocorrido, Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do setorial jurídico do PT e um dos advogados que acompanhou Genoíno desde ontem, afirmou que o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Joaquim Barbosa, "assumiu o risco de conduzir José Genoíno a Brasília, mesmo em virtude do estado clínico que o acomete, o que comprova os excessos na condução do mandado de prisão".
Temos, então, dois absurdos acumulados.
Para levar Genoíno a Brasília, assegurando uma nova sessão de fotos e imagens para a TV, ele foi conduzido a uma viagem em situação de risco e teve de ser medicado.
Qual a necessidade? 
Do ponto de vista do cumprimento correto das penas, nenhuma. A razão é política.
O grave é que o tratamento inadequado, estimula cenas agressivas de  cidadãos contra condenados, como aconteceu no momento em que eram conduzidos em São Paulo ou Belo Horizonte, repetindo situações que já haviam ocorrido nas eleições  de 2010 e 2012, atingindo até mesmo o ministro Ricardo Lewandovski.
Não vamos entrar no mérito das conclusões do julgamento. Nem no conteúdo das denuncias que levaram a produção de penas altíssimas. Já discuti isso várias vezes.
Mas eu acho óbvio que este comportamento agressivo recebe estímulos de cima.
Num recurso de marketing primário, as prisões foram realizadas no dia da proclamação da República.
Mesmo que os condenados fossem culpados de todos os crimes que lhes são atribuídos – hipótese com a qual estou em desacordo absoluto – eles têm direito a um tratamento respeitoso. 
Não é difícil associar essa situação com o ambiente criado no STF pelo presidente/relator Joaquim Barbosa. Seu comportamento agressivo e truculento em relação a colegas é um fato amplamente conhecido.
O problema é que essas reações agressivas não envolvem, apenas, uma questão de comportamento e boas maneiras. Implicam, também, num gestual pouco civilizado, de alto grau de violência – ainda que simbólica – que intimida e até silencia seus interlocutores.
Na última sessão do STF, o ministro Teori Zavaski só precisou questionar uma proposição de Joaquim Barbosa para ser acusado de cometer uma “chicana”, expressão que, conforme  Houaiss, pode ser equivalente a “tramoia”, enquanto “chicaneiro” é definido como “trapaceiro.”
No mesmo dia, numa reação típica de quem sentia-se intimidada depois de expressar uma diferença em relação às opiniões de Barbosa, uma das ministras fez questão de esclarecer  que eram divergências ínfimas. 
Sendo quem é – representante de um dos poderes da República – esse comportamento se transmite, naturalmente, a várias camadas da sociedade.
Outros fatores contribuem na mesma direção. Envolvidos diretamente na produção das denuncias que alimentaram o escândalo, a maioria dos meios de comunicação tornou-se parte interessada no caso.
A dificuldade é que oito anos depois das primeiras notícias, continua apresentando os fatos da ação penal 470 como se toda a verdade se encontrasse nas manchetes de 2005. A realidade é que de lá para cá surgiram fatos novos e descobertas consistentes, que podem colocar em dúvida a versão inicial.
Para um esquema que teria desviado R$ 73,8 milhões do Banco do Brasil, uma auditoria da própria instituição assegura que não houve desvio de dinheiro público.
Contra a visão de que o esquema se baseava em empréstimos fraudados, a Polícia Federal apurou que os empréstimos do Banco Rural para o PT envolviam recursos verdadeiros, que foram usados para pagar despesas do partido e, mais tarde, quitados.
Um levantamento simples nos gastos de publicidade mostra que os próprios meios de comunicação receberam grande parte das verbas que teriam sido desviadas. Grupos como Globo, Folha, Estado, Abril e quem mais você lembrar das empresas de comunicação do país  estão entre os principais destinatários. O departamento comercial dessas empresas jamais negou o recebimento destes recursos, especialmente volumosos.
Foi assim que, enquanto as  denúncias ficaram magras, as penas permaneceram fortes. Sua base deixou de ser a prova, mas a denúncia de caráter moral.
Nesta situação, para tentar entender e avaliar o que se passou no julgamento, a maioria dos brasileiros só pode interpretar a coreografia do tribunal.
Não faz ideia de que juristas de valor reconhecido têm críticas a seus resultados e questionam boa parte das condenações. Não compreende que existem argumentos sólidos, que permitem acreditar na inocência absoluta dos condenados em relação aos crimes pelos quais foram condenados.
A truculência ajuda a criar uma novilíngua, onde o direito é visto como privilégio e toda tentativa de resistir a decisões que podem ser classificadas como  abusivas e arbitrárias não passa de um esforço para garantir uma posição superior na vida social.
Argumentos sensatos, bem fundamentados, são desqualificados e descartados como se não envolvessem um direito fundamental da existência humana, a liberdade.
Essa visão ajuda a formar a convicção popular, assinalada por Hanna Arendt ao estudar a emergência de processos totalitários na Europa dos anos 20 e 30, de que “os atos de violência podiam ser perversos, mas eram sinal de esperteza.” 
Falando sobre o universo mental daquele tempo, ela assinala que “o mal, em nosso tempo, tem uma atração mórbida.”
