A recente decisão do STF constituiu uma
importante ruptura com os valores que estruturam a arquitetura e o
funcionamento das instituições de direito no Brasil − mais especificamente o
corporativismo, o patrimonialismo, a iniquidade e a falta de competição entre
agências de aplicação da lei.
Oscar Vilhena Vieira
Nas últimas duas décadas temos vivido um forte processo de
transformação. Impulsionada pela democratização, pela estabilização econômica e
por uma Constituição que assegurou, além da estabilidade política, algumas
políticas de distribuição nas áreas de educação, saúde e assistência, a
sociedade vem se tornando mais inclusiva, moderna e complexa. Se o Estado
funcionou desde nossa independência, sobretudo, como um mecanismo de manutenção
de privilégios e garantidor de uma forte hierarquização da sociedade, nestas
últimas duas décadas estamos caminhando para a construção de uma nação, no
sentido de que os diversos setores da sociedade venham a ser beneficiários das
conquistas coletivamente construídas. O entusiasmo em relação ao nosso mais
recente ciclo de desenvolvimento não tem sido capaz, no entanto, de superar o
fato de que ainda somos um país extremamente injusto. Não me refiro aqui apenas
às injustiças sociais, profundas e persistentes, mas principalmente àquelas
decorrentes da forma arbitrária e ineficiente com que a lei é aplicada.
Este novo ciclo não tem sido capaz de alterar uma das características
mais entrincheiradas na estrutura social e política da sociedade brasileira,
que é seu baixíssimo compromisso com o estado de direito. A lei no Brasil tem
tido uma enorme dificuldade de se converter em uma razão prevalente na
determinação das condutas de indivíduos ou agentes públicos. A estrutura de
profunda desigualdade que formou a sociedade brasileira ao longo da história
teve e ainda tem uma repercussão muito forte no modo como o direito é concebido
e aplicado. Nesse sentido, vivemos numa sociedade em que o direito tem um
distinto valor em função da posição que cada um ocupa.
Esse, aliás, não é um problema apenas brasileiro. Em grande parte da
América Latina, a cultura do incumplimientoe o arbítrio estatal parecem
constituir um forte obstáculo ao florescimento de parâmetros mais pacíficos,
igualitários e previsíveis de sociabilidade. Para Octavio Paz, o México viveu
durante todo o século XX sob uma “mentira constitucional”; da mesma forma, o
grande jurista argentino Carlos Nino caracterizou sua nação como um “país à
margem da lei”. Aqui temos o “jeitinho” ou o “você sabe com quem está
falando?”, que sintetizam a ideia básica de que a lei não vale para todos. Se
essa distorção é fruto de um problema estrutural, também é uma consequência da
fraqueza das instituições de aplicação da lei, que não conseguem impor a
generalidade do direito a um mundo tão estratificado.
O caso brasileiro é mais paradoxal, no entanto, pelo descompasso entre
nossa confiança, quase eufórica, na economia e no progresso e nossa forte
desconfiança nas instituições, nas leis e nos outros cidadãos. Conforme a série
histórica elaborada pelo Latinobarómetro, podemos verificar que brasileiros e
chilenos são os que mais confiança têm na condução econômica de seu país. Mais
significativo ainda é o fato de que nos encontramos em primeiro lugar no
continente quanto à expectativa de que nossos filhos terão um futuro melhor, ao
menos do ponto de vista econômico. Esse otimismo se contrapõe à nossa
desconfiança no direito e suas instituições. Vale a pena ressaltar que somos
dos que mais desconfiam de que a lei seja aplicada de forma igual para todos.
No mesmo sentido, apenas 10% dos brasileiros acreditam que haja igual acesso à
justiça. E, quando lá chegamos, a frustração é grande. De acordo com a mais
recente edição do Índice de Confiança na Justiça (ICJ-Brasil), produzido pelo
Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada da Direito GV, 67% dos entrevistados
afirmam que o Judiciário brasileiro é pouco ou nada honesto; 90% da população
reclama da lentidão do sistema, e 86% entende que seus custos são muito
elevados. Por fim, também é preocupante o fato de 55% dos entrevistados descrerem
na capacidade do Judiciário de resolver os problemas que lhe são submetidos.
Se é verdade que esses dados mensuram apenas a percepção da população e,
portanto, não devem ser tomados como um retrato fiel da justiça brasileira, os
exemplos cotidianos de falta de transparência, corporativismo, ineficácia na
solução de controvérsias complexas e mesmo de arbítrio e falta de honestidade
têm se mostrado mais fortes para a construção da imagem da justiça no Brasil do
que o trabalho honesto e árduo da grande maioria de nossos magistrados. O fato
é que vivemos não apenas um problema de falta de confiança no direito, enquanto
mecanismo de ordenação social e solução pacífica de conflitos, mas também uma
profunda crise de legitimidade do aparelho de justiça, que tem por
responsabilidade aplicar o direito de forma efetiva e justa.
