Nos trabalhos que realizei a partir de
1990, pude constatar que os assuntos que mais dividem a esquerda da direita no
Brasil são os que dizem respeito à ordem. Enquanto a esquerda apoia posições
que implicam contestação do ordenamento estabelecido, a direita tende a
reforçá-lo.
André Singer
Na segunda-feira passada, o Datafolha divulgou pesquisa que mede a
orientação ideológica dos brasileiros. Os resultados, apontando para a
prevalência da direita sobre a esquerda, confirmam, em linhas gerais, a série
que o instituto vem realizando desde 1989. Porém, a metodologia utilizada desta
feita pode levar a visões equívocas sobre a relação entre ideologia e voto.
Diferentemente do que sempre fez, o Datafolha decidiu, neste ano,
atribuir a localização entre direita e esquerda a partir das respostas a um
conjunto de questões adaptado de formulário norte-americano. Embora traga
resultados parciais de interesse, o questionário mistura indagações de alta
relevância política, como, por exemplo, se os sindicatos são importantes para
defender os interesses dos trabalhadores, com outras de baixo impacto no debate
nacional, como a que pergunta se "acreditar em Deus torna as pessoas
melhores".
Nos trabalhos que realizei a partir de 1990, pude constatar que os
assuntos que mais dividem a esquerda da direita no Brasil são os que dizem
respeito à ordem. Enquanto a esquerda apoia posições que implicam contestação
do ordenamento estabelecido, a direita tende a reforçá-lo. Por isso, o item
referente aos sindicatos é importante. Por meio dele pode-se medir como o
indivíduo se coloca perante a organização de base para a defesa de interesses
que, na ordenação capitalista, são subordinados.
Não é casual que, entre os dez temas elencados pelo Datafolha, este seja
o que mais divide o público, com metade considerando negativa a instituição
sindical. Já o problema religioso é o que menos polariza. Quase todos (85%)
acham que "acreditar em Deus torna as pessoas melhores", indicando
que tal opinião vale tanto para os de esquerda quanto os de direita.
Entre 1989 e 2010, o Datafolha pedia ao eleitor que se autoposicionasse
na escala esquerda-direita, apresentando-lhe cartela de sete pontos. Os
resultados chamam a atenção pela enorme estabilidade das preferências em mais
de duas décadas. Com poucas exceções, as variações estão dentro da margem de
erro, isto é, são estatisticamente irrelevantes, e apontam para um campo de
esquerda com cerca de 20%, um de centro idem e um de direita com o dobro das
escolhas (40%). Pouco mais de 20% não sabem se posicionar.
Como o lulismo embaralhou as cartas, propondo um programa de mudança
dentro da ordem, passou a ter votos também da direita, sobretudo a popular, o
que ocorria menos antes de 2006. Em decorrência, não é que a ideologia
interfira pouco no voto, mas, sim, que houve uma importante alteração no plano
dos atores políticos, à qual o eleitorado respondeu de maneira coerente com as
suas próprias inclinações ideológicas.
André Singer – Cientista político e professor da USP, onde se formou em
ciências sociais e jornalismo. Foi porta-voz e secretário de Imprensa da
Presidência no governo Lula – 19.10.2013
IN Folha de São Paulo – http://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/2013/10/1358967-ideologia-e-voto.shtml
A ideologia dos brasileiros,
segundo a Folha
É evidente que os resultados são
polêmicos e urge que as universidades intervenham nesse debate, oferecendo
parâmetros mais consistentes do que os usados pelo Datafolha. O instituto
admite que está usando o paradigma norte-americano, do Instituto Pew, o que é,
obviamente, questionável.
Miguel do Rosário
“No Brasil, há uma
quantidade bem maior de eleitores identificados com valores de direita do que
de esquerda. O primeiro grupo reúne 49% da população, enquanto os esquerdistas
são 30%.”
Assim tem início reportagem da
Folha publicada há alguns dias, comentado o resultado de uma pesquisa do
Datafolha (íntegra aqui) sobre o perfil
ideológico dos brasileiros. Puro wishful
thinking, o que em bom português significa: auto-enganação, ou tomar
seus próprios desejos por realidade.
É evidente que os
resultados são polêmicos e urge que as universidades intervenham nesse debate,
oferecendo parâmetros mais consistentes do que os usados pelo Datafolha. O
instituto admite que está usando o paradigma norte-americano, do Instituto Pew,
o que é, obviamente, questionável.
No caso do Brasil, os
números do Datafolha apresentam inúmeras contradições.
Os eleitores de
esquerda, em sua maioria (56%), são eleitores de Dilma, segundo o instituto. O
mesmo Datafolha, em outra pesquisa divulgada
semana passada, informa que é na esquerda que Dilma obtém os melhores índices
de aprovação (47% de Ótimo/Bom).