Não é um problema novo para os brasileiros, na verdade.
Em 1987, professor Antônio Flávio Pierucci (1945-2012) fez uma pesquisa antropológica nos bairros de classe média de São Paulo, que deixou ensinamentos úteis para o Brasil de 2013. 
Num texto chamado As Bases da Nova Direita, o professor assinalava que esta parcela influente de cidadãos já olhava com desconfiança para os primeiros avanços da democratização.
O país sequer havia votado em eleições diretas para presidente, a violência da tortura e das execuções de presos políticos fazia parte da memória muito recente, mas era possível registrar sinais de inconformismo com a nova situação. O motivo era uma política de direitos humanos lançada em São Paulo pelo governador Franco Montoro, um dos patronos do PSDB, num esforço para enfrentar e controlar atos da violência policial contra a população pobre e contra presos comuns.
Pierucci apontava para desvios de comportamento típicos:  um gosto especial por autoridades capazes de tomar medidas violentas e abusivas; a dificuldade de compreender que os direitos à dignidade e o respeito a lei precisam valer para todos – inclusive para pessoas condenadas pela Justiça – sob o risco de, aí sim, ser razoável falar em “degradação das instituições.”
Pesquisando a visão de mundo dessas pessoas, Pierucci anota: “Querer vê-los tendo arrepios, é pronunciar as palavras direitos humanos. Diante de uma pergunta dessas, eles e elas se inflamam, se enfurecem,” escreve.
“É interessante e decepcionante que a associação primeira do sintagma direitos humanos seja com a ideia de ‘mordomia’ para os presos.‘’
Sempre citando palavras recolhidas junto a homens e mulheres daquela época, o professor relata que, na visão dessas pessoas, o país assistia a uma “inversão de valores.”
Elas dizem que, enquanto o bandido é “endeusado, embora seja assassino, seja estuprador, seja o diabo”, e precisa de um “banhozinho de sol, precisa de champanhe francês, precisa de mulher”, o “policial é massacrado. Se ele dá um tiro por acaso, ele é massacrado e o bandido não, é exaltado.
Já em 1987, o professor antecipava: “a nova direita prima por diagnosticar a crise do presente como uma crise primeiramente cultural, uma crise de valores e de maneiras. Crise moral.”
Afirma Pierucci, ainda: “No Brasil metropolitano, há um acúmulo de tensões de toda ordem extremamente propício à arregimentação de cruzadas moralistas.”
É curioso observar porém que, um quarto de século depois, assistimos a um lamentável nivelamento por baixo.
O país e todos os seus governos não apenas fracassaram no esforço necessário para enfrentar  abusos inaceitáveis contra a população pobre, resistindo a toda proposição capaz de democratizar o aparato policial em atividade.
Através da criminalização da atividade política a partir de uma visão moralista,  um dos traços fundamentais da ação penal 470, convive-se agora com abusos contra homens públicos, com biografia respeitável e um histórico de valor.
Mesmo que Dirceu e Genoíno fossem culpados de todos crimes que lhe são atribuídos – o que está longe de demonstrado para além de toda dúvida razoável, como define a tradição do Direito – não há motivo para justificar qualquer  falta de respeito.
Mas é isso o que acontece. Temos comentaristas pródigos na produção de frases marotas de lamento diante das oportunidades perdidas para humilhar, envergonhar e machucar – até fisicamente – os condenados. Mesmo regras, criadas pelo próprio STF, que limitam bastante o uso de algemas no momento da prisão, são criticadas, nem sempre com a sutileza que se poderia imaginar.
Os condenados não se “apresentaram” a polícia, dizem. Se “entregaram,” expressão que procura esconder toda tentativa de preservar a própria dignidade numa hora tão difícil para toda pessoa que tem a força do Estado contra si.
Como bons “chicaneiros,” apenas “querem ganhar tempo” e “protelar”.
Sempre lembrando que se vive num país onde os direitos humanos são uma meta que nunca esteve ao alcance maioria da população, o que se assiste é uma regressão histórica. Num país que não avançou o suficiente, anda-se para trás.
O abuso e a falta de respeito não apontam para o progresso. Ajudam  estimular e saciar o ressentimento.
Explicando o sentido das execuções públicas nas sociedades europeias do século XVII e XVIII, quando pessoas eram torturadas em praça pública antes de perder a vida, a historiadora Lynn Hunt explica na obra A Invenção dos Direitos Humanos que aquele  espetáculo mórbido tinha objetivos políticos claros: “as dores do corpo não pertenciam inteiramente à pessoa condenada individual. Essas dores tinham propósitos mais elevados de redenção e reparação da comunidade.”
Falando do comportamento da população, observadores  mencionados por Hunt observam que havia no rosto da plateia uma “espécie de Alegria como se o espetáculo que tinham presenciado lhes proporcionasse Prazer em vez de Dor.”
Ela também cita o jornal Morning Post que critica a “indecência extremamente desumana” de uma “multidão impiedosa”, que gritava, ria e agredia aqueles  “poucos que manifestavam uma compaixão apropriada pelas desgraças de seus semelhantes.”


