sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Caso da ‘gripe A’ aponta para a saúde como questão de direito internacional


“É necessário que as instituições públicas formem especialistas independentes”, afirma Deisy Ventura. “É natural que a indústria privada financie pesquisas que são de seu interesse, numa lógica de mercado. Cabe ao Estado obrigá-la a financiar a pesquisa sobre as doenças que são negligenciadas”.

USP Online
O século 21 vê renascer entre os chefes de Estados e na Organização Mundial da Saúde (OMS) o temor sobre a propagação de doenças infecto-contagiosas. Um cenário conturbado, que inclui até o possível uso de armas químicas e biológicas, coloca a saúde como questão de segurança pública. Lançado pela pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, Deisy Ventura, o livro Direito e Saúde Global – O caso de pandemia da gripe A (H1N1) revisita, sob esta perspectiva, a última pandemia que afetou diversas populações no mundo.

Interno e externo
A obra corresponde à tese de livre-docência da professora Deisy Ventura, que há anos vem se dedicando ao estudo das relações entre o direito internacional e os direitos nacionais. A motivação para escrever o livro, de acordo com a docente, veio de seu interesse pessoal na permeabilidade entre o externo e o interno. “Nesse livro, eu estudo o Regulamento Sanitário Internacional, cuja nova versão data de 2005, e que foi aplicado pela primeira vez durante a pandemia de gripe A ocorrida entre 2009 e 2010”, situa Deisy.
O livro analisa o processo de tomada de decisões pela OMS que resultou na declaração da primeira emergência de saúde pública de importância internacional. A classificação de emergência sanitária não diz respeito exclusivamente às doenças, mas a qualquer agravo à saúde que corresponda às descrições do regulamento de 2005. Para compor o estudo, Deisy realizou durante um semestre pesquisas no Instituto de Altos Estudos Internacionais e do Desenvolvimento, em Genebra, Suíça – também sede da OMS.

Relações estabelecidas com a OMS
Fundada em 1948, a OMS é financiada pelos Estados-membros, mas igualmente por  doadores privados. Atualmente, as contribuições dos Estados constituem menos de 20% das  receitas fixas da organização. Os 80% restantes vêm de contribuições voluntárias de alguns  Estados que desejam financiar iniciativas específicas, como os programas de combate às  doenças que eles consideram mais importantes, e também de fundações filantrópicas e do  setor privado – inclusive laboratórios farmacêuticos. No biênio 2010-2011, por exemplo,  a Fundação Bill e Melinda Gates foi a maior doadora voluntária de fundos à OMS (cerca de  446 milhões de dólares), ultrapassando até mesmo as contribuições voluntárias dos Estados  Unidos (aproximadamente 438 milhões de dólares).
Na sua conclusão sobre o estudo da Gripe A (H1N1), Deisy concluiu que a OMS cedeu às pressões das indústria farmacêutica, embora o tenha feito de modo muito sofisticado, já que não se valeu da corrupção ou da influência explícita, mas sim da influência dos especialistas da OMS que possuem vínculos com o setor privado. Contudo, “se por um lado fica evidente a influência que o setor privado exerce dentro da OMS, por outro, a Organização tem uma importância fundamental na comunicação e na disseminação de conhecimento científico em saúde pelo mundo”, comenta Deisy.
Se por um lado fica evidente a influência que o setor privado exerce dentro da OMS, por outro, a Organização tem uma importância fundamental na disseminação de conhecimento em saúde pelo mundo.
Sem intenções de desgastar a imagem da Organização, a professora ressalta o quanto o Regulamento Sanitário Internacional é crucial para a governança da saúde pública, uma vez que é um instrumento dos Estados. “A minha preocupação é que quando tivermos, de fato, um evento gravíssimo, como uma pandemia com alto grau de contágio e de mortalidade, a Organização se encontre desgastada por esse episódio”, revela.
Uma das soluções apontadas pela autora reside na responsabilidade do Estado em promover a formação de especialistas, além da pesquisa em desenvolvimento na área da saúde e de medicamentos. “É necessário que as instituições públicas formem especialistas independentes”, afirma Deisy. “É natural que a indústria privada financie pesquisas que são de seu interesse, numa lógica de mercado. Cabe ao Estado obrigá-la a financiar a pesquisa sobre as doenças que são negligenciadas”, completa.

Como classificar o que é doença?
 Como pano de fundo do debate sobre pandemias, aparecem questões como a  mercantilização da saúde e a normalização dos seres humanos. Classificar o que é doença  interfere não somente no âmbito sanitário, mas também na realidade e nas ideologias  políticas e econômicas. Para Deisy, definir o que é doença é um processo social, não um  processo técnico. A sociedade se vale desse instrumento que de algum modo identifica o que  é “ser normal e ser saudável”, censurando aqueles que não estão dentro desses limites  comportamentais pré-estabelecidos. “É a expressão da mercantilização da vida, da  transformação da saúde em mercado e a necessidade de vender remédios e padronizar o  seres humanos”, argumenta. Isso acaba por gerar estigmas sociais que causam grande  sofrimento às pessoas que possuem essas características.
É natural que a indústria privada financie pesquisas que são de seu interesse, numa lógica de mercado. Cabe ao Estado obrigá-la a financiar a pesquisa sobre as doenças que são negligenciadas.
No entanto, as verdadeiras pandemias exigem dos Estados um grande investimento em medicamentos, vacinas, comunicação e também de regulamentação. Deisy chama a atenção para os problemas sociais que uma contaminação em massa pode causar. Isso porque, no momento de uma pandemia, cresce o medo e – infelizmente – aquelas pessoas que já são vítimas da desigualdade social terão essa desigualdade potencializada durante a crise sanitária. “A crise sanitária não será igual para todos, porque, mesmo que o vírus mate tanto ricos e pobres, o modo de relacionar-se com a doença é totalmente diferente para as pessoas que possuem acesso ao tratamento e a boas condições de moradia, alimentação, etc. ”, alerta Deisy.
No momento de uma pandemia, cresce o medo e aquelas pessoas que já são vítimas da desigualdade social terão essa desigualdade potencializada.
Por fim, ela destaca a importância de regulamentar as crises sanitárias, pois a legislação brasileira ainda é muito deficiente no que se refere a aspectos importantes, tais como as restrições de direitos fundamentais: tratamentos obrigatórios, medidas de isolamento, restrições à liberdade de reunião, fechamento de fronteiras, entre outros. Nada pior do que regulamentar uma crise durante a própria crise, em meio ao pânico e às diversas pressões. “Não podemos esperar uma nova pandemia para aperfeiçoar a lei brasileira”, conclui a autora.