Esses são problemas de enorme magnitude para uma sociedade que busca se
transformar, seja em direção a uma maior afluência, seja no sentido de se
projetar como uma comunidade mais justa. A desconfiança no direito e em suas
instituições aumenta os comportamentos oportunistas dos atores sociais, bem
como cria enormes custos para o desenvolvimento. Uma das funções mais
importantes do direito é a estabilização de expectativas futuras. Planejamos
nossas condutas no cotidiano, realizamos investimentos, projetamos políticas
públicas de mais longo prazo na expectativa de que não seremos arbitrariamente
frustrados. Da mesma forma, um comportamento cidadão de respeito ao outro e à
coisa pública está diretamente associado à expectativa de que o Estado e os
demais cidadãos cumprirão suas obrigações em relação aos demais. Não estou aqui
falando apenas de grandes expectativas econômicas, mas de ações simples do
cotidiano: ir caminhando ao cinema sem o temor de ser roubado ou violentamente
abordado pela polícia; exercitar a liberdade de expressão sem correr o risco de
ter o direito de crítica duramente repreendido; adquirir uma medicação partindo
do pressuposto de que ela foi devidamente avaliada etc. A incerteza provocada
pela impunidade, pela não realização de obrigações constitucionalmente impostas
aos agentes públicos e pelo descumprimento de obrigações contratuais gera um
efeito perverso, que é a generalização de comportamentos arbitrários e oportunistas,
aumentando os custos para a realização de investimentos públicos e privados que
poderiam alavancar nosso processo de desenvolvimento, além de aumentar o
sofrimento cotidiano de todos nós.
Nesse contexto de transformação social visível e avanços econômicos
também significativos, como lidar com as inúmeras fragilidades do nosso estado
de direito? É evidente que múltiplos são os caminhos: pressão democrática,
demandas do mercado ou mobilização da sociedade civil. As mudanças são fruto de
ações não necessariamente planejadas, mas que contribuem para a adaptação e
renovação do direito e suas instituições. Há, porém, a possibilidade de
intencionalmente (re)desenhar as instituições de maneira que sejam criados
incentivos mais consentâneos com o respeito ao direito. Como dizia James
Madison, um dos mais destacados arquitetos do constitucionalismo moderno, se os
homens fossem anjos, desnecessários seriam os governos; se fôssemos governados
por anjos, também desnecessários seriam os controles. Mas como não somos anjos
nem governados por estes, é preciso dispor as instituições de forma que a
ambição humana sirva para controlar a ambição humana. Em sentido contrário à
lição de Madison, nosso Judiciário jamais sofreu controles sociais ou
republicanos. Isso não significa que ele não tenha sido ao longo de nossa
história objeto de interferência – porém aqui indevida – por parte do poder
político ou mesmo de forças de exceção. Em face da instituição do concurso
público e de inúmeras garantias institucionais e individuais que foram sendo
construídas ao longo de décadas e fortemente entrincheiradas na Constituição de
1988, o Judiciário brasileiro desenvolveu uma independência sem precedentes na
América Latina, o que é extremamente positivo. Poucos são os sistemas de
justiça ao redor do mundo que gozam de tamanha autonomia. No entanto, o
inadequado uso de prerrogativas levou esse mesmo poder a uma posição de
insustentável insularidade social. A ausência de mecanismos de
responsabilidade, transparência e prestação de contas permitiu que garantias
legítimas servissem de escudo não apenas contra indevidas investidas do Poder
Executivo, mas também do legítimo interesse da sociedade de saber como e por
quais critérios são tomadas as decisões pela magistratura − de que forma são
alocados seus recursos, por exemplo.
A criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela Emenda
Constitucional 45, de 2004, foi, nesse sentido, uma reação ousada de nosso
corpo político, com apoio de inúmeros setores da própria magistratura, ao
processo de erosão da autoridade institucional do Poder Judiciário. Dada a
relevância deste, como expressão última da aplicação do direito, era e continua
sendo indispensável que ele se coloque à altura do momento histórico que
vivemos. Sem que a lei cumpra sua função de estabilização de expectativas (de
justiça, direitos e interesses legítimos), a própria democracia se fragiliza.
Afinal, de que adianta engajar-se no processo de tomada de decisão coletiva se
essas decisões convertidas em leis e diretrizes jurídicas não serão
posteriormente levadas a sério, seja pelas autoridades ou, o que é mais grave,
pela própria instituição que tem como responsabilidade primária aplicar a lei.