Paulo Moreira Leite – Jornalista – 17.11.2013





Ação Penal 470: uma exceção para a história


Não enxergo qualquer efeito pedagógico nesse julgamento e não desejo em hipótese alguma que se repita em outros processos futuros.


Wanderley Guilherme dos Santos
Ao bem afamado Péricles, o ateniense, é atribuída a opinião de que, embora sendo certo que nem todos têm sabedoria para governar, a capacidade de julgar um governo em particular é universal. A observação parece valer com razoável generalidade. Por exemplo: nem por faltar um diploma em medicina está um adoentado impedido de avaliar a competência do profissional que o assiste. Assim, ainda que não portador de títulos ou conhecimentos para ocupar assento no Supremo Tribunal Federal, tenho como direito constitucional e recomendação de um clássico grego inteira liberdade para opinar sobre a Ação Penal 470.
Posso dispensar a cautela de não me indispor com aquele colegiado, pois não tenho licença para advogar oficialmente ou não a causa de quem quer que seja. E contrariando desde logo o juízo de algumas pessoas de bem, não enxergo qualquer efeito pedagógico nesse julgamento e não desejo em hipótese alguma que se repita em outros processos. Falacioso em seu início, enredou os ministros em pencas de distingos argumentativos e notória fabricação de aleijados fundamentos jurídicos. Não menciono escandalosos equívocos de análise com que a vaidade de alguns e a impunidade de todos sacramentaram, pelo silêncio, o falso transformado em verdadeiro por conluio majoritário. Vou ao que me parece essencial.
A premissa maior da denúncia postulava a existência de um plano para a perpetuação no poder arquitetado por três ou quatro importantes personagens do Partido dos Trabalhadores. Até aí nada, pois é aspiração  absolutamente legítima de qualquer partido em uma ordem democrática. Não obstante, é também mais do que conhecido que o realismo político recomenda, antes de tudo, a busca da vitória na próxima eleição. Não existe a possibilidade logicamente legítima de extrair de uma competição singular, exceto por confissão dos envolvidos, a meta de perpetuação no poder de forma ilegal ou criminosa. Pois o procurador-geral da República pressupôs que havia um plano transcendente à próxima eleição, a ser executado mediante meios ilícitos.
A normal aspiração de continuidade foi denunciada como criminosa, denúncia a ser comprovada no decorrer do julgamento. E aí ocorreu essencial subversão na ordem das provas. Ao contrário de cada conjunto parcial de evidências apontar para a solidez da premissa era esta que atribuía a frágeis indícios e bisbilhotices levianas uma contundência e cristalinidade que não possuíam. Todos os ministros engoliram a pílula da premissa e passaram a discutir, às vezes pateticamente, a extensão de seus efeitos. Dizer que a mídia reacionária ajudou a criar a confusão, que, sim, o fez, não isenta nenhum dos ministros da facilidade com que caíram na armadilha arquitetada pelo procurador geral e pelo ministro relator Joaquim Barbosa.