Ainda segundo o mesmo
Datafolha, o PT é partido, de longe, preferido pelos brasileiros que admitem
alguma preferência partidária: 18% dos entrevistados preferem o PT, contra 6%
PSDB, e 0% DEM.
Me parece claro que os
parâmetros usados para definir o “direitismo” dos brasileiros são um tanto
artificiais. O artificialismo ganha ares de farsa quando aplicados
indistintamente a diferentes classes sociais e a pessoas com níveis de
instrução muito distintos.
As questões oferecidas
na pesquisa foram as seguintes:
A distorção é gritante,
para dar só um exemplo, na pergunta: “Acreditar em Deus torna as pessoas
melhores”. Segundo o parâmetro do Datafolha, quem responde sim é de direita,
quem responde não, é de esquerda. Isso não tem sentido. Eu mesmo, que me
considero de esquerda, poderia responder sim a esta pergunta, após uma tarde
relendo Espinoza, para quem Deus é um princípio filosófico fundamental, ligado
à própria vontade humana.
Revendo os detalhes da
pesquisa, na verdade, eu chegaria a conclusão oposta: a grande maioria dos
brasileiros é de esquerda. Veja essa pergunta:
68% dos entrevistados
apoiam a vinda de trabalhadores pobres de outros países e Estados, contra
apenas 25% que acham isso um problema. Isso é uma posição de esquerda.
Além disso, o
questionário oferece respostas binárias que, além de não alcançar a complexidade
dos temas, sequer estabelecem uma polarização coerente. Por exemplo, a pergunta
sobre sindicatos:
47% de apoio aos
sindicatos é um índice fenomenal. Quanto aos 48% que acham que sindicatos
“servem mais para fazer política”, temos uma confusão semântica na própria
pergunta. Por acaso, “fazer política” é negativo? Considerando que o sindicato
é o único meio pelo qual um trabalhador tem chances de conquistar uma posição
política, não tem sentido considerar “fazer política” uma coisa negativa.
Para mim, o melhor
critério para se identificar a preferência do eleitor é o voto. Primeiro porque
é universal. Não são 2.000 pessoas entrevistadas, mas 150 milhões de eleitores.
Segundo porque não implica em abstrações filosóficas ou morais altamente
complexas. Nesse sentido, a polarização nas últimas eleições tem sido saudável
e cristalina como água: a maioria dos brasileiros votou na esquerda.
Miguel do Rosário – 19.10.2013
Ser de esquerda na era
neoliberal
SER DE ESQUERDA HOJE É LUTAR CONTRA A MODALIDADE ASSUMIDA PELO CAPITALISMO NO PERÍODO HISTÓRICO CONTEMPORÂNEO, É SER ANTINEOLIBERAL, EM TODAS AS SUAS MODALIDADE.
Emir Sader
Um instituto que fez a pesquisa e os editorialistas da velha mídia se enroscaram nos seus resultados, sem entender o seu significado. Afinal, se a maioria dos brasileiros é de direita – parte que vota na Dilma e parte que vota na oposição - porque a direita tem perdido sempre e continuará a perder as eleições? Por que os políticos mais populares do pais são Lula e Dilma e os mais impopulares FHC e Serra?
Uma primeira interpretação, apressada, é que se trataria de um governo de direita, daí receber o voto de setores que se dizem de direita. O país viveria um êxtase direitista, em que governo e oposição não se diferenciariam, ambos de direita. Tese tão a gosto da ultraesquerda e de setores da direita, ambos adeptos da tese de que o PT apenas repete o que os tucanos fizeram.
Tese absurda, porque já ninguém pode negar que o Brasil mudou, mudou muito e mudou para melhor depois dos governos tucanos e nos governos petistas. Como ninguém nega o destino contraposto que o povo reservou para o Lula e para o FHC, como consequência das mudanças entre um governo e outro.
Para complementar, a direita tradicional – midiática, partidária, empresarial – sempre esteve fortemente alinhada com o governo tucano e contra os governos petistas. Enquanto este sempre teve o apoio dos setores populares, de esquerda, de dentro e de fora do país – neste espectro, de Cuba a Uruguai, da Venezuela ao Equador, da Argentina à Bolívia. E, como corolário, a oposição dos EUA e das forças neoliberais no continente e no mundo. Estes buscando, inocuamente, projetar o México – o grande modelo neoliberal remanescente – como referencia alternativa à liderança brasileira no continente.