O que se buscou com a reforma do Judiciário, que teve início no governo
FHC e se completou pela determinação do governo Lula, foi a desestabilização de
uma cultura e de uma prática institucional em que a realização do interesse da
sociedade e a própria integridade do direito cedem frequentemente espaço para
interesses corporativos. A criação de uma instituição como o CNJ tem um papel
fundamental nessa estratégia. Diante de sua composição, atribuições e forma de
acesso, imaginou-se que ele seria capaz de dar um curto-circuito no padrão
corporativista e patrimonialista de nossa magistratura e, dessa maneira,
ampliar sua disposição para atender com equidade e eficiência às demandas da
sociedade. Ao se estabelecer que o CNJ teria composição mista, ainda que majoritariamente
composto de magistrados, reduziu-se a possibilidade de que o órgão fosse
facilmente capturado pelos interesses da corporação. Com atribuições
concorrentes às corregedorias dos demais tribunais, criou-se uma forma bastante
inovadora de competição entre agências de apuração, pela qual a omissão de uma
corregedoria não mais colocaria fim à possibilidade de aferição de fatos e
responsabilização dos autores. Por último, ao se franquear o acesso ao Conselho
a todos os cidadãos, abriu-se um novo canal de comunicação e prestação de
contas entre o Judiciário e a cidadania. A meu ver, essas três características
da inovação institucional têm sido responsáveis por seu desempenho positivo.
A reação da corporação, embora irracional a longo prazo, pois o que está
em jogo é a própria legitimidade do Poder Judiciário, era previsível. A
Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) recorreu imediatamente (2005) ao
Supremo Tribunal Federal (STF), questionando em sentido amplo a própria criação
do CNJ, por entender que a emenda afrontava o princípio da separação de
poderes. A corte, por ampla maioria de seus ministros, não atendeu às
reivindicações da magistratura e deu sinal verde para o CNJ começar a atuar.
A contundência com que o CNJ, em especial sua corregedoria, passou a
desempenhar suas atribuições constitucionais surpreendeu mesmo os mais
otimistas dos reformadores. Num país acostumado a leis para inglês ver e a um
padrão de grandes conciliações intraelite, como dizia Michel Debrum, a atuação
do Conselho passou a constituir certamente um ponto de inflexão na trajetória
de nosso estado de direito. Ao expor esquemas de corrupção, de corporativismo
explícito e de negligência com os direitos dos cidadãos, ele estabeleceu uma
tensão com muitas corregedorias letárgicas, sendo por isso capaz de
desestabilizar o padrão tradicional de comportamento de nossas instituições de
aplicação da lei. Essa desestabilização também tem sido fortemente impulsionada
pela mídia, que se viu diante de uma nova esfera de poder a ser devassada. E
como não se cansa de reiterar o ministro Celso de Mello, num regime republicano
não há esfera de poder que deva ficar imune à fiscalização.
Na medida em que a atuação do CNJ foi colocando em xeque práticas
institucionais e condutas individuais incompatíveis com a Constituição, uma
nova reação foi se formando nos setores mais conservadores da magistratura,
redundando na ADI 4.638, em que não mais se questionava a própria existência do
CNJ, mas a validade de algumas de suas atribuições, em especial sua competência
originária para realizar apurações, independentemente da atuação das
corregedorias dos tribunais. Para a AMB o CNJ só deveria atuar após as
corregedorias terem esgotado seus procedimentos ou, ainda, se estas houvessem
sido completamente omissas no exercício de suas atribuições. Pleiteava, assim,
uma competência subsidiária. Caso o Supremo houvesse acolhido o pleito da AMB,
o objetivo da Emenda 45 de romper o círculo de proteção corporativa teria se
esvaziado. A grande inteligência da emenda foi estabelecer um órgão que não
sugou as competências das corregedorias dos tribunais, tirando-lhes a
responsabilidade primária por realizar a atividade correcional, mas sim criando
um forte incentivo para que elas cumpram suas obrigações de forma exemplar, sob
o risco de passarem pelo constrangimento de ver os magistrados sob sua
jurisdição sujeitos a outra esfera de apuração. Essa competição entre
instituições tem se demonstrado extremamente importante para retirar da
sonolência as corregedorias locais. As que ousaram desafiar o CNJ estão hoje
tendo de responder não apenas àquela instância oficial, mas a toda a sociedade.
O fato é que o curto-circuito está sendo dado, e as práticas incompatíveis com
o padrão de democracia exigido pela Constituição e pela sociedade estão sendo
desestabilizadas.
O CNJ não é a cura para todos os males do Judiciário; é importante que
se diga também que mesmo ele deve ser objeto de controle, e para isso serve o
STF. O que vale para os demais tribunais também deve valer para o CNJ. Essa
nova experiência institucional, no entanto, está abrindo uma enorme
oportunidade para que o Judiciário possa se modernizar, tornar-se mais
transparente, alocar recursos de maneira mais eficiente, planejar sua política
de crescimento de forma racional, estabelecer critérios efetivamente
meritocráticos para promoção, estabelecer demandas de natureza funcional
baseadas em dados claros e, consequentemente, estar mais bem preparado para
prestar à sociedade aquilo que ela demanda e precisa, que é justiça.
Oscar Vilhena Vieira – Professor de Direito Constitucional e diretor da Direito GV. Advogado
formado epla PUC-SP, é mestre em Direito pela Universidade de Columbia, Nova
York, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e realizou
estudos de pós-doutoramento na Universidade de Oxford – Abril 2012