Era patético, repito, o espetáculo em que cada ministro procurava nos textos legais quer a inocência, quer a culpabilidade dos acusados. Em momentos, fatos que eram apresentados por um ministro como tendo certa significação, derivada da premissa, e por isso condenava o acusado pelo crime supostamente cometido, os mesmos fatos eram apresentados como significando o oposto e, todavia, servindo de comprovação da culpabilidade do acusado. Exemplo: a ministra Carmem Lucia entendeu que o fato de a mulher de João Paulo Cunha ter ido descontar ou receber um cheque em gerência bancária no centro de Brasília comprovava a tranqüilidade com que os acusados cumpriam atos criminosos à luz do dia, desafiadoramente. Já a ministra Rosa Weber interpretou o mesmo fato como uma tentativa de esconder uma ação ilegal e, portanto, João Paulo Cunha, seu marido, era culpado. Uma ação perfeitamente legal, note-se, o desconto de um  cheque, sofreu dupla operação plástica: uma transformou-o em deboche à opinião pública, outra o encapotou como um pioneiro ato blackbloc. Dessas interpretações contraditórias, seguiu-se a mesma conclusão condenatória, pela intermediação da premissa maior, segundo a qual qualquer ato dos indiciados estava associado àquele desígnio criminoso.
Estando os acusados condenados conforme tal rito subversivo, o julgamento de outras acusações (sendo o julgamento “fatiado” como bem arquitetou o relator Joaquim Barbosa, enfiando-o aos gritos pela goela de nove dos 11 ministros) se iniciava assim: tendo ficado provado que o réu cometeu tal e tal crime, lá se ia nova acusação como se se tratasse de um reincidente no mundo do crime em momentos diferentes no tempo. E mais, como se a condenação já estabelecida houvesse confirmado a veracidade da premissa maior sobre a existência de um plano político maligno. Pois assim foi até o fim: a premissa caucionando indícios frágeis – e até mesmo a total ausência de indícios como na fala da ministra Rosa Weber explicando que aceitava a culpabilidade de José Dirceu justamente pela inexistência de provas – e os indícios frágeis, convertidos em condenações, emprestando solidez a uma estapafúrdia premissa.
Foi igualmente lamentável o espetáculo da dosimetria. Como calcular penas segundo a extensão e intensidade do agravo, se a existência do agravo pendia de farrapos de indícios? E como calcular se o que sustentava os indícios era uma conjetura dialeticamente tornada plausível por esses farrapos e para a qual não há pena explícita consignada?
Todos os ilícitos comprovados, e vários o foram, se esclarecem e adquirem sentido terreno quando se aceita o crime confesso de criação e utilização de caixa dois.
Esta outra acusação foi desvirtuada pela mídia e pelos ressentidos de derrotas eleitorais, apresentando-a como tentativa de inocentar militantes políticos.
Notoriamente, buscou-se punir de qualquer modo os principais nomes do Partido dos Trabalhadores. A seguir, sucederam-se os contorcionismos para a montagem de um roteiro em que se busca provar o inexistente.

Não há nada a copiar neste julgamento de exceção – a Ação Penal 470.


Wanderley Guilherme dos Santos – Cientista político – 15.11.2013



O vinho amargo que será tomado para
 festejar a prisão de Dirceu



A DIREITA BRASILEIRA, NA FALTA DE VOTOS, PROCURA INCANSAVELMENTE OUTRAS MANEIRAS DE TOMAR POSSE DO ESTADO – E DOS COFRES DO BNDES, E DAS MAMATAS PROPORCIONADAS POR PRESIDENTES SERVIÇAIS ETC ETC. A PALAVRA MÁGICA É, SEMPRE, “CORRUPÇÃO”. (...)
FOI ASSIM COMO O “MAR DE LAMA” INVENTADO CONTRA GETÚLIO, EM 1954. FOI ASSIM COM JANGO, DEZ ANOS DEPOIS, ALVO DO MESMO TIPO DE ACUSAÇÃO SÓRDIDA E MENTIROSA.