Afora o bizarro argumento de que todos estão equivocados e que o Brasil de hoje é igual ao dos anos 1990, de que os lideres esquerdistas não conhecem o país ou outro desse calibre, uma das características da polarização contemporânea se dá em torno do traje que veste o capitalismo na época histórica atual.
O anti-capitalismo, que sempre caracterizou a esquerda, ao longo o tempo, foi assumindo formas distintas, conforme o próprio capitalismo foi se transformando, de um modelo a outro. A esquerda foi anti-fascista nos anos 1920 e 1930, foi adepta do Estado de bem-estar social e do nacionalismo nas décadas do segundo pos-guerra, foi democrática nos países de ditadura militar. Assim como a direita foi mudando sua roupagem, na mesma medida: foi fascista, foi liberal, foi adepta da Doutrina de Segurança Nacional, conforme as configurações históricas que teve que enfrentar.
Na era neoliberal, os eixos centrais dos debates e das polarizações se alteraram significativamente. A direita impôs seu modelo liberal renascido, marcado pela centralidade do mercado, do livre comercio, da precarização das relações de trabalho, do capital financeiro como hegemônico, do consumidor. Ao mesmo tempo da desqualificação das funções reguladores do Estado, das politicas redistributivas, da politica, dos partidos, dos direitos da cidadania.
É nesse marco que a América Latina passou, de vítima privilegiada do neoliberalismo, à única região do mundo com governos e políticas posneoliberais, com governos que se propõem concretamente a superação do neoliberalismo. A prioridade das políticas sociais ao invés da ênfase central nos ajustes fiscais. O resgate do Estado como indutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais no lugar do Estado mínimo e da centralidade do mercado. O privilégio dos projetos de integração regional e do intercâmbio Sul-Sul e não dos Tratados de Livre Comércio com os Estados Unidos. Essas contraposição define os campos da esquerda e da direita realmente existentes na era neoliberal.
Os brasileiros tem se pronunciado, reiteradamente, a favor das prioridades de distribuição de renda, do papel ativo do Estado, das políticas de integração regional e intercâmbio Sul-Sul. Constituiu-se uma nova maioria no país, progressista, que preferiu Lula ao Serra ao Alckmin, Dilma ao Serra, e se encaminha para preferir de novo Dilma ao candidato que se apresente pelas forças conservadoras.
Toda resposta de pesquisa depende da forma como foi formulada a pergunta. E os institutos de pesquisa tem sido useiros e vezeiros na arte de manipulação da opinião pública. Basta recordar que o diretor do mais conhecido deles, jurou que o Lula não elegeria seu sucessor, que o campo estava livre para o retorno tucano com o Serra, e demorou para se autocriticar, diante da realidade que o desmentia.
Na era neoliberal – modelo imposto sobre um brutal retrocesso na correlação de forças mundial e nacional – a linha divisória vem desse modelo, dividindo as forças fundamentais entre neoliberais e antineoliberais – conforme resistam a governos neoliberais – e posneoliberais, quando se empenham na sua superação.
Em vários períodos históricos houve uma esquerda moderada e uma esquerda radical. A social democracia passou a representar a primeira, os comunistas e forças da extrema esquerda, a segunda. No período histórico atual há, na América Latina, governos posneoiberais moderados – como os do Brasil, da Argentina, do Uruguai – e radicais – como os da Venezuela, da Bolívia, do Equador, sem mencionar o de Cuba. Os primeiros romperam com eixos fundamentais do neoliberalismo – com os enunciados: centralidade do mercado, Estado mínimo, privilégio do ajuste fiscal e dos TLCs com os EUA – avançam na sua superação – centralidade das políticas sociais, do papel do Estado, dos processos de integração regional. Os segundos, além de antineoliberais, se propõem a ser anticapitalistas, e deram passos nessa direção.
Ser de esquerda hoje é lutar contra a modalidade assumida pelo capitalismo no período histórico contemporâneo, é ser antineoliberal, em qualquer das suas modalidades. A moderação ou a radicalidade estão nas formas de articulação, ou não, entre o antineoliberalismo e o anticapitalismo. Seria demasiado pedir que pesquisas e editoriais imersos no universo neoliberal como seu habitat natural, sem a perspectiva histórica que permite entender o neoliberalismo e o capitalismo como fenômenos históricos precisos e a história como produto de correlações de forças cambiantes , pudessem captar o sentido de ser de esquerda e de direita hoje. São vítimas de clichês que eles mesmos criaram e que os aprisionam.
Enquanto isso, a América Latina, sua direita e suas esquerdas, se enfrentam nas condições concretas e especificas do mundo contemporâneo.
Emir Sader – Cientista Político – 22.10.2013
IN Blog do Emir – http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/Ser-de-esquerda-na-era-neoliberal/2/29279