USP Online – 17.11.2013
Direito e Saúde Global – O caso de pandemia da gripe A (H1N1) (2013, Outras Expressões/Expressão Popular) foi lançado no último dia 26 de agosto no IRI, e está à venda pelo site da editora .




A era das pandemias e a desigualdade

Tratar essa pandemia gripal como espetáculo pontual é um equívoco. As pandemias vieram para ficar e suscitam dois debates estruturais.

Sueli Dallari e Deisy Ventura (artigo de 2009, durante a crise)
O mundo está diante das primeiras "pestes globalizadas", cuja velocidade de contágio, sem precedentes, é inversamente proporcional à lentidão da política e do direito. 
A aceleração do trânsito de pessoas e de mercadorias reduz os intervalos entre os fenômenos patológicos de grande extensão em número de casos graves e de países atingidos, ditos pandemias. Assim, tratar a pandemia gripal em curso como um espetáculo pontual é um grande equívoco. 
As pandemias vieram para ficar e suscitam ao menos dois debates estruturais: as disfunções dos sistemas de saúde pública dos países em desenvolvimento e a inoperância da Organização Mundial da Saúde (OMS). 
Na ausência de quebra de patentes de medicamentos e de vacinas, perecerá um grande número de doentes que, se tratados, poderiam ser salvos. O mundo desenvolvido terá então, deliberadamente, deixado morrer milhões de pobres. 
Sob fortes pressões políticas, a OMS tem divulgado com entusiasmo doações de tratamentos e descontos aos países menos avançados na compra do oseltamivir, o famoso Tamiflu, fabricado pela Roche, até então o único tratamento eficaz contra o vírus A (H1N1). Mas essa pretensa generosidade é absolutamente insignificante diante da possível contaminação de um terço da humanidade. 
A apologia do Tamiflu tem levado milhares de pessoas à compra do medicamento pela internet ou a cruzar fronteiras para obtê-lo em países vizinhos. O uso indiscriminado do medicamento deve ser combatido com vigor, tanto pela probabilidade de consumo de produto falso quanto por fazer com que rapidamente o vírus se torne resistente também ao oseltamivir, o que ocorreu em casos recentes. Ainda mais grave: as constantes mutações do vírus tornam o mundo refém da indústria de medicamentos.
A OMS deve operar para que paulatinamente os Estados assumam o leme, com todos os custos que isso implica, do investimento em pesquisa ao serviço de saúde pública. 
O direito não pode ser desperdiçado: o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, negociado no âmbito da Organização Mundial do Comércio, criou a licença compulsória, dita quebra de patente, para, entre outros casos, os de urgência. 
Ora, pode ocorrer algo mais urgente do que uma pandemia? 
No entanto, quebrar a patente do Tamiflu, embora imprescindível, é apenas uma ponta do iceberg. É preciso que os Estados desenvolvam as condições para produzi-lo. 
O mesmo ocorre em relação à insuficiência de kits para diagnóstico: com a progressão da pandemia, é provável que não sejamos capazes sequer de contar os mortos, ou seja, aqueles que comprovadamente foram vítimas desse vírus. 
A prevenção da doença traz um problema adicional, que é a pressa: os mais nefastos efeitos da vacina contra o A (H1N1) ocorrerão nos primeiros países a generalizá-la, que serão, infelizmente, os latino-americanos, até agora os mais atingidos pela doença. 
Assim, a deplorável desigualdade econômica mundial distribui também desigualmente o peso das urgências sanitárias. Os pobres portam o fardo mais pesado, eis que a pandemia gripal vem juntar-se a outras doenças endêmicas, como paludismo, tuberculose e dengue, cuja subsistência deve-se às adversas condições de trabalho e de vida, sobretudo em grandes aglomerações urbanas, não raro em condições de habitação promíscuas, numa rotina que favorece largamente a contaminação. 
Caso o fenômeno se agrave, novas restrições, além do controle do Tamiflu, podem ser necessárias, a exemplo da limitação de reuniões públicas e aglomerações, que já foi adotada em países próximos, como a Argentina.

A pandemia pode trazer, ainda, a estigmatização de grupos de risco ou de estrangeiros, favorecendo a cultura da insegurança, pois o medo é tão contagioso quanto a doença. 
Por tudo isso, urge revisar o papel da OMS no sistema internacional e retomar o debate sobre a criação de um verdadeiro sistema de vigilância epidemiológica no Brasil, apto a regular a eventual necessidade de restrições a direitos humanos e a organizar a gestão das pandemias com a maior transparência possível. 
Caso contrário, seguirá atual o que escreveu Albert Camus, em 1947, no grande romance "A Peste": "Houve no mundo tantas pestes quanto guerras. E, contudo, as pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas". 


Sueli Dallari - Professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP; Deisy Ventura - Professora do Instituto de Relações Internacionais da USP – 31.07.2009
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3107200908.htm