Paulo Nogueira
Colunistas da mídia estão festejando com sua habitual hipocrisia estridente a decisão do Supremo de ontem de mandar prender boa parte dos réus.
Dirceu preso era o sonho menos deles do que de seus patrões.
Num momento particularmente abjeto da história da imprensa brasileira, dois colunistas chegaram a apostar um vinho em torno da prisão, ou não, de Dirceu.
Você vai ler na mídia intermináveis elogios aos heróis togados, aspas, comandados pelo já folclórico Joaquim Barbosa.
Mas um olhar mais profundo, e menos viciado, mostra que o Mensalão representou, na verdade, uma derrota para a elite predadora que luta ferozmente para conservar seus privilégios e manter o Brasil como um dos campeões de desigualdade social.
Por que derrota, se a foto de Dirceu na cadeia vai estar nas manchetes?
Porque o que se desejava era muito mais que isso. O Mensalão foi a maneira que o chamado 1% encontrou para repetir o que fizera em 1954 com Getúlio e 1964 com João Goulart.
Numa palavra, retomar o poder por outra via que não a das urnas. A direita brasileira, na falta de votos, procura incansavelmente outras maneiras de tomar posse do Estado – e dos cofres do BNDES, e das mamatas proporcionadas por presidentes serviçais etc etc.
A palavra mágica é, sempre, “corrupção” – embora nada mais corrupto e mais corruptor que a direita brasileira. Sua voz, a Globo, sonegou apenas num caso 1 bilhão de reais numa trapaça em que tratou a compra dos direitos de transmissão de uma Copa como se fosse um investimento no exterior.
Foi assim como o “Mar de Lama” inventado contra Getúlio, em 1954. Foi assim com Jango, dez anos depois, alvo do mesmo tipo de acusação sórdida e mentirosa.
E foi assim agora.
Por que o uso repetido da “corrupção” como forma de dar um golpe? Porque, ao longo da história, funcionou.
O extrato mais reacionário da classe média sempre foi extraordinariamente suscetível a ser engabelado em campanhas em nome do combate – cínico, descarado, oportunista – à corrupção.
A mídia – em 54, 64 e agora – faz o seguinte. Ignora a real corrupção a seu redor. Ao mesmo tempo, manipula e amplia, ou simplesmente inventa, corrupção em seus adversários.
Agora mesmo: no calor da roubalheira de um grupo nascido e crescido nas gestões de Serra e Kassab na prefeitura, o foco vai se desviando para Haddad. Serra é poupado, assim como em outro escândalo monumental, o do metrô de São Paulo.
Voltemos um pouco.
A emenda que permitiu a reeleição de FHC passou porque foi comprado apoio para ela, como é amplamente sabido. Congressistas receberam 200 000 reais em dinheiro da época – multiplique isso por algumas vezes para saber o valor de hoje — para aprová-la.
Mas isso não é notícia. Isso não é corrupção, segundo a lógica da mídia.
O caso do Mensalão emergiu para que terminasse como ocorreu em 1954 e 1964: com a derrubada de quem foi eleito democraticamente sob o verniz da “luta contra a corrupção”.
Mas a meta não foi alcançada – e isso é uma extraordinária vitória para a sociedade brasileira. No conjunto, ela não se deixou enganar mais uma vez.
O sonho de impeachment da direita fracassou. Ruiu também a esperança de que nas urnas, sob a influência do noticiário massacrante, os eleitores votassem nos amigos do 1%: Serra conseguiu perder São Paulo para Haddad, um desconhecido.
O que a voz rouca das ruas disse foi: estão tentando bater minha carteira com esse noticiário.
O brasileiro acordou. Ele sabe que o que a Globo — ou a Veja, ou a Folha – quer é bom para ela, ou elas, como mostram as listas de bilionários brasileiros, dominadas pelas famílias da mídia. Mas não é bom para a sociedade.
E por estar acordado o brasileiro impediu que o Mensalão desse no que o 1% queria – num golpe.
Por isso, o vinho que será tomado pela prisão de Dirceu será extremamente amargo.


Paulo Nogueira – Fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo – 14.11